terça-feira, 15 de setembro de 2015

SOBRE LER

Um livro pode ser ponte. 
Um livro pode ser muro. 
O leitor pode ler ponte quando há muro.
O leitor pode ler muro quando há ponte. 
Seja por desaviso. 
Seja por má-fé. 

SIMPÓSIO SOBRE CYRO DOS ANJOS É REALIZADO

No fim de semana, participei, no Unipam (Centro Universitário de Patos de Minas), do Primeiro Simpósio de escritores de Minas: Cyro dos Anjos. Publico nesta postagem algumas fotos e a programação do evento. Publico também um texto meu sobre o escritor a que o simpósio era dedicado.

Programação

11/09

19h, abertura
19h15, apresentação musical: canções folclóricas de Minas, com o Grupo Tupam (Núcleo de Arte e Cultura/Unipam)
19h30, mesa-redonda de abertura:
Professor doutor Élcio Lucas (Unimontes): “O homem que espia o homem: o Belmiro por trás da letra”
Professor doutor Luís André Nepomuceno (Unipam): “A menina do sobrado: o amor e o belo como distintivos sociais”
Mediador: Professor Lívio Soares de Medeiros

12/09

14h, mesa-redonda 1
Professor mestre Carlos Roberto da Silva (Unipam): “O herói fracassado em O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos: notas de leitura”
Professora mestra Bruna Pereira Caixeta (doutoranda em Teoria e História Literária pela Unicamp): “A menina do sobrado e o romance não autobiográfico de Cyro dos Anjos”
Professor doutor Frederico de Sousa Silva (UFU): “Apontamentos clássicos em Cyro dos Anjos”
Mediador: Luís André Nepomuceno

15h45, mesa-redonda 2
Professor Moacir Manoel Felisbino (Unipam): “Ofício de escritor — da arquitetura textual à indagação acerca do sentido da vida em Abdias
Professor Lívio Soares de Medeiros (IFTM): “Poemas coronários, de Cyro dos Anjos: impressões de leitura
Mediador: Carlos Roberto da Silva

Belmiro Borba e Belmiro Montesclarino — Lívio Soares de Medeiros

Cyro dos Anjos publicou “Poemas coronários” em 1964. O livro havia sido escrito no ano anterior, de vinte e dois de agosto a dezenove de setembro, enquanto o autor estava internado. Os doze breves poemas que compõem o volume foram escritos na iminência da morte.

O autor logo anuncia um eu lírico para os poemas — Belmiro Montesclarino. De imediato, a “piscadela” nos remete ao narrador de “O amanuense Belmiro”, romance de Cyro dos Anjos. Ora, se por um lado há que se tomar certo cuidado ao associar a biografia do autor à sua obra, por outro, o próprio Cyro dos Anjos, ao nomear o eu lírico de “Poemas coronários” como sendo Belmiro Montesclarino, propõe um jogo lúdico-literário-biográfico. Afinal, Cyro dos Anjos é de Montes Claros; além do mais, ele, de fato, relembremos, esteve internado devido a problemas coronários.

Seria útil e didático comentar brevemente cada um dos “Poemas coronários”. A paráfrase deles que faço a seguir os empobrecerá, mas será útil para que se tenha uma visão global do que é, em minha leitura, o corpo do texto. Os poemas não têm títulos. Na ordem em que aparecem, enumero-os e comento-os a seguir:

Poema 1: celebra-se o nascimento do dia;
Poema 2: na iminência da morte, cria-se um deus;
Poema 3: não se quer nem o deus de Aristóteles nem o deus de Espinosa: quer-se um deus com zangas e birras, mas que seja bom;
Poema 4: confessa-se a fragilidade que se tem, bem como a dependência que se tem dos outros;
Poema 5: a morte é visita; pede-se que ela vá embora, pois há um filho para se criar;
Poema 6: não saber quem se é nem se o que se é vale para algo;
Poema 7: atmosfera de tristeza e de fragilidade. O tom é quixotesco;
Poema 8: expressa-se a alegria de estar vivo ao acordar (o que acaba remetendo o leitor ao primeiro poema do livro);
Poema 9: “O corpo vence a morte”;
Poema 10: a vida vale a pena, desde que vivida uns pelos outros;
Poema 11: a família do autor é apresentada;
Poema 12: a morte tem belo aspecto; desculpas são pedidas “aos poetas de ofício”.

Emerge da leitura dos doze textos o retrato de um eu lírico fragilizado, humanizado. Essa fragilidade se expressa em textos que não têm conhecidos (embora eficazes) truques literários. A literariedade, que poderia ter ficado mais evidente do que o que se confere na leitura, está em segundo plano (os textos, por exemplo, são classificados como poesia muito mais em função do aspecto visual do que pela cadência que têm); o que há são os medos, inseguranças e alegrias de quem está num hospital, temendo perder a vida. É como se o que importasse não fosse fazer literatura, mas, sim, registrar o que poderiam ser as últimas palavras a serem escritas por um paciente em um hospital.

O caráter frágil a que me referi acima é também estilístico. Os “Poemas coronários” se valem da retórica da falsa modéstia. Antes mesmo do primeiro poema, numa espécie de introdução, o eu lírico usa as expressões “lira ingênua”, “escritor menor” e “imperito nas artes poéticas”; no último poema, recordemos, esse mesmo eu lírico pede desculpas “aos poetas de ofício”. Cyro do Anjos, prosador que era, estava, nos “Poemas coronários”, pisando terreno que não percorria em sua trajetória de escritor. Essa falsa modéstia acaba por estar em sintonia com o tom espontâneo dos poemas.

De “O amanuense Belmiro”, valho-me de uma frase, a fim de realçar algumas diferenças entre o narrador do romance e o eu lírico dos “Poemas coronários”. Num dado momento, Belmiro anuncia: “Creio que já não quero o mito mas a pessoa”. A pessoa em questão é Carmélia, de quem Belmiro fala ao longo da obra.

Os “Poemas coronários” abrem mão de um mito, por assim dizer; abrem mão do mito literário. Em “O amanuense Belmiro”, há a construção de um personagem/narrador. Dito de outro modo: forja-se um personagem/narrador. Seria um tanto difícil para o leitor que não teve contato pessoal com Cyro dos Anjos apontar o que dele, Cyro dos Anjos, há em Belmiro. Em contrapartida, talvez um tanto irresponsavelmente, afirmo: o eu lírico dos “Poemas coronários” é Cyro dos Anjos. Se não o é plenamente, pelo menos o é em maior escala do que Belmiro Borba. Este passa o livro todo construindo um mito, seja por não ter Carmélia, seja por edificar uma persona literária. Quando não tem mais a capacidade de erigir mitos, desiste de escrever.

Nesse sentido, é curioso o quanto o narrador Belmiro é diferente do narrador Casmurro. Menciono isso por já ter havido comparações entre Cyro dos Anjos e Machado de Assis. À parte a concordância ou a não concordância quanto a tais comparações, Casmurro e Belmiro diferem nisto: aquele, terminada sua narrativa, já adquiriu o gosto pela escrita; tanto é assim que anuncia, nas linhas finais de “Dom Casmurro”, que iniciará a escrita de outro livro; já Belmiro, mesmo tendo escrito o segmento “esta literatura íntima é a minha salvação”, acaba por anunciar que não há mais o que escrever, pois a vida se tornara vazia. Um dá sentido à vida por intermédio da escrita; o outro abandona a escrita por ter perdido o sentido da vida.