terça-feira, 24 de agosto de 2021

Atire a primeira pedra

Integrante do legislativo municipal, durante reunião da câmara municipal, reclamou de objeto de estudo de estudante de mineração. Na opinião do vereador, em vez de questões sociais, a discente deveria ter se detido sobre “trabalhos voltados sobre a classificação do mineral, calcário, sobre não sei o quê”. De cara, diga-se que o estudo de determinado aspecto técnico não impede o estudo de questões sociais. Manifestar o pensamento de que uma questão técnica anula uma questão humanística é típico de quem desconhece o processo de evolução das ciências e das humanidades. O que é técnico e o que não é técnico são faces de uma moeda.

Ainda se referindo ao trabalho da estudante, o político patense declara: “Os trabalhos feitos, na disciplina dela, que é mineração, não faz [sic] sentido. Isso aí tá parecendo mais trabalho de ciências sociais. Ela não vai chegar numa Vale da vida, vai ficar falando de quilombola pro pessoal. Ela vai querer fazer um estudo, análise daquela terra, daquela mineração, pros trabalhos da empresa. Se eu fosse empresário, contrataria nesse sentido”.

O discurso tem cara de nobreza, de quem se importa com o que está sendo estudado, de quem se importa com o futuro da jovem; todavia, é uma falácia. Primeiro, na proposta de que deve haver uma radical separação entre o que é técnico e o que é social; segundo, por postular que se alguém se envolve com um estudo técnico, não caberia a esse alguém refletir sobre a sociedade em que vive. O discurso da autoridade tem cara de preocupação social, quando, na verdade, está propondo ausência de reflexão.

O fato de alguém estudar uma determinada disciplina técnica não impede que esse mesmo alguém reflita sobre a sociedade que está em torno desse conhecimento técnico. A separação da realidade entre aquilo que é técnico e aquilo que não é técnico é errônea ou malévola. Essa separação pressupõe divisão do que somos, pressupõe que a uns cabe análise técnica e a outros cabe, por exemplo, análise sociológica, e ai do que técnico que se aventurar a análises sociológicas, ai do sociólogo que quiser compreender questões da matéria. 

Na citação do vereador, a Vale foi mencionada. Qualquer busca rápida na internet revela o quanto a Vale é capaz de destruir. Quem está em Brumadinho sabe disso. Ainda assim, numa realidade em que empresas matam pessoas e biomas, o vereador advoga a favor de técnicos que não pensam sobre a realidade em que vivem, mas que tão somente se dediquem a estudar os aspectos técnicos da profissão que exercem ou que possam vir a exercer.

Para a Vale, só para se ter um exemplo, é ótimo que um técnico não pergunte, não questione. A partir da fala do vereador, conclui-se ser ótimo que, digamos, um eletricista não produza pesquisa sobre as injustiças do mundo e sobre o processo histórico. Se o sujeito lida com mineração, na visão do vereador, não caberia a esse sujeito produzir trabalhos que se debrucem sobre questões sociais; esse sujeito, na visão do político, em vez de tentar entender o mundo em que está, deveria se debruçar unicamente sobre minerais.

O vereador ignora (ou prefere passar a ideia de que ignora) o básico: a pedra se chama pedra porque recebeu do homem esse nome; o mineral se chama mineral porque recebeu do homem esse nome. O conhecimento técnico, seja da mineração seja de qualquer outra área do conhecimento, é intermediado pela humanidade, é realização da humanidade. Os minerais não se classificaram, não se nomearam, não se estudaram; as pedras não se coletaram, não determinaram elas mesmas as suas origens, as suas idades. O ser que atribui nomes e classificações à natureza é o ser humano.

Gente não pode ser decalcada nem retirada da teia histórica de que faz parte. A mesma pessoa que estuda uma pedra é a pessoa que chega em casa, abraça os pais ou se emociona com uma canção. A mesma pessoa que estuda uma pedra é a pessoa que pode se perguntar, em trabalho acadêmico, por que os índios estão sendo mortos ou por que o Brasil está sendo queimado. A mesma pessoa que estuda uma pedra pode responder, em trabalho acadêmico, à maneira dela, o motivo de haver brasileiros que defendem tortura e ditadura.

Para gente como o vereador e para empresas como a Vale, é bom que os que estudam pedras não fiquem se fazendo perguntas demais. “Se você estuda pedras, dedique-se a estudar pedras. Nada de ficar estudando quilombolas. Isso não é de sua alçada”, alegariam. Pensamentos como o do vereador desprezam a natureza eclética do ser humano e a reduzem a algo mecânico, obediente, petrificado. O vereador representa um Brasil que não quer gente pensando, mas, sim, pedras.

Pedras não questionam, não têm múltiplos interesses, não expõem realidades incômodas, não fazem perguntas perturbadoras. Pedras obedecem, estudam o que o outro determina que deve ser estudado. Políticos há que não querem cidadãos, mas pedras que votem neles. Tendo votado, que a pedra continue sendo pedra. Uma pedra não retrucará, não contextualizará, não fará associações, não produzirá arte nem história nem ciência. 

Gente não é pedra. Você, que quer viver num conforto em que haja seres estáticos baixando a cabeça, pode espernear. Gente não foi, não é, não será pedra, por mais que você insista. Uma pessoa que reflete sobre si mesma e sobre o mundo em que vive é perigosa porque desestabiliza construções que servem a poucos e banem muitos. Que aquele que queira estudar pedra estude pedra; que aquele que queira estudar questões sociais estude questões sociais. Que aquele que queira estudar pedra e que queira estudar questões sociais estude pedra e questões sociais.

Que a pedra, como metáfora e como material de estudo, seja bem-vinda. Como metáfora, que a firmeza dela sirva de inspiração. Que se tenha firmeza de pedra, delicadeza de brisa, paixão de fogo, paciência de estalagmite. Gente é pedra, vereador; pessoas são pedras; pedras em movimento com asas poderosas, cientes de que “pedras que rolam não criam limo”. Pessoas vão se polindo, lapidando-se, aprendendo, estudando. Ideias impedem que pessoas se tornem lodosas. A má notícia para o vereador é haver pessoas que são pedras pensantes. Quando atiram pedras nessas pessoas, essas pessoas sabem segurar pedras. Em metáfora e em literalidade. 

Lembranças

Sim, Lembranças [Remember me, 2010], dirigido por Allen Coulter e roteirizado por Will Fetters, é estadunidense demais. Defende os valores deles, exalta a individualidade deles, ainda que poetize essa individualidade. Nenhuma obra de arte deve ser estudada fora da realidade que a produz; o problema de Lembranças é exaltar um aspecto da realidade ou da história que corresponde à imagem que os EUA vendem de si, com seus mitos e histórias (de superação). A produção lambe uma ferida que é do país deles e que foi por ele causada. No contexto histórico internacional, uma produção cheia de problemas; como narrativa fílmica, um primor.

Nos segundos iniciais da produção, duas famosas edificações aparecem ao fundo, o que “adianta” o desfecho e confere a Lembranças um caráter não somente típico da imagem que os EUA continuam passando para o mundo, mas também faz com que a própria cidade em que a história se passa seja, por assim dizer, personagem do enredo. O filme, todavia, tem a sensibilidade de perceber que por trás de cada habitante há uma história, e que essa história é avaliada ou reavaliada quando há um momento divisório na vida. 

Aquilo de que somos feitos: nossas derrotas, vitórias, vivências, modo de vida; aquilo que representamos, as coisas que defendemos, o que condenamos; nossas idiossincrasias, o que fazemos, o que deixamos de fazer, o que foi feito de súbito... Isso serve para algo? Caso sirva, para quê? Esses questionamentos ficam rondando a mente depois que o filme termina. Não há respostas; a existência delas poderia incorrer em amadorismo ou em pieguice. 

Lembranças é também sobre o fio do destino, não no sentido de pré-destinação, mas no sentido de esmiuçar o que ocorreu até o dia em que a vida dos personagens foram marcadas pelo histórico evento que há no fim. Como escrito, Lembranças não oferece respostas; em contrapartida, semeia profícuos e belos questionamentos. 

Os personagens convencem ainda que o filme não tivesse o desfecho que tem. Em função desse mesmo desfecho, olhamos para as vidas deles em retrospecto, passamos a nos simpatizar (mais) com eles, que, por serem quem são, já eram convincentes. É rico o modo como o filme mostra o quanto a História reverbera na história de cada dos personagens, e em como qualquer tentativa de compreensão, seja da realidade individual seja da realidade histórica, somente dever ser esboçada a partir do conhecimento. 

Lembranças é um filme sobre um fato histórico? Hum... É... Não há como separar o fato histórico a que faz referência das vidas dos personagens; contudo, a poesia do filme está na necessária compreensão de que o fato histórico tem consequências individuais. A produção lida com histórias individuais na História.