terça-feira, 31 de maio de 2016

Apontamento 331

Estou interessado no que é elevado, grandioso. Estou interessado no arrebatamento, no êxtase, desde que laicos, seculares. 

Ode ao mutum

Mutum é palavra rotunda,
boa de se pronunciar.
Palíndromo do tamanho
do mundo se esgueirando
com altivez pelo cerrado. 

Mutum

Plateia

Os caminhos do cerrado,
as nuances de uma canção,
o espetáculo das vozes,
o conforto dos livros,
a busca do belo,
o mundo das estrelas.
Fecham-se as cortinas.
Queres saber da feitura,
queres esquadrinhar bastidores,
sem que saibas ao certo se os há. 

Suculenta

Ela apanhou a fruta no pé. 
Ele a chupou. 

Fotopoema 393

Trata-se de montagem.

Florescências


sábado, 28 de maio de 2016

Um velho velho

Se eu for velho, que eu seja um velho com cabeça de velho. Não quero ser um velho com cabeça de jovem. Não compro essa ideia de que o que importa não é a idade cronológica, mas a idade do espírito. Que meu espírito tenha a idade de meu corpo — nem mais nem menos. Se um dia eu chegar a ter, digamos, noventa e um anos, que eu tenha cabeça de noventa e um anos.

Parece-me que aqueles os quais dizem não querer que a cabeça envelheça têm medo de ser tornarem caretas, como se a velhice trouxesse necessariamente a caretice. Têm medo de não acompanhar tendências, medo de ficar para trás. Pode haver velhice com lucidez, com informação, com leituras. A velhice pode ser atualizada.

Envelhecer pode fazer com que uma pessoa fique retrógrada. Contudo, o velho retrógrado, na maioria dos casos, foi retrógrado a vida toda, ainda que com menos intensidade. Geralmente, não é a velhice que traz comportamento obsoleto. Tal comportamento pode vir a ocorrer na velhice; contudo, isso não implica dizer que tornar-se velho seja o mesmo que se tornar antiquado.

Basta um velho ter bom humor ou ser espirituoso ou entender novas atitudes sociais para se dizer que ele tem espírito jovem. Senso de humor ou compreensão de vanguardas, sejam elas quais forem, nada têm a ver com a suposta idade do espírito. Isso está ligado a uma postura e a um temperamento sedimentados ao longo de toda uma vida. 

Velho usando roupa de velho e pensando como velho não implica obrigatoriamente ser datado nem anacrônico. Anacrônico é velho pensar como jovem. Velhice não é pasmaceira. Há inquietude em qualquer idade; se eu ficar velho, que eu tenha inquietudes de velho, não as de um homem de vinte e cinco anos. Há entusiasmo em qualquer idade; se eu ficar velho, que eu tenha entusiasmos de velho, não os de um jovem de dezoito.

A velhice pode ser elegante, pode ter brilho mental. Se eu tiver saúde e lucidez razoáveis, que eu me vista como velho, que eu pense como velho, que eu converse como velho se velho ficar. O culto exagerado da juventude e da aparência incutiu nas pessoas o pensamento de que ser velho é se vestir de modo feio, é cheirar mal, é ser ultrapassado. Compreender e descartar as bobagens do presente não é o mesmo que ser careta. 

Relógio 10

Relógio 9

Fotopoema 392

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Todos mundos


Eu sei de um monte de impossibilidades.
Conheço nãos de nuances diversas.
Tenho familiaridade com fracassos.
Eu pavimentei a rota do inviável.

Só que hoje tudo é comunhão.
Eu canto sem medo, não estou só.
Celebramos a harmonia acalentada.
Somos  um: eu, tu, ele, nós, voz, eles. 

Relógio 8

Curicaca

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Fotopoema 391

"Turnê"












Fotos tiradas ontem, durante “turnê” pelo cerrado. 

Juvenil

Ao longo dos anos, acumulei centenas de fotos de anus-pretos. Contudo, eu nunca havia fotografado um adolescente; ontem, fiz este registro. O que me leva a crer que este da foto não é um adulto é a ausência de cauda desenvolvida. Além disso, ele era um pouco menor do que os demais que estavam no grupo (os anus são aves gregárias). Contudo, não sou ornitologista. Pode ser que eu esteja errado quanto a supor que o espécime da foto é um adolescente. 

(Des)apontamento 51

Existe algo muito feio em nós: pé. Eu não diria haver pés bonitos. Todavia, não há parte mais feia no corpo humano do que os cotovelos. Pés, quando muito, podem ser menos feios — nunca bonitos; os cotovelos, nem isso. 

Tito e os anus-pretos

Ontem, no fim de tarde, eu estava brincando com o Tito, meu cachorro. Ele é feliz quando está às voltas com uma miniatura de pneu de trator. Jogo esse pneu para longe. Ele corre para buscá-lo e o traz de volta para mim, para que eu volte a jogá-lo. Se dependesse do Tito, ele ficaria nesse vaivém o dia inteiro (isso não é uma hipérbole).

Ele nada gostou quando interrompi a brincadeira e vim correndo para dentro de casa. O motivo da interrupção foi o casal da foto, que estava num fio que passa bem à frente à casa do vizinho aqui do lado. Quando me deparei com os anus-pretos, peguei a câmera e comecei a fotografá-los. O Tito, sem nada entender, ficou pulando em mim, querendo retomar a brincadeira que tanto o alegra.

Ainda no visor da câmera, mostrei algumas fotos do casal para ele, que não se sensibilizou pela troca de carícias dos anus. Feliz mesmo ele ficou quando voltei a jogar para longe o pneu. 

Caminhos do cerrado

terça-feira, 24 de maio de 2016

Falta 1

Tínhamos em casa um jogo que fazia sucesso antigamente, chamado Resta 1. Por sua natureza, é o tipo de jogo que interessa enquanto não é domado. Depois que se aprende a deixar uma única peça no centro do jogo, ele perde a graça. Meu pai e eu aprendemos. Não me lembro de quem aprendeu primeiro. De qualquer modo, devemos ter feito alguma espécie de acordo, pois não ensinei para ele nem ele para mim como cumprir o proposto segundo as regras do jogo.

Quando eu já havia treinado muito, passei a levar a brincadeira para a escola, exibindo para os colegas de sala as habilidades que eu tinha ao lidar com o Resta 1. Não satisfeito, treinei o jogo com olhos fechados, guiando-me apenas pelo tato. Como os movimentos já estavam todos memorizados, não foi difícil manejar as peças do Resta 1 mesmo sem enxergá-lo.

O jogo que havia aqui em casa tinha apoio branco para as peças. Elas eram vermelhas. Para que se encaixassem nos buracos, tinham a base mais estreita do que o corpo. Essa base tinha um pequeno buraco ou furo. Quando eu não estava manejando o Resta 1, eu gostava de pegar uma peça vermelha qualquer e colocá-la na boca. O pequeno buraco ou furo permitia à peça grudar na ponta da língua, por intermédio de sucção. Para um menino cujas obrigações e preocupações eram mínimas, isso era diversão. Uma de minhas brincadeiras era exibir a peça vermelha grudada na ponta da língua, que eu fazia questão, nessas ocasiões, de esticar o máximo que podia. Não para meu pai.

Houve um dia em que ele chegou do trabalho e realizou seu ritual: tirava sapatos, calçava chinelos, vestia roupa confortável e pegava a caixa do Resta 1. Só que estava faltando uma peça. Como só eu e ele manejávamos o conjunto, foi natural que ele me perguntasse se eu sabia onde a tal da peça estava. Com a voz mais firme que pude, mas tentando soar natural, sem exageros, eu disse que não sabia o paradeiro da peça. A rigor, ela não era necessária, pois era preciso retirar uma das peças para que a brincadeira começasse. Contudo, o que importava não era isso; o que era importante era achar o membro faltante.

Eu, meu irmão e minha mãe fomos acionados. Retiramos móveis de lugar, vasculhamos cantos e recantos; minha mãe, com uma vassoura, varria cada reentrância da casa. Eu tentava ser o melhor que conseguisse, fingindo me esforçar, mas sempre tomando cuidado para não exagerar, a fim de convencer os demais de meu empenho em achar a danadinha. Resignado, meu pai anunciou que não haveria mais buscas. Ele nunca soube o destino da peça. Nem haveria como ele saber — eu a engolira.
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Caso queira jogar Resta 1 via internet, basta clicar aqui

domingo, 22 de maio de 2016

Dia de feira














Hoje, tive meu dia de Arcimboldo. Sempre que ia a um supermercado ou a uma feira, eu me arrependia de não levar minha câmera, por sempre ter tido a intenção de fotografar frutas e legumes. Mais cedo, concretizei a intenção.

As fotos foram feitas com uma lente 50mm. A abertura em todas as imagens foi F/1.8. Não usei “flash”. 

sábado, 21 de maio de 2016

Maria e seu filho

Maria moça dá à luz.
Maria jovem dá à luz.

O que vão construir a partir do parto de Maria não é culpa dela.
O que farão com o filho dela quando ele crescer não é culpa dela.

O que farão com o nome dela não é culpa dela. 

Apontamento 330

Tenho certa dificuldade em separar o trivial do épico. Não que eu não enxergue diferença entre eles. Todavia, a separação que faço deles é muito mais a partir de uma convenção herdada do que a partir do que há em mim. Há uma “miopia” em mim que me impede de separar o grandioso do banal.

Não que isso ocorra por eu subvalorizar o épico; sei reconhecê-lo. Dependendo das circunstâncias, eu me emociono com tudo aquilo que a grandiosidade é capaz de causar, seja na vida, seja na arte. Talvez o que eu faça é sobrevalorizar o trivial. Não a ponto de eu igualá-lo ao épico, pois estão em contextos diferentes, mas a ponto de inseri-los num mesmo nível, lado a lado, não havendo um que esteja mais abaixo ou mais acima do outro.

O que há, é a mania que tenho de insistir que existe algo muito significativo na aparente trivialidade que é a tônica da maioria de nossos dias. Os momentos grandiosos nas vidas das maiorias das pessoas são poucos. Pode ser que essa minha insistência em elevar o banal a um patamar que ele não deveria ocupar seja uma recusa inconsciente de minha parte em aceitar a monotonia e a chatice que talvez sejam o imperativo de boa parte das vidas. 

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Professor Luís André Nepomuceno ministrará curso

Vem aí mais um curso de extensão ministrado pelo professor Luís André Nepomuceno — O Decameron de Giovanni Boccaccio. Vai ser nos dias 4 e 18 de junho. Não é preciso ser aluno do Unipam para participar. Bora nessa?

Fotopoema 390

quarta-feira, 18 de maio de 2016

O jogo sujo dos torcedores

Considerada unicamente em si mesma, uma partida de futebol pode ser um dos mais emocionantes espetáculos que o homem é capaz de criar. Partidas desse naipe são raras, mas, quando ocorrem, deixam no coração marcas indeléveis. Se consideradas unicamente em si mesmas.

Quando se leva em conta os bastidores do que é uma grande produção, não raro depara-se com o que há de mesquinho, de corrupto ou de selvagem em nossa natureza. Com o futebol, não seria diferente. Se dentro das quatro linhas ele é mais um esporte, fora delas, há um tecido social, apaixonado e — não raro — tolo.

A prática não é só brasileira; sei que é sul-americana. Pode ser que ocorra do outro lado do Atlântico: quando um time vai jogar fora de casa, torcedores da equipe local atrapalham o sono do adversário, geralmente soltando fogos de artifício. Na madrugada que passou, foi assim lá em Belo Horizonte, onde torcedores do Atlético se dedicaram a atrapalhar o sono do time do São Paulo (os dois se enfrentam logo mais pela Libertadores). Nessas ocasiões, as torcidas geralmente se valem de gritarias e de fogos de artifício.

Há vídeos circulando no WhatsApp. Num deles, em meio a fogos que riscam o céu escuro, um torcedor diz: “Dorme, Bambi, filha da p... Quero ver cê jogar amanhã, Ganso”. Em outro vídeo, morador nas proximidades do hotel em que o time do São Paulo está abre a janela de seu apartamento e comenta que já passava da meia-noite e que os torcedores do Atlético é que estavam soltando foguetes perto do hotel. O morador arremata: “Tática de guerra”.

Embora desnecessário, devo dizer que esta postagem não é contra somente a torcida do Atlético. Se me valho dela, é somente por ser algo que ocorreu na madrugada que passou. O que fez a torcida do Galo lá em BH é só o gancho a partir do qual comento sobre a baixeza que é agir desse modo. Sei que isso não é prática nova, sei que a torcida do Atlético não é a única a se valer dela. Venha de onde vier, a atitude é condenável, não valendo aqui o “raciocínio”: “Se fazem com o time da gente lá, vamos fazer com o time deles aqui”. Bonito mesmo é derrotar o adversário quando ele está descansado, em plena forma, no auge.
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Aproveito a deixa e menciono, mais uma vez, dois textos que me são muito caros: um deles foi produzido para um comercial do Comitê Olímpico Internacional; a narração é de Robin Williams. O vídeo foi ao ar mundialmente em 2004. O outro texto é um poema do americano Walt Whitman, poeta que muito admiro. O contexto do poema de Whitman não é o esporte, mas pode ser transposto para o cenário esportivo, pois os versos declaram que uma derrota pode ser bela. A tradução do texto do comercial e do poema do Whitman é minha.
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Walt Whitman — Canção de mim mesmo 18

Com música forte eu venho, com minhas cornetas e meus tambores,
eu não toco marchas para os vitoriosos aceitos apenas, eu toco marchas para as pessoas dominadas e assassinadas.

Você ouviu que foi bom ganhar o dia?
Eu digo que também é bom cair, as batalhas são perdidas no mesmo espírito em que são ganhas.

Bato forte meu ritmo pelos mortos,
sopro pela embocadura o mais alto e contente por eles.

Vivas para aqueles que fracassaram!
E para aqueles cujos navios de guerra afundaram no mar!
E para aqueles mesmos que afundaram no mar!
E para todos os generais que perderam batalhas, e para todos os heróis derrotados!
E para os inumeráveis heróis desconhecidos, iguais aos maiores heróis conhecidos!
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Abaixo, texto do comercial produzido pelo Comitê Olímpico Internacional

Você é meu adversário, mas não é meu inimigo, pois sua resistência me dá força, sua garra me dá coragem, eu espírito me enobrece. E embora seu meu objetivo derrotar você, caso eu tenha êxito, eu não vou humilhar você. Em vez disso, eu honrarei você, pois, sem você, eu sou um homem menor.

Minha parte

Existe o mar;
eu sou a gota.

Existe a praia;
eu sou o grão.

Existe o amor.
Eu te amo. 

terça-feira, 17 de maio de 2016

Talento desejado

Há pessoas que se instalam no pensamento. “Instalar” é feio, mas é o que me veio à mente. Mais cedo, enquanto na moto, outro verbo me havia ocorrido. Confiei na memória, o que eu não deveria ter feito; acabei me esquecendo de qual verbo teria sido esse.

Uma das formas de uma pessoa ir cada vez mais tomando conta do pensamento da gente é quando esse alguém é talentoso. Uma vez admirando o talento do outro, passamos a nos lembrar dele quando diante da manifestação desse talento. O dom do outro pode desengatilhar o pensamento frequente.

Mesmo que não seja o talento a dar o pontapé inicial, ele compõe aquilo que nos remete ao outro, quando no outro começamos a prestar atenção. Se esse astral prossegue num crescendo, vem o desejo de partilha, que em meio a outras vontades e a outros desejos, pode desembocar no desejo do outro.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Das reações contra Dilma

De alguns anos para cá, as redes sociais e os comentários deixados em “sites” de notícias mostraram o quão despreparado o brasileiro está para o debate, seja ele qual for. Confirmou-se o tamanho gigante desse despreparo também na questão política, pois o que deixa de ser debatido é, precisamente, a política.

O teor desta postagem não é, em sentido estrito, político. Se fosse para adjetivar esse teor, eu diria que ele é sociológico; ou, talvez, psicológico. Mas não me importa agora adjetivar com exatidão o que escrevo. Este parágrafo aqui está como tentativa de esclarecer que esta postagem, em vez de se deter sobre questões políticas, parte do princípio simples de que antes de haver um profissional, há um ser humano. Qualquer um deve, antes de tudo, ser respeitado por isso. Sei que digo truísmos, mas os digo porque coisas básicas estão ausentes.

As redes sociais mostraram que muitos, ao se referirem a Dilma, deixaram de lado questões políticas e se detiveram em questões pessoais. Já quando da posse para o segundo mandato, escolheram falar mal do... vestido dela. À medida que o tempo ia passando, houve de tudo: disseram que ela é como é por falta de sexo; no dia internacional da mulher, mulheres postaram textos do tipo “feliz dia das mulheres para nós — menos para a Dilma, que não merece” (curiosamente, muitas delas não se rebelam contra o que um Bolsonaro diz sobre as mulheres); ela foi xingada de todas as ofensas que são dirigidas contra o sexo feminino; inseriram a imagem dela sendo queimada em fogueira...

Nos estádios, entoaram para ela “vai tomar no c*”; em adesivos de carro, pegaram a imagem dela e a colocaram, com as pernas abertas, no lugar em que a bomba é colocada no veículo quando se abastece. Foi uma constelação de indelicadezas, futilidades, falta de educação, grosserias, preconceitos, machismo, misoginia e ódio. Uma parte do Brasil mostrou a cara que tem. 

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Que se possa falar menos

Para meu trabalho, estou preparando um minicurso sobre o livro “O poder dos quietos: como os tímidos e introvertidos podem mudar um mundo que não para de falar”. Desde quando o li pela primeira vez, eu me tornei uma espécie de divulgador do trabalho de Susan Cain, pois sempre falo dele.

Ao procurar por uma foto dela na internet, eu me deparei com um “link” em que há uma palestra dela numa das edições do Ted. No evento, ela comenta exatamente sobre “O poder dos quietos”. Didática, ela clarifica o assunto do livro, que defende o seguinte: num universo em que o modelo de extroversão tornou-se sinônimo de excelência, é preciso compreender que os introvertidos ou os tímidos têm muito a contribuir para a melhora do ambiente de trabalho em que estão, desde que tenham a liberdade de ser quem são.

Durante sua fala, Susan Cain defende com fluência e elegância sua opinião, não dando a entender que ela é a pessoa introvertida que sempre alega ser. Num primeiro momento, ela retira livros de uma mochila, explicando por que os livros estão ali. No final, numa bela metáfora, ela diz que os tímidos e os introvertidos não precisam ter medo de retirar de suas mochilas o que há lá dentro delas, concluindo que é preciso ter a ousadia de falar baixo.

Hino

Eu sei, 
eu sei que este dia que amanhece será retumbante.
Há viço nos rostos,
existe alegria nos lábios,
os passos são altivos.
Acorda um País sabendo que é forte.
Tendo descoberto seu valor,
sabe que a partir de hoje
será novo, será moderno.
As notícias do passado deixaram lição.
O dia de hoje é um corte,
dobra-se uma esquina,
o Sol trouxe a boa-nova.
Resplandece no céu azul-anil
a pujança de quem, finalmente,
deixou de repetir,
com outras roupas e outras caras,
os esquemas de ontem, de anteontem,
dos tempos das caravelas e dos escambos.
Escuto o gorjeio das aves,
revoadas de gaviões saúdam o futuro,
que, até que enfim, chegou.
O que era promessa se cumpriu,
o que era projeto é ação,
o que era vontade é ato.
Pulsos varonis, futuro jubiloso.
O tão anunciado Eldorado é hoje o chão que pisamos.
De mãos dadas e com sorriso tranquilo,
nós nos curamos do passado,
nós fundamos, neste dia que começa,
um novo empreendimento.
Somos limpos, somos fortes, somos um só.
Chega de livros,
chega de história,
chega de pobreza,
chega de gente feia.
Acordamos! Acordemos!
É hora de levantar o País!
Com nossa galhardia,
com nossa pureza,
com nossas armas,
golpearemos os inimigos.
Não somos mais esboço.
A partir de hoje, somos Nação.
Avante! Levantemos as taças! Brindemos a nós!
Não há o que temer. 

São Paulo derrota o Atlético

O primeiro jogo entre São Paulo e Atlético, por esta edição da Libertadores, terminou há pouco. O primeiro tempo foi muito feio, com muitas faltas, truncado, violento. O número excessivo de cartões amarelos ainda na primeira metade do primeiro tempo levava a crer que haveria jogadores expulsos. Não houve.

No segundo tempo, o São Paulo jogou melhor do que o Atlético. Isso resultou em gol. Chama a atenção o fato de que o São Paulo estava desacreditado no torneio. Nada está decidido, é verdade, pois o Atlético é forte em BH, a torcida deles vai incentivar muito. Mesmo assim, o time do Morumbi deu um grande passo para avançar no torneio.

Que a partida de quarta-feira que vem tenha mais futebol e menos faltas; que seja um jogo menos truncado, mais corrido. As duas equipes merecem isso, bem como os torcedores dos dois times, bem como quem gosta de futebol. 

quarta-feira, 11 de maio de 2016

"O rumor da língua"

Ela interrompe a leitura. 
Não por enfado, 
mas por deleite. 
Ergue a cabeça, 
depara-se com nuvens. 
Com a cabeça entre
nuvens e palavras, 
inspira, 
inspira-se, 
inspira-me. 

terça-feira, 10 de maio de 2016

"Ai se eu te pego": ode à ironia

Não sei se houve um tempo em que havia sagacidade para uma ironia perspicaz. Pode ser que não. Um certo Alcanter de Brahm, no século XIX, inventou o ponto de ironia (imagem acima); tentativa infrutífera.

Em redes sociais, muitos preferem (eu mesmo fui um desses muitos) escancarar a ironia a ter de aturar a falta de tino dos que não conseguem entendê-la. A fim de se pouparem de incapacidade de interpretação e de aborrecimentos, optam por tirar a sutileza do texto, evidenciando a ironia. Hoje, sou da opinião de que eu não deveria ter contado que eu estava sendo irônico.

O Luciano Pires, num de seus “podcasts”, fez uma acurada “análise” interpretativa de “Ai se eu te pego” quando a canção estourou mundo afora. O tom foi sério, houve um suposto ar acadêmico nas palavras usadas por Luciano Pires. Quem acompanhava o programa dele poderia perceber tranquilamente que se tratava de uma ironia. Contudo, mesmo dentre ouvintes que se disseram fiéis, houve quem entrasse em contato com Pires para dizer que estavam decepcionados por ele ter se dedicado a “estudar” com tanta precisão a letra de “Ai se eu te pego”.

No “podcast” seguinte, o apresentador ironizou a falta de capacidade de alguns ouvintes em perceber a ironia da “análise”: ele e o técnico de som que trabalhava com ele criaram a vinheta da ironia; toda hora em que o breve sinal sonoro fosse ao ar, ele estaria contando para o ouvinte que o que seria dito a seguir se tratava de uma... ironia...

À parte a historieta sobre o Alcanter de Brahm e à parte essa história envolvendo o Luciano Pires, o bom mesmo é não escancarar a ironia. Ironia escancarada é algo tão ruim quanto piada ou chiste explicados. Se por um lado entendo que em redes sociais a obtusidade de um leitor ou de outro pode “exigir” o equivalente a um ponto de ironia, a fim de se evitarem aporrinhações, por outro, é preciso “resistir”. Dito de outro modo: é preciso confiar no leitor/receptor de uma ironia.

O movimento quase imperceptível dos lábios num sorriso milimétrico quando o leitor saca uma ironia do autor é um momento bonito demais para ser estragado por obviedades. É um momento em que há uma sintonia entre quem escreve e quem lê, a despeito de distâncias temporais ou espaciais. É um momento de comunhão, como é de comunhão todo momento de leituras dedicadas, entusiasmadas. Que deixemos momentos assim no profícuo e forte terreno da sutileza. 

Sem ti

Não sei viver sem ti.

Por um lado, é mentira,
pois sigo vivendo sem ti.
Por outro, é verdade,
pois, sem ti, sou
piano sem mãos,
locutor sem rádio,
lábios sem beijo.

Vivo,
vivo sem ti,
ao modo de
estádio sem gente,
poeta sem leitor,
roupa sem corpo,
tesão sem par.

Sem ti,
deusa de voz suave,
não sou o que sou.

domingo, 8 de maio de 2016

Fotopoema 388

"Água Suja"

Yuji Kodato é o diretor de “Água Suja”, documentário que narra a peregrinação de católicos a Romaria/MG. Kodato acompanha a trajetória dos caminhantes pelas rodovias do Triângulo Mineiro, bem como exibe a vida da cidade durante o mês de agosto, quando o lugar recebe milhares de romeiros.

Ao contar a história, o diretor optou por dar voz aos fiéis durante a extenuante caminhada. Nas entrevistas, eles contam as razões que os levam a encarar os cansativos dias na estrada. “Água Suja” também oferta um sagaz panorama de como fica a cidade de Romaria com a chegada dos fiéis.

Enquanto mostra a caminhada dos peregrinos pelas rodovias e atalhos que levam ao destino dos entrevistados, o documentário, de quebra, em belas tomadas, exibe a beleza não óbvia do cerrado mineiro; já quando exibe a cidade lotada de viajantes, “Água Suja” não deixa de mostrar a atuação dos que lucram a partir da fé dos que estão na cidade.

Romaria se torna um microuniverso em que religião, comércio e diversões (que muitos poderiam chamar de terrenas) se misturam. O documentário de Yuji Kodato retrata tudo isso, mas sempre dando ao expectador todo o espaço para que ele tire suas conclusões a partir do que assiste.

Os momentos finais da produção mostram pessoas limpando a sujeira que toma da cidade em virtude do grande número de pessoas que a visitam. Na cena final, mostra-se água com espuma de sabão ou de detergente escorrendo numa rua, em tomada carregada de sugestões e de simbolismos. 

Torcida

Você em meio a muitos. 
O que muitos querem
os Coelhos não querem. 
Mas querem os Galos 
o que quer você. 
Eu, Raposa, 
não sou Coelho
nem Galo. 
Nesse (a)mar de gente,
torço é por você. 

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Conto 86

Iara e Jean estavam conversando sobre sexo. Ela disse que ele decepcionar-se-ia quando fizessem amor. Ele argumentou ser pouco provável que isso ocorresse. Valeu-se de vivências pregressas para reforçar a cantada: “Geralmente, se não gosto do beijo, não gosto do sexo; quase sempre é assim. Mas sempre que gostei do beijo, gostei do sexo. E você já deve estar cansada de eu dizer que sou louco por seu beijo”. Iara riu de leve e disse adorar o beijo dele. Fizeram amor; nenhum gostou.

domingo, 1 de maio de 2016

Ô de casa

O cantor, instrumentista e compositor Prince, que morreu recentemente, foi criado como Adventista do Sétimo Dia; já adulto, tornar-se-ia Testemunha de Jeová. Por causa disso, executava o trabalho de bater de porta em porta e pregar para os moradores que dessem permissão para o ato. O nome completo dele era Prince Rogers Nelson.

Certo dia, em Minneapolis, enquanto Prince apresentava a Bíblia segundo a interpretação dos Testemunhas de Jeová, uma mulher comentou com ele: “Alguém já disse a você que você se parece muito com o Prince?” A resposta do artista teria sido lacônica: “Já disseram”, voltando logo a seguir a seu trabalho de apresentação das escrituras. Quando a mulher perguntou a Prince o nome dele, ele disse: “Rogers Nelson”.

(Extraí essa história da página da CNN.) 

Isso e aquilo

Não sinto saudade
disso 
ou 
daquilo.

Sinto saudade
disso 
e
daquilo
e
daquilo outro
e
de todo o resto. 

Presença

Pensar em ti em cada pequena ação do cotidiano 
é o maior e o mais grandioso ato meu. 
Eu te coloco em tudo o que faço, 
dedico a ti tudo o que penso, 
tudo o que realizo. 
Tu estás no que me inspira e 
no que me tira o sono. 
Estás na água que bebo, 
no café que preparo, 
nas teclas que meus dedos tocam 
enquanto escrevo este texto ou qualquer outro. 
Tu estás nos livros que leio, nos devaneios. 
Estás no que não digo e em minha dicção. 
Tu estás nas brincadeiras entre mim e meu cachorro, 
no que fotografo, no arroz com legumes que preparo. 
Ninguém sabe, mas estás em minha boca, 
nas linhas de meu rosto. 
Tu estás nas cores, no arco, na íris, 
na espessa e palpável escuridão da Gruta de Maquiné.

Acabei de acender a luz, 
que te iluminou em meu pensamento.