terça-feira, 24 de maio de 2016

Falta 1

Tínhamos em casa um jogo que fazia sucesso antigamente, chamado Resta 1. Por sua natureza, é o tipo de jogo que interessa enquanto não é domado. Depois que se aprende a deixar uma única peça no centro do jogo, ele perde a graça. Meu pai e eu aprendemos. Não me lembro de quem aprendeu primeiro. De qualquer modo, devemos ter feito alguma espécie de acordo, pois não ensinei para ele nem ele para mim como cumprir o proposto segundo as regras do jogo.

Quando eu já havia treinado muito, passei a levar a brincadeira para a escola, exibindo para os colegas de sala as habilidades que eu tinha ao lidar com o Resta 1. Não satisfeito, treinei o jogo com olhos fechados, guiando-me apenas pelo tato. Como os movimentos já estavam todos memorizados, não foi difícil manejar as peças do Resta 1 mesmo sem enxergá-lo.

O jogo que havia aqui em casa tinha apoio branco para as peças. Elas eram vermelhas. Para que se encaixassem nos buracos, tinham a base mais estreita do que o corpo. Essa base tinha um pequeno buraco ou furo. Quando eu não estava manejando o Resta 1, eu gostava de pegar uma peça vermelha qualquer e colocá-la na boca. O pequeno buraco ou furo permitia à peça grudar na ponta da língua, por intermédio de sucção. Para um menino cujas obrigações e preocupações eram mínimas, isso era diversão. Uma de minhas brincadeiras era exibir a peça vermelha grudada na ponta da língua, que eu fazia questão, nessas ocasiões, de esticar o máximo que podia. Não para meu pai.

Houve um dia em que ele chegou do trabalho e realizou seu ritual: tirava sapatos, calçava chinelos, vestia roupa confortável e pegava a caixa do Resta 1. Só que estava faltando uma peça. Como só eu e ele manejávamos o conjunto, foi natural que ele me perguntasse se eu sabia onde a tal da peça estava. Com a voz mais firme que pude, mas tentando soar natural, sem exageros, eu disse que não sabia o paradeiro da peça. A rigor, ela não era necessária, pois era preciso retirar uma das peças para que a brincadeira começasse. Contudo, o que importava não era isso; o que era importante era achar o membro faltante.

Eu, meu irmão e minha mãe fomos acionados. Retiramos móveis de lugar, vasculhamos cantos e recantos; minha mãe, com uma vassoura, varria cada reentrância da casa. Eu tentava ser o melhor que conseguisse, fingindo me esforçar, mas sempre tomando cuidado para não exagerar, a fim de convencer os demais de meu empenho em achar a danadinha. Resignado, meu pai anunciou que não haveria mais buscas. Ele nunca soube o destino da peça. Nem haveria como ele saber — eu a engolira.
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