sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Recado para 2021

2020, estou me despedindo de você,
mas, 2021, não conte com um Lívio diferente.
Eu sei, é tentador a gente se empanturrar de álcool e
de resoluções em 31 de dezembro.
Somos mais estrondosos do que os fogos,
tão artificiais quanto.
As resoluções do réveillon
acordam de ressaca,
não chegam a dois de janeiro.

2021, não espere um Lívio diferente.
Seguirei sendo antiburocracia e
com preguiça de ir a supermercado.
Continuarei lendo e brincando com meu cachorro.
Sua pandemia, 2020, não causou novidade em mim.
Sigo o velho que sempre fui,
sem fé na humanidade, sem fé.

Sei, 2021, que você trará 
as mesmas babaquices do 2020,
que não as inventou.
Eu e você, 2021,
herdaremos a estupidez dos séculos,
a violência dos milênios e
a burrice dos que defendem bolsonaros.

Seguirei sendo o velho corpo cansado,
o antigo comodismo congênito,
os mesmos pretextos criativos.
Que você chegue, 2021,
mas não espere nada de mim.
Eu não espero nada de você.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Sobre a natureza

A natureza não sabe que amanhã é terça-feira
nem que está chovendo agora.
Ela não está interessada no destino de João
nem na tristeza de Paulo.
Se Tereza está feliz
ou se Jânio ganhou na loteria,
isso não importa.
Artur sobreviveu à covid-19;
Maria Clara morreu por causa dela.
O câncer levou Ana, 
mas poupou Tiago.
A enchente levou a casa de Hermes
e a seca fez o corpo do menino Anderson secar.

A natureza não sabe que ontem foi domingo.
Ela não descansou.
Suas cachoeiras,
que não estavam aqui ontem,
não estarão amanhã.
As belas paisagens não são belas para nós.
A natureza não fez as estrelas para nosso regozijo.
O Sol que nos banha não sabe que Zé da Silva deve ao banco.
O balé da revoada de estorninhos não é para me agradar.
Fora de nós, a natureza não adjetiva, não abstrai, não compõe.
A natureza é. 

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

O país dos maricas

Presidente, algumas perguntas a partir do uso que você fez de “maricas”...

Os 160 mil que, até agora, morreram por causa da covid-19 eram maricas? Ou alguns deles morreram porque quiseram ser mais machos do que os demais?

Maricas é quem não votou em você? É quem não votou em você e morreu de covid-19? É quem votou em você e morreu de covid-19? Quem não votou em você e não morreu de covid-19 é maricas? Ou maricas é quem usa máscara? É quem não quer transmitir a covid-19?

Você disse que “todos nós vamos morrer um dia”. Isso quer dizer que não temos razão para tomarmos precauções quanto à covid-19 devido ao fato de que “vamos morrer um dia?”. Esse mesmo “raciocínio” vale para outros contágios ou para outras doenças? Ou isso somente vale quando o assunto for a covid-19? Caso sim, por quê?

O mesmo vale, por exemplo, quando o assunto é o câncer? “Todos nós vamos morrer um dia”; logo, não devemos tratar o câncer nem devemos tomar cuidado com ele? Nem com a leptospirose? E quanto a possíveis facadas? Devemos deixar de ser maricas e não procurarmos um hospital caso levemos uma facada? Ou o “todos nós vamos morrer um dia” só é válido quando se trata da covid-19? Caso sim, por quê?

Você foi examinado por um médico quando teve covid-19. Isso é ser maricas? Ou maricas são os que procuram médico e, ainda assim, morrem? Quem não procura médico em caso de covid-19 provou não ser um maricas?

O que é, exatamente, ser um maricas? É quem não quer morrer devido à covid-19? É quem toma cuidados para tentar não morrer em breve? É quem toma cuidado para não matar os demais? O presidente de um país que deixa a população desse país sem ministro da saúde durante meses numa pandemia é um maricas? Ou isso é sinal de macheza?

Para que eu entenda sua “ideia”: o João tem covid-19 e a transmite para José, que morre de covid-19, transmitida por João. Quem é o maricas?... É o João?... Caso sim, por quê?... Caso não, por que não?... É o José?... Caso sim, por quê?... Caso não, por que não?... São os dois? Caso sim, por quê?... Caso não, por que não?...

De acordo com você, a pandemia foi “superdimensionada”. Já há 160 mil mortos. O que seria não “superdimensionar”? Seu critério é numérico? Tive apenas uma pessoa morrido, isso não importaria? (Se o critério for seu, sou levado a crer que não. Afinal, quando o exército matou, fuzilando, você declarou que “o exército não matou ninguém”. Isso é regra sua que tem validade somente para os outros? Ou ela tem validade para você?)

Cinco milhões já foram infectados pela covid-19. São maricas? Ou maricas são apenas os 160 mil que já morreram? Maricas é quem não teve covid-19 e tem medo de ter? É quem deseja que haja vacina?

O que é, com exatidão, um maricas? É um covarde? Um fraco? Caso sim, o que é um fraco para você? Ser maricas é não querer morrer? Ou é não querer morrer devido à covid-19?

Referindo-se aos que buscam os mortos pelo regime militar, você endossou cartaz com os dizeres “quem procura osso é cachorro”. Agora, você usou o termo “urubuzada”. “Animalesco”, você. Todavia, urubus se alimentam de carniça; assim fazendo, realizam trabalho de limpeza. A vida é assim mesmo: uns limpam, outros sujam; uns se alimentam do que já morreu; outros matam. 

sábado, 7 de novembro de 2020

A ilha Brasil

“A visão de Trump tem um lastro em uma longa tradição intelectual e sentimental que vai de Ésquilo a Oswald Spengler, e mostra o nacionalismo como indissociável do Ocidente. Em seu centro, está não uma doutrina econômica e política, mas o anseio por Deus, o Deus que age na história. Não se trata tampouco de uma proposta de expansionismo ocidental, mas de um pan-nacionalismo. O Brasil precisa refletir e decidir se faz parte desse Ocidente”.

Essas palavras foram escritas pelo atual ministro das relações exteriores, em texto intitulado “Trump e o Ocidente”. Escreveu ainda o ministro: “Esse Deus pelo qual os ocidentais anseiam ou deveriam ansiar, o Deus de Trump, não é o Deus-consciência-cósmica, ainda vagamente admitido em alguns rincões da cultura dominante. Nada disso. É o Deus que age na história, transcendente e imanente ao mesmo tempo”.

Não somente por essas palavras, a revista norte-americana Jacobin, em fevereiro de 2019, deu ao ministro das relações exteriores do Brasil a alcunha de o pior diplomata do mundo. A imprensa e os meios de comunicação daqui, desde quando a vitória de Joe Biden começou a se esboçar, têm cogitado sobre o que pode vir a ser a diplomacia brasileira a partir de agora.

Enquanto isso, em seu quintal, os estadunidenses têm de lidar com um perdedor que, pelo menos até agora, não apresentou prova alguma das fraudes que ele diz ter havido. (Em nosso quintal, Aécio Neves pode ser elencado como tendo tido o mesmo comportamento, que, aliás, é discutido no imprescindível Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Para eles, um dos indícios de ausência de espírito democrático por parte de alguns políticos é o fato de eles se empenharem em fazer com que as instituições sejam desacreditadas ou com que sejam demolidas.)

A tônica do que a imprensa e os meios de comunicação têm dito é a de que o governo federal terá de mudar sua postura diplomática, sob pena de ficar à parte no cenário internacional. Celso Amorim deu declaração ao UOL, afirmando que “Bolsonaro vai ter que mudar muito. Se ele tentar fazer o que tem feito até agora, que é invocar uma falsa noção de soberania, uma grande parte da elite brasileira que está tendo tolerância com ele até agora deixará de tê-la. Se tem uma coisa que a elite brasileira não suporta é brigar com os Estados Unidos”.

Sim, uma parte da elite brasileira é baba-ovo dos EUA, o que também ocorre com o chefe do executivo federal em relação a Trump. Depois de ler o que Celso Amorim declarou, pensei: essa parte da elite brasileira que se presta a ser capacho dos EUA não mudará os valores excludentes, antiéticos e antiecológicos do trumpismo, que, no governo federal, têm fiéis. 

Não consigo enxergar ninguém nesse governo a fim de fazer o que eles até agora não fizeram: diplomacia. Devido a insanidades como a de que “o Deus de Trump” é “transcendente e imanente”, só consigo pensar num Brasil (mais) isolado e (mais) vexaminoso diplomaticamente. Que eu esteja enganado. 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Os de lá e os daqui

Ontem, ao vivo em canais de TV, enquanto Trump estava dizendo haver fraude nas eleições dos EUA, âncoras e jornalistas entraram ao vivo durante a fala do político para dizer que ele não apresentara até então nenhuma prova do que estava dizendo. Do que não sei, pois não acompanho os canais que disseram que Trump mente ou blefa, é se eles estavam sendo cínicos como os daqui, que não moveram uma sobrancelha para desmascarar, por exemplo, coisas como mamadeira de piroca ou kit gay, e pousam agora de mocinhos preocupados com a democracia, fingindo não serem inescrupulosos.

À parte isso, se uma versão à brasileira do Trump, preferencialmente sem provas, disser por aqui que eleições estão sendo, foram ou serão fraudadas, minutos depois já haverá nas TVs, rádios e sites de notícias “analistas”, “comentaristas” e “especialistas” endossando esse hipotético Trump dos trópicos. Em termos técnicos, tudo é feito com esmero. Numa analogia, poder-se-ia dizer que a imprensa e os meios de comunicação brasileiros, em sórdida assepsia, são como o cidadão que, vestindo roupas caras, modulando gentilmente a voz e querendo transmitir ares de civilidade, sofisticação, competência, ética, honestidade e preocupação com o país, camufla vilezas e preconceitos. A maior parte do jornalismo brasileiro faz de conta que é combativa e republicana. Muitos acreditam. 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Culposo

Denúncias contra um senador: peculato, lavagem de dinheiro, apropriação indébita, organização criminosa. Mas ele não é pobre. Ainda que haja toneladas de documentos comprovando os crimes, sairá ileso: é rico, é homem, é branco, tem pai influente. O criativo judiciário, num longínquo futuro, em caso de culpa do político, vai inocentá-lo, nem precisando de malabarismos mentais. Basta dizer que houve peculato culposo, lavagem de dinheiro culposa, apropriação indébita culposa e organização criminosa culposa. Funciona. 

O Estado do Cinismo

Sabe o sujeito do filme de comédia que pratica delito e sai assoviando, como se nada tivesse com a história?: é assim que agem a imprensa e os meios de comunicação do Brasil quanto ao governo federal, fingindo que nada tiveram a ver com a eleição. A mais recente desfaçatez foi do jornal O Estado de São Paulo, que publicou texto dizendo que o presidente “arrasta o País para o abismo”. O periódico é mais um a lavar as mãos (sujas), como se não fosse ele um dos responsáveis pela eleição do causador da debacle. 

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

O país do “estupro culposo”

Ser branco, homem e rico no Brasil dá ao detentor de tais predicados a regalia de ter à sua disposição algo do tipo “estupro culposo”, malabarismo classista do judiciário local, invenção macabra de parte de uma elite retrógrada, saqueadora e sem o menor senso de humanidade. São reflexos de uma classe que é o entrave do país; reflexos que escancaram o teatro cruel que o judiciário brasileiro pode ser.

O que covardes fizeram com Mariana Ferrer durante o “julgamento” extrapola o que estava em consideração e descamba para o machismo, a prepotência, a humilhação, a tergiversação desrespeitosa. Moeda corrente no judiciário que, quando quer, sabe ser farsa, seja para desferir golpes políticos, seja para inocentar quem pertence à mesma classe daqueles que, no Brasil, há séculos, pilham, mentem, humilham, estupram. 

Se não têm as provas que desejam, para eles bastam as convicções; se contra eles há provas, que se invente qualquer coisa (qualquer mesmo) para inocentá-los. Nas mãos deles, o judiciário é uma ficção criada para salvar a pele deles e para que eles punam quem não é da panelinha. Fazem assim porque sabem que o arremedo de justiça aqui vigente é controlado por eles. Provas?... A depender do caso, ou as desconsideram ou as criam. 

Sim, a obrigação de qualquer advogado é defender seu cliente. O que está em jogo não é o cumprimento de uma obrigação, mas o modo como ela foi realizada. O que foi infligido a Mariana Ferrer não foi a solidez de argumentos, mas a sordidez de privilégios criados por uma elite nojenta que é o câncer do Brasil.

domingo, 1 de novembro de 2020

A Finlândia não é aqui

Desde que foi veiculado, faz sucesso um vídeoque dura algo em torno de vinte minutos, sobre o sistema educacional na Finlândia. É uma produção da Globo. Com frequência, esse vídeo é usado como argumento quando se quer elogiar a educação recebida pelos finlandeses e criticar a recebida pelos brasileiros.

É preciso ponderar a partir do que é dito no vídeo. É que sempre fico reticente quando há a tentativa de comparação entre a educação na Finlândia e a educação no Brasil. A primeira razão pela qual fico reticente é óbvia: o contexto finlandês é diferente do contexto brasileiro.

É dito no breve documentário que a Finlândia é o país mais feliz do mundo. À parte o fato de eu achar que felicidade é um conceito difícil de ser medido, pois o parâmetro de um pode ser diferente do parâmetro de outro, chamou minha atenção o seguinte: eles são um dos países menos desiguais do mundo.

Permitam-me um raciocínio simplório, mas necessário: o vídeo permite a fácil dedução de que menos desigualdade e felicidade estão conectadas. Mantendo o raciocínio simplório: igualdade e felicidade estão conectadas. Para nós, o problema começa na desigualdade. O Brasil é um país edificado sobre a desigualdade, que pode ser conferida em qualquer esquina do país.

Isso, por si, já é uma questão melindrosa. Mas a coisa fica pior: não há empenho de toda a sociedade para que as desigualdades sejam amenizadas ou dizimadas. O Brasil é um país em que quando se fala em ensino gratuito para todo mundo, há quem diga que não é obrigação governamental ofertar educação para todos. Segundo o vídeo, na Finlândia, “todas as crianças estão em escolas públicas” e “todo mundo tem as mesmas oportunidades”. Vou reescrever a frase: “Todo mundo tem as mesmas oportunidades”. Também é dito no trabalho da Globo que na Finlândia a educação é gratuita até o término do ensino superior. 

Acho estranho o que, com frequência, ocorre no Brasil: exalta-se a igualdade no exterior, mas se deplora a busca dela por aqui, onde há quem queira insistir na ideia de que o sujeito nascido na periferia de São Paulo tem as mesmas oportunidades de um nascido no Morumbi, e que se os projetos daquele não se concretizaram, a culpa é dele, que seria preguiçoso, indolente, burro. É dito no vídeo: “Você não precisa vir de família rica para se tornar alguém”. Lá, isso é possível porque há igualdade.

Tudo, contudo, fica pior: há uma cena do vídeo em que se mostra uma professora ensinando o processo de formação da Terra. Aqui no Brasil, congressos têm sido realizados para se afirmar que o planeta é plano, indivíduos têm negado princípios básicos da ciência. Estou sugerindo com isso que não cabe à escola fazer algo?

Não. Com isso, estou defendendo a ideia de que comparações entre países devem ser feitas com cautela, e que o ensino tem limites, principalmente se inserido em contexto desfavorável, caso do Brasil. A escola, ao mesmo tempo em que pode influenciar a sociedade, por ela é influenciada. Seria muita pretensão afirmar, no caso brasileiro, que a escola, sozinha, realizará a melhora.

No Brasil, a profissão de professor é desvalorizada, o que, segundo o vídeo, não ocorre na Finlândia. O professor, no Brasil, é visto, por alguns setores da sociedade, como um proscrito, um coordenador de badernas. Não bastasse, os professores, na Ilha de Vera Cruz, são enterrados sob um escombro de burocracia e de vigilância. Reitero: não sugiro desistência, mas ponderações quando insistem em querer aplicar o modelo educacional finlandês no Brasil.

Certa vez, perguntaram para o García Márquez se o artista tem de ser ou de estar triste para produzir. A resposta dele: “Escrevo melhor de barriga cheia”. O Brasil tem uma multidão de estudantes que não têm o que comer; estuda-se melhor de barriga cheia.  É dito no vídeo que a Finlândia teve guerra civil e fome. Superaram ambas. Vamos superar a fome no Brasil? Vamos ter uma sociedade composta por oportunidades iguais? Não tenho respostas.

Qual a importância em se conhecer a realidade educacional da Finlândia? Uma das importâncias é o saber em si, o estar informado. Outra importância: a ciência de que há um país como a Finlândia inspira a utopia, tal qual a concebe o Eduardo Galeano (1). Vídeos como esse, assim concebo, não são para que imitemos as engrenagens da Finlândia ou de outro país, nem para que tentemos implantar o sistema educacional deles aqui, mas para que saibamos que uma sociedade igualitária pode ser feliz. Seremos?

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(1) Há um texto do Eduardo Galeano em que ele se vale da seguinte imagem para ilustrar o que é o caráter utópico: a utopia é querer chegar à linha o horizonte; chega-se. Lá chegando, enxerga-se outra linha do horizonte, que deve, então, ser buscada; chega-se a ela. Lá chegando... 

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Uma jovem senhora

Os modos são civilizados, polidos. O jeito de caminhar é leve, mas calculado; é como se estivesse desfilando, mas sem espalhafato. É que a vida é uma passarela. Ela sabe que atrai. Os gestos, também estudados com dedicação, querem passar ideia de espontaneidade. A voz é doce, tem alguma melodia, que, se escutada, deixa escapar, em seu timbre, alguma afetação, que a jovem senhora insiste em esconder. Quase sempre, com sucesso.

Nas reuniões com os amigos e nas redes sociais, procurando falsa modéstia, dá notícia das doações que faz todo ano; se há um gesto caridoso, como, digamos, um alimento que é dado a um faminto, isso é divulgado. Não com alarde, o que seria trair a tão almejada classe, mas com discrição que camufla o ego enorme. A jovem senhora sabe fingir que não quer atenção para si o tempo todo. Sorri para ricos e para pobres.

Jacta-se de dizer em quantos países já esteve. Chega a um lugar, tira fotos em algum monumento famoso e corre para outra cidade; lá chegando, tira fotos em algum monumento famoso e corre para outro país; lá chegando, tira fotos em algum monumento famoso e corre para outro continente. Com o corpo, já esteve em muito lugar. Gosta de Paris. Mas adorar, adora mesmo é Nova York. Quanto às belezas do Brasil, vive a falar bem delas sem ter vontade de conhecê-las; mal conhece a cidade em que vive.

Ela cuida da linguagem, embora haja na jovem senhora alguma ilusão quanto ao português que tem e muita ilusão quanto ao inglês que emite. Dependesse dela, teria a língua de Trump como nativa. Em situações públicas, sejam pessoais, sejam virtuais, o carisma, mais pensado do que genuíno, entoa cânticos a favor da paz, envia elogios à gentileza e aos bons modos, declara-se tocado pela arte de Romero Britto, propaga amor à natureza.

Também não espontâneo, há um certo recato. Os desavisados, diante de cada parte do que ela é, recebem o impacto do todo, sem desconfiarem de que sob o aspecto liso, saudável e belo do rosto dela há uma jovem senhora que não gosta de pretos, não gosta de pobres, não gosta de índios, não gosta de gays. Muitos gostam dela por não saberem quem ela é; muitos gostam dela por saberem quem ela é.

Para ela, o Brasil precisa ser higienizado; pensa que não faz sentido um país que não seja habitado por peles branquinhas. Ela, que já lamenta não haver em terras tropicais o branco da neve, não lida bem com o desconsolo que sente quando tem de sair de casa e se deparar com pessoas suadas e de pele encardida, adjetivo este de que ela se vale quando se refere às pessoas que realizam trabalhos braçais ou que pegam ônibus. Para ela, só ditadores resolvem esses problemas.

O marido pertence a um clube. Não basta existir para frequentá-lo. É preciso ser convidado, é preciso ser eleito. A confraria divulga a si mesma como filantrópica. Na prática, dedicam-se a jogos políticos que enriquem a si mesmos e depenam os pobres. Quando o marido da jovem senhora está nas reuniões do clube, não é raro ela estar se refestelando no corpo do musculoso amante. 

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

O jogo tem vencedor

O jogo dos que se dedicam a retirar do povo direitos que estão na Constituição é vitorioso. O sucesso desses jogadores é tamanho que o desmonte de direitos é aplaudido também pelos que os perderão, mesmo deles dependendo: o coturno pisoteia a face, que, sorrindo, agradece ao genocida pelo esmagamento. 

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Adoeça em paz

Uma pequena porcentagem dos que elegeram o atual chefe do executivo federal não depende do SUS. Para esses, quando a saúde pública for desmantelada, a vida deles seguirá na mesma toada, pois têm condição de arcar com os custos de hospitais particulares. Todavia, vivemos num país em que 60% dos trabalhadores brasileiros têm renda média inferior a um salário mínimo. Na prática, isso significa que a maioria da população depende dos serviços públicos de saúde.

Não me canso de reiterar: o decreto relativo às Unidades Básicas de Saúde, assinado pelo presidente e pelo ministro da economia, não surpreende, pois sempre deixaram claro que o modo deles de fazer política é não se preocupar com os que não têm condições de bancar serviços particulares, sejam quais forem. Válido mencionar também que muitos dos que não conseguem pagar uma consulta particular aplaudem qualquer iniciativa do governo federal, pois há quem se sinta no dever de agradecer ao chicote que deixa marcas na pele. 

sábado, 24 de outubro de 2020

Ambos

Gosto de roça.
Gosto de cidade.

Gosto de Janis Joplin.
Gosto de Karen Carpenter.

Gosto de loiras.
Gosto de morenas.

Gosto de gente.
Gosto de solidão.

Gosto de guitarra.
Gosto de sanfona.

Gosto de futebol.
Gosto de literatura.

Gosto de Choderlos de Laclos.
Gosto de Catulo da Paixão Cearense.

Gosto de luz.
Gosto de escuro.

Gosto de silêncio.
Gosto de Led Zeppelin.

Gosto de livro.
Gosto de câmera fotográfica.

Gosto de vinho.
Gosto de cerveja.

Gosto de feijão.
Gosto de arroz.

Gosto de vermelho.
Gosto de azul.

Gosto de Garrincha.
Gosto de Maradona.

Gosto de Beatles.
Gosto de Rolling Stones.

Gosto de Camões.
Gosto de Leminski.

Gosto de picanha.
Gosto de rabanete.

Gosto de papel.
Gosto de tela.

Entre um e outro, ambos. 

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Que morram mais 150 mil

Gastar dinheiro público com cloroquina, que não tem comprovação científica no combate contra a covid-19 e cujos estoques estão encalhados, sem problema. Liberar a CoronaVac, desenvolvida em parceria com cientistas brasileiros, não. Cinismo, burrice, viés ideológico e ódio são componentes dos genocidas.

sábado, 17 de outubro de 2020

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Dinheiro limpo

O senador Chico Rodrigues (DEM-RR) é um dos políticos que mais conseguiram liberar dinheiro de emendas em 2020. O governo do presidente, até terça-feira (14/10), empenhara R$ 15.637.645,00 em emendas do senador, que foi um dos vice-líderes do chefe do executivo federal no senado. Dadivoso, Chico Rodrigues deu emprego para um primo dos filhos do mandatário.

As nádegas e a vizinhança delas comportam, como já é sabido, dinheiro. Em suas intimidades, o senador portava R$ 17.900,00 reais. A título de curiosidade, fiz conta simples, para saber quantas pessoas, em média, seriam necessárias no transporte de R$ 15.637.645,00, levando-se em conta a quantidade de dinheiro que Chico Rodrigues tinha consigo.

Não tendo eu feito a conta incorretamente (caso os cálculos estejam incorretos, gentileza me corrigir), 873 pessoas, arredondando-se para baixo, seriam necessárias para carregar os R$ 15.637.645,00 na cueca. Sabe-se a quê cheira a grana que estava com Chico Rodrigues. O que não se sabe é se 872 pessoas já lavaram o dinheiro. 

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

15/10

Há um cinismo ou uma hipocrisia de que pouco se fala — o cinismo ou a hipocrisia de parte dos que cumprimentam professores no dia 15 de outubro. Isso pode partir de quem é aluno, de quem já foi, de quem inventa burocracias inúteis para atravancar a vida dos professores ou de quem apoia políticas ou políticos que são contra os docentes.

Alunos que desrespeitam ou desrespeitaram a convivência em sala de aula, superiores que se concentram em burocracias inócuas e se esquecem de que pessoas valem mais do que papéis imbecis, políticos que lideram campanha contra o trabalho de quem ensina. Mas, em todo ano, é a mesma coisa: mensagens piegas e fingidas a favor dos professores são veiculadas.

A melhor maneira de homenagear um professor é deixá-lo exercer o trabalho dele. No dia a dia, não há isso. A aula não flui devido a desrespeitosas atitudes, burocracias e reuniões inúteis tomam horas, políticos perigosamente demagogos têm a missão de atacar quem está em sala de aula ensinando.

Em tese, eu não precisaria dizer que não estou generalizando. Ainda assim, digo que não estou generalizando. Digo também: não expresso neste texto a opinião de uma classe; expresso opinião que é minha. Dito isso, há pessoas que, de fato, contribuem com o trabalho dos professores. Repito: não estou generalizando. Nem todo mundo que parabeniza os professores é cínico. Os que não são, com frequência, não se dedicam a mensagens hipócritas ou insinceras. Eles demonstram em atos, não em palavrório tosco, o respeito ao próximo.
 
Quanto aos cínicos e aos hipócritas, não deveriam perder tempo escrevendo mensagens açucaradas. Melhor seria se deixassem os professores em paz, melhor seria se deixassem os professores trabalharem, seja em sala de aula, seja os poupando de burocracia, seja não instando ignorantes a se voltarem contra eles. 

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

... Eles existem

Não confiamos nos narradores dos contos de Edgar Allan Poe. Um dos menos confiáveis é o narrador de “O caso do sr. Valdemar”, publicado pela primeira vez em dezembro de 1845. No enredo, um sujeito interessado em magnetismo, que será explicado em linhas gerais já, já, diz a princípio que ainda não havia tido a oportunidade de usar esse conhecimento no momento em que alguém estivesse morrendo. 

Sobre o magnetismo, também conhecido como magnetismo animal: no século XIX, o médico alemão Franz Anton Mesmer tratou de pacientes que padeciam de espasmos epiléticos e transes sonambúlicos. A técnica de que ele se valia tornar-se-ia conhecida como mesmerismo. Mesmerismo ou magnetismo são termos intercambiáveis; algumas técnicas do magnetismo foram incorporadas depois na hipnose. No conto de Poe, o narrador, repito, é entusiasta do magnetismo, que, no período oitocentista, foi usado como tratamento e como paliativo contra dores. Para os adeptos da prática, os humanos, os demais animais e os vegetais teriam uma força natural invisível; essa força poderia curar, sendo transmitida pelo magnetizador para o magnetizado.

Ele combina então com um amigo (o Valdemar do título do conto) que essa tentativa seria feita quando os médicos decidissem que a morte de Valdemar, que era tuberculoso, era iminente. Feito o procedimento, o magnetizado é dúbio no que responde, afirmando estar morto e magnetizado. De qualquer modo, o narrador e uma pequena junta médica deixam Valdemar nesse estado ou nesse limbo por quase sete meses, tendo confabulado que despertar o tísico senhor seria causar a morte dele. Quando, por fim, decidem desmagnetizá-lo, há o horrendo desfecho (em Poe, a expressão “horrendo desfecho” soa até redundante).

Poe, não somente em função de seu trabalho em jornais, mas também por causa de sua mente analítica, interessou-se pela ciência da época, num tempo em que ciências como a medicina e a psicologia ainda não haviam definido com exatidão seu campo de estudo. A atmosfera romântica ainda pairava; não raro, relatos de casos clínicos soavam mais literários do que científicos.

Não nos esqueçamos de que Poe é literato, e um literato imbuído do romantismo como movimento cultural. Poe se vale da ciência para dar verossimilhança às histórias que conta, mas uma verossimilhança que se sustenta, é claro, no ambiente diegético dos contos. Poe não quer fazer ciência, mas, sim, levar à literatura o que a ciência da época andava investigando, levar à literatura o que seria padecer dos distúrbios estudados pela ciência da época. 

Volto à ideia de que Poe deu verossimilhança ao conto de terror, de mistério, mas, em saboroso paradoxo, não raro, Poe cria um narrador que não inspira confiança no leitor (o mesmo ocorre quando lemos as palavras de Dom Casmurro). No escritor inglês, os narradores podem estar sob o efeito de drogas ou podem ter propensão a alucinações ou a demais estados de alteração mental. 

Alguns exemplos: Egeu, o narrador de “Berenice”, declara que sua estirpe “tem sido chamada uma raça de visionários”; William Wilson, no conto de mesmo nome, revela que descende “de uma raça que se assinalou, em todos os tempos, pelo seu temperamento imaginativo e facilmente excitável”; o narrador de “O coração denunciador” afirma que tem sido “nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso”; o narrador de “Eleonora” também admite que provém “de uma raça notável pelo vigor da imaginação e pelo ardor da paixão”. E como fica o narrador de “O caso do sr. Valdemar”? O título original do conto é “The Facts of M. Valdemar’s Case”. Chamo a atenção para a palavra “fatos”. Vamos, pois, a eles...

Logo no segundo parágrafo, o narrador anuncia: “Torna-se agora necessário que eu exponha os fatos [itálico do autor] – até onde alcança minha compreensão” [1]. Todavia, no décimo parágrafo do conto, o narrador, que, curiosamente, identifica-se com uma inicial, a letra “P” (quem sabe, uma brincadeira com “P” de Poe), declara: “O senhor L***1 teve a bondade de satisfazer meu desejo de tomar notas de tudo quanto ocorresse, e é dessas suas notas que o que vou agora narrar foi na maior parte condensado ou copiado verbatim [itálico do autor]” [2].

Tem-se, pois um problema: o mesmo narrador, que se predispusera a expor fatos declara que a versão desses mesmos fatos não diz respeito somente ao modo como ele, narrador, presenciou e vivenciou o que ocorreu; tais supostos fatos chegam até nós a partir das lembranças do narrador e das notas tomadas por um médico que compunha a pequena junta que cuidava do sr. Valdemar. O narrador e o médico que escrevera as notas estiveram diante do mesmo fenômeno. Ainda assim, preferiu o narrador se valer também da subjetividade alheia para contar sua história. 

Nem é preciso discutir o conceito da palavra fato nem é preciso debater possíveis motivos pelos quais a objetividade absoluta é impossível para nós. Ainda que o narrador se livrasse de emoções e de percepções e de escolhas pessoais (como se isso fosse possível), o que ele nos conta é a realidade como ela foi percebida não somente por ele, mas também por outras pessoas que estiveram diante dos estranhos acontecimentos que acometeram o senhor Valdemar. Como leitores, temos acesso não somente ao universo perceptivo do narrador, mas também ao universo perceptivo registrado nas anotações de um médico. O narrador assume a “coautoria” do que ele conta.

Isso, por si, já torna problemático o uso da palavra “fatos” no título original do conto, bem como torna problemática a afirmação inicial, por parte do narrador, de que exporia as coisas tais quais ocorreram de acordo com sua compreensão. Uma certa desconfiança já começa a se insinuar no leitor. Essa desconfiança se solidifica quando a “insegurança” do narrador é escancarada. Ele escreve: “Sinto agora ter chegado a um ponto desta narrativa diante do qual todo leitor passará a não dar crédito algum” [3].

O que se tem: aquele mesmo narrador que havia anunciado que contaria fatos, primeiramente se vale de anotações de outra pessoa para narrar o que ele mesmo, narrador, havia presenciado. Depois, ainda que estando a narrar, volto a insistir, fatos, o narrador diz que “todo leitor passará a não dar crédito algum” no que lerá. 

É como se o narrador estivesse inseguro quanto à sua escrita. Ele inicia sua história propalando que haverá fatos, que haverá objetividade, mas, à medida que o relato vai seguindo, o que antes era intenção de objetividade efetiva-se como insegurança narrativa. O que aconteceu com o sr. Valdemar não é nada crível, mas, ainda que fosse, paira em nós a sensação de que, não bastasse o que há de assombroso e sobrenatural no que é contado, o narrador é um dos “culpados” para que duvidemos da veracidade do que se conta.  Terminada a leitura, fica para o leitor não o ideal da objetividade, mas a presença da subjetividade, algo que, por fim, era tão caro aos românticos. 

Há outro aspecto desse narrador que me chama a atenção: nos contos de Poe, os narradores são, eles mesmos, os que têm alterações em suas mentes. É bastante divulgada a noção de que uma das inovações de Poe foi ter feito com que o medo ou o terror estivessem não no mundo físico, exterior, mas na mente de quem narra a história. É o que ocorre nos contos que mencionei há pouco. Todavia, pelo menos em tese, a despeito da desconfiança que o narrador de “O caso do sr. Valdemar” provoca, não é ele, o narrador, que está passando por uma alteração de seu estado mental. Poder-se-ia alegar que apenas uma mente enlouquecida alegaria haver algum fato na história de um homem que, magnetizado, fica num limbo entre a vida e a morte. Mesmo assim, o terror que lemos, em teoria, não é criação da mente do narrador, mas algo pelo qual passa o desafortunado Valdemar. Não é o narrador que, ainda que narre em primeira pessoa, procedimento comum em Poe, está passando por uma experiência mental drástica e aterradora, mas outro personagem cuja história é contada, e isso faz com que o narrador de “O caso do sr. Valdemar”, ainda que tenha nos contado algo que permeia o imaginário assombrado e assombroso de Poe, seja uma exceção no universo criado pelo escritor norte-americano.

Mas, ainda assim, não nos esqueçamos: estou falando de Edgar Allan Poe. A despeito do que defendo quanto à técnica narrativa em “O caso do sr. Valdemar”, poderíamos cogitar que, mesmo assim, o narrador estivesse, ele também, passando por alguma alteração mental? Caso sim, isso seria algo que minha leitura não detectou. De qualquer modo, a razão, tal qual a concebemos, não habita os contos de Poe. Quando se trata dele, o que posso afirmar é que eu não acredito em narradores, mas que eles existem, eles existem.

_____

[1] Poe, Edgar Allan, 1809-1849. Contos de terror, de mistério e de morte. Tradução de Oscar Mendes. 6ª edição. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 2017. Pág. 208.

[2] Idem. Página 211.

[3] Ibidem. Página 214. 

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Mandante e mandados

O mandatário mistifica os crédulos. 
Os crédulos mitificam o mandatário. 
Há mugidos bestiais, risos infames. 
Entre a mistificação e a mitificação,
o país, agora incendiado, sucumbe. 

Chega de índios

É... Ainda bem que os europeus chegaram aqui em 1500. Há quem diga que chegaram antes. Não importa. O que importa é que chegaram. Por que foi bom eles terem chegado? Ora, porque índio só sabe botar fogo nas coisas. O que seria da natureza do Brasil se os europeus não tivessem chegado aqui? Mesmo hoje em dia, aqueles danados (não os europeus, mas os índios) insistem em destruir a natureza. Pelo menos se estivessem incendiando a casa deles... Se fosse isso, seria um favor que estariam fazendo para nós. O problema é que ao botarem fogo no ambiente, os índios acabam prejudicando quem não é índio, ou seja, os índios acabam prejudicando as pessoas.

Não vou nem mencionar que esses selvagens preguiçosos e iletrados não sabiam nada de Deus antes de os europeus chegarem aqui. Um bando de almas pagãs que não conheciam desígnios e preceitos divinos. Os caminhos do Senhor precisam ser ensinados, não importa se em latim, não importa se com chicotadas. O problema é que essa raça não emenda. Voltaram a botar fogo no que não é deles. Dessa vez, foi lá no Pantanal. Ah, mandasse eu no país... Eu botaria fogo é nesse bando de índio. No mínimo, eu colocaria essa raça para trabalhar. Estou aqui agora num calor danado. Culpa de quem? Desses índios ignorantes que nem falam inglês nem empreendem. Raça improdutiva, indolente, inútil.

Ainda bem que depois dos europeus, vieram os norte-americanos. Eu gosto dos europeus, mas eu gosto de verdade é dos norte-americanos. Aquilo, sim, é um país. Quanta pujança, quanta organização, quanta disciplina. O American way of life é a evolução ou a quintessência da civilidade. Aqui no Brasil, ainda temos de aturar aquela gentalha morena e beiçuda que se sente no direito de queimar o que é nosso por direito. Pudesse eu, pediria apoio dos EUA (país que é modelo para mim, para o Brasil e para o mundo): no mínimo, obrigaria esses índios a se adaptarem ao modo de vida norte-americano. Se quisessem, assim seria; se não quisessem, ou seriam torturados ou seriam dizimados.

Odeio o que atrapalha o progresso, o que é contrário aos caminhos de Deus, o que não é pudico, familiar, virtuoso, patriótico. Por fim, odeio gente hipócrita, gente que diz estar em comunhão com a natureza, mas taca fogo nela. É muita cara de pau, indecência e nudez dessa gente. Sou um sujeito refinado, já estive em dezenas de países, adoro Nova York, conheço Paris como conheço minhas palmas. Não suporto gente suja, suada, caipira, brega. Em vez de banhos de rios, que, aliás, vivem poluindo, esses índios precisam é de um banho de cortesia e de civilidade. Ainda bem que essa gripezinha, que fracotes chamam de covid-19, não afetará o paradigma supremo; diante de todo esse bando de gente descalça e empoeirada, diante desse bando de índios sem caráter, may Trump help us. 

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Meu livro no Kindle

Pessoas, a versão eletrônica de meu recente livro, O Fim do Brasil, já está à venda. Nele, posiciono-me sobre o Brasil de hoje, em especial, de 2013 para cá. Em essência, é um livro político.

Para adquirir, é só clicar aqui

Pegadas

O gado mugiu.
Não satisfeito, rugiu.
Insatisfeito, cuspiu fogo.

Queimou 
galhos,
filhotes,
páginas.

O deus que veneram 
anuiu, culpou os índios.
Desembestada, segue a manada.
O legado são rastros incendiários. 

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Primavera de 2020

Primavera, sê bem-vinda.
Traz teus 
brotos,
flores,
frutas,
frutos,
rosas,
árvores,
arbustos,
pólenes.

Vem!
Mostra teu viço,
aproxima-te com teus tons,
tuas cores primaveris.
Entra, fica à vontade.
Saudações,
estação florida.
Chega mais perto.

Brota, viceja.
Já antevejo 
as chamas
que produzirás,
já concebo
tuas labaredas
lambendo as estrelas.

Já é hora de
“ir passando a boiada”.
Vais gerar belas cinzas, primavera.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

O Pequod e o Brasil

Se apenas o que é visível for levado em conta, o enredo de Moby Dick (1851) é simples: Ahab, o capitão de um navio, saindo de Nantucket, nos EUA, embarca com a intenção de se vingar de uma baleia que havia devorado uma das pernas dele. Claro, trata-se de um livro em que há aventura. Todavia, Herman Melville (1819-1891) não escreveu somente sobre o percurso de uma embarcação rumo ao que seria seu destino: ler o livro assim seria como singrar a superfície das águas do mar sem cogitar suas profundezas. Moby Dick, como todo grande livro, está aberto a diferentes leituras, que se renovam, que podem descortinar uma grandeza tão descomunal quanto a de um cachalote.

Quem narra a história é Ishmael, que estava a bordo do Pequod, o vingativo navio baleeiro chefiado por Ahab. Já em alto-mar, ele, durante discurso inflamado contra a baleia que anseia por matar e com a intenção de aliciar a tripulação para sua causa, é interpelado por Starbuck, o primeiro imediato, que menciona a insanidade que é vingar-se de uma baleia, criatura que atacara Ahab por instinto. Não concordando com Starbuck, Ahab vocifera: “Todos os objetos visíveis, homem, não passam de máscaras de papelão. Mas em todos os eventos — na ação viva, na façanha incontestável — revela-se alguma coisa desconhecida, mas racional, por detrás dessa máscara irracional” [1].

Para Ahab, o cachalote que o atacou agira premeditada e racionalmente. Ao longo do livro, Ahab e a tripulação do Pequod atribuem a Moby Dick, a baleia, adjetivos de que nos valemos para nos referirmos a coisas humanas. O livro de Melville pode ser lido como um embate do homem contra a natureza, mesmo ele preferindo ignorar que ele mesmo é essa natureza contra a qual luta; lutar contra a natureza é lutar contra si.

Ahab, junto à tripulação, num ódio que é tão forte quanto convincente, insiste em justificativas irracionais para matar uma criatura que não é dotada de razão humana. Ele enxerga na baleia o que ele tem em si, numa relação que não é especular, pois o gigantesco animal marinho não é dotado da ciência de que Ahab é. Quando do primeiro encontro entre eles, Moby Dick lutou pela vida, enquanto era atacada por Ahab e comandados. Ao engendrar sua canhestra vingança e nela envolver outras pessoas, pois sozinho não conseguiria levar a cabo sua intenção, Ahab torna-se aquele que age movido não pela inteligência, mas pelo ódio, pela vingança. Moby Dick atacou não porque odiava, mas porque instintivamente queria sobreviver. Ahab quer voltar a atacar não porque precisa, mas porque odeia. Moby Dick lutou pela vida; Ahab quer lutar pela morte.

Há outro aspecto muito instigante em Moby Dick, o de que Ahab conseguiu fazer com que uma coletividade embarcasse numa loucura individual. Das várias análises a que o livro pode se prestar, essa é uma das mais profícuas. Ahab envolve o grupo, a partir de fervoroso discurso feito no tombadilho, na causa dele, que é o mesmo que dizer que Ahab envolve o grupo no ódio, palavra essa usada pelo narrador, que é dele, Ahab. Assim, o ódio de um se torna o ódio dos outros; o ódio de um é comunicado para os outros. Ao comunicar seu ódio com retumbância, Ahab contagia os demais. Diz Ishmael:

“Assim, pois, estava esse velho homem [Ahab], grisalho e sem Deus, perseguindo com maldições a baleia de Jó ao redor do mundo, comandando uma tripulação composta basicamente de mestiços renegados, náufragos e canibais — também debilitados moralmente pela incompetência da mera virtude ou honradez perdida de Starbuck, pela invulnerável jovialidade, indiferente e despreocupada de Stubb [o segundo imediato], e pela mediocridade que prevalecia em Flask [o terceiro imediato]. Tal tripulação, com tais oficiais, parecia ser especialmente selecionada e reunida por uma fatalidade diabólica para ajudá-lo em sua vingança monomaníaca” [2].

Tem-se, então, um sujeito vingativamente louco que, não só pela força de seu argumento — há uma “fatalidade diabólica” na “equação” —, envolve os demais na loucura dele. Dizendo de outro modo, a tripulação do Pequod, também em função do acaso e das circunstâncias, estava “pronta” para as insanidades de Ahab. É evidente: um bando de ignorantes e simplórios embarcou na loucura de um... capitão... O acaso ou algo que não sabemos precisar fez com que aqueles homens estivessem naquela embarcação. Na sequência do trecho citado há pouco, Ishmael prossegue:

“Por quais motivos eles [a tripulação do Pequod] reagiram tão vigorosamente à ira do velho — que feitiço diabólico tomou conta de seus espíritos, a ponto de às vezes acreditarem ser sua a raiva de Ahab; e a baleia branca, inimiga inatingível, tão sua quanto dele; como é possível — o que a baleia branca representava para eles, ou como em sua compreensão inconsciente, de algum modo obscuro e insuspeito, ela parecia ter sido o grande demônio imperceptível dos mares da vida — para explicar isso tudo, seria necessário ir mais fundo do que Ishmael consegue” [3].

Moby Dick é tão inescrutável quanto a história que conta. O narrador conta o que sabe, ciente de que não conta tudo, pois há algo subjacente e que permanece indizível, imperscrutável, embora possa ser intuído. A baleia, o Pequod, o mar, Ahab... Tudo é símbolo. Para explicar tudo isso, seria necessário ir mais fundo do que Lívio consegue.

Linhas depois de Ishmael dizer que não alcança a plena compreensão do que narra, ele conta: “Quanto a mim, cedi ao abandono das circunstâncias e do lugar; e, ainda que estivesse apressado para enfrentar a baleia, não podia ver naquela criatura coisa alguma além de maldade mais fatal” [4]. O Pequod tornou-se um baleeiro louco singrando pelos mares a fim de matar um cachalote a quem o insano Ahab atribuíra a capacidade de raciocínio por trás da “máscara” de baleia.

A tripulação pratica ódio fomentado pelo comandante do navio. Antes de embarcarem no Pequod, aqueles homens simplórios já tinham vontade de odiar? A pergunta, retórica, é para dizer que as circunstâncias atuais, no Brasil, uniram o ódio de um (ou de alguns) com a latência cheia de ódio de muitos. Ahab tinha a eloquência. No Brasil de hoje, a fim de trazer à tona o ódio, ela não é mais necessária — basta que se odeie. Quanto mais toscamente esse ódio for propalado, mais eficaz o contágio será. Fosse o Pequod exatamente como o Brasil, bastaria a Ahab grunhir algumas palavras, pegar o bote e desafiar Moby Dick — e os demais seguiriam o capitão. O ódio de Ahab, por mais que ele alegue haver algo racional na baleia, é um ódio contra algo que não é humano, ainda que maléficas características humanas sejam dadas a esse algo. Capitães há que voltam seu ódio não contra cachalotes, mas contra pessoas. Melville já nos ensinou como histórias cheias de ódio acabam.
_____

[1] Melville, Herman. Moby Dick, ou A baleia. Tradução de Irene Hirsch e Alexandre de Souza. Prefácio de Albert Camus; posfácio de Bruno Gambarotto. São Paulo. Editora 34. 2019. Página 177.

[2] Ibidem. Páginas 200 e 201.

[3] Ibidem. Página 201.

[4] Ibidem. 

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Violências

Há uma violência que é evidente, como a que ocorre, por exemplo, quando o exército dispara centenas de tiros contra inocentes. Ainda que algum político diga que o exército não matou ninguém num caso como esse, isso é algo violento, bem como é violento um torturador ou quem quer resolver as coisas distribuindo porradas em quem faz perguntas que devem ser respondidas.
 
Todavia, há outro tipo de violência que é sorrateira, sub-reptícia, sutil, melindrosa. O objetivo dela é destruir a inteligência, a sagacidade, o pensamento, a ciência. Aliás, o objetivo dela é fazer com que essas conquistas estejam disponíveis para poucos. Pode-se acabar com uma rede de farmácias populares desde que os ricos possam se valer da ciência em hospitais particulares; pode-se taxar livros, impedindo o acesso do pobre à leitura, desde que os ricos possam enviar os filhos para serem formados no exterior. 

A violência evidente é mostrada por intermédio da imprensa sensacionalista. É o sangue que jorra das telas de TV, que escorre das páginas dos jornais e que tinge as telas dos computadores. Já a violência sutil demanda alguma inteligência para ser percebida e algum esforço para ser criticada, o que aumenta sua eficácia. Como consequência, passa a ser louvada também por parte daqueles que são vítimas dela. 

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Teclas

Sem pudicícia,
a mão assassina
elege milícia.

Com astúcia, 
a mão assassina
elege a súcia. 

Desavergonhada, 
a mão assassina 
elege a porrada.
 
Da ribalta,
a mão assassina 
elege a malta.
 
Como serva,
a mão assassina
elege a caterva. 

Do pódio, 
a mão assassina
elege o ódio.

Com alarde,
a mão assassina 
elege o covarde. 

Sem pudor, 
a mão assassina 
elege torturador. 

Com descaramento,
a mão assassina elege
o desmatamento. 

Com arrogância, 
a mão assassina elege 
a ignorância. 

Com sandice,
a mão assassina elege 
a burrice. 

Primeiras-damas

 Marcela:
“Bela, recatada e do lar”.

Michelle:
bela, recatada e dólar. 

Jornada

É preciso aprender, seja o que for, não somente para que confirmemos que sabemos pouco demais e o quanto somos pequenos; sim, somos minúsculos, mas, ao mesmo tempo, somos parte de toda a complexidade do Universo. O reconhecimento da pequenez, em saboroso paradoxo, traz maravilhamento ou encantamento. Ou deveria trazer. É que o outro lado da moeda do reconhecimento da pequenez é a ciência do quanto o que está fora (ou dentro) de nós é sutil, intrincado. Aquele que não quer aprender ou aquele que não se maravilha já está meio morto. Ou menos vivo.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Haicais

 1
É ele quem ama:
89 mil na conta
da primeira-dama.

2
Feliz é a Michelle.
Sacou, Bolsonaro?:
89 mil à flor da pele.

3
É vil.
Na conta,
89 mil.

4
Ele viu.
Na conta,
89 mil.

5
Ele vil.
Na conta,
89 mil.

6
Desata os nós.
Queres tu 89 mil?...
Chama o Queiroz.

7
Michelle,
89 mil, Bolsonaro
não repele.

8
É isto, meus caros:
motorista com 89 mil
têm os Bolsonaros.

9
É isto, meu caro:
motorista com 89 mil
têm os Bolsonaro.

10
São 89 mil.
É bondade como
nunca se viu. 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O feitiço...

O queridinho de parte dos jornalistas os tem vilipendiado desde que assumiu a presidência. Agora, fingem que nada tiveram a ver com a história, arrotando um espírito democrático que nunca esteve neles. Não sabem o que fazer com a criatura em que jogaram confetes e para a qual apontaram holofotes. O monstro que ajudaram a engendrar está pronto para moê-los.

Pancadas

Hoje, a porrada é num jornalista.
Os súditos aplaudem.

Amanhã, a porrada é numa cidade.
Os súditos aplaudem.

Depois de amanhã, a porrada é na democracia.
Esmurrados, os súditos aplaudem. 

Porradas

É algo grave um político dizer que a vontade é de dar porrada ao ser questionado sobre algo que é da alçada dele responder. Algo mais grave ainda são as multidões dispostas seja a aplaudir esse comportamento seja a dar porrada a fim de defendê-lo. 

Na porrada

O menino brigão achava que tudo se resolvia na porrada.
O rapaz brigão achava que tudo se resolvia na porrada.
O homem brigão achava que tudo se resolvia na porrada.
O menino, o rapaz e o homem são a mesma pessoa.

O homem brigão chamou para a porrada outro homem.
O brigão, de cara e na cara, levou um monte de porrada.
Entendeu que insígnias não socorrem quando a porrada
vem direto na cara e um dente vermelho cai da boca.

O homem brigão juntou pudores, não pediu clemência.
O rapaz brigão quis apelar para a benevolência dos murros.
Sob saraivada de porradas, o homem, que é o rapaz.
Esfolado, luxento e chorão, foi embora um menino. 

A porrada como solução

Alguém escreveu — acho que foi o Flaubert, mas não estou certo disso — que “se a imprensa não existisse, seria preciso não a inventar”. Qualquer um sabe dos efeitos prejudiciais que o jornalismo ruim pode ter.

Todavia, perguntar para o presidente sobre os depósitos feitos por Fabrício Queiroz na conta de Michelle Bolsonaro é algo muito pertinente. Não se trata de uma pergunta boba, fora de contexto. Pode-se argumentar que a pergunta vem tarde, pode-se cogitar o motivo de não terem perguntado anteriormente ao mandatário coisas do mesmo teor.

No passado, perguntas similares foram evitadas. Parte da imprensa tenta agora um fajuto mea-culpa que não convence ninguém. Ainda assim, a pergunta sobre os depósitos de Fabrício Queiroz para Michelle Bolsonaro é necessária.

“Minha vontade é encher tua boca com uma porrada”. A resposta do marido de Michelle Bolsonaro é típica dele. Estranho seria se tivesse dado uma resposta adequada, uma resposta de quem tem espírito cívico, uma resposta que elucidasse as transações financeiras do clã, as quais são investigadas, mesmo todo mundo ciente de que a “famiglia” Bolsonaro não será afetada.

Certas questões podem ser difíceis de serem respondidas. Dizer que a vontade é de dar porrada é saída fácil, tergiversação truculenta de quem se acha mais macho que os demais. Exatamente por isso, a resposta agrada a muitos; precisamente por isso, esse tipo de resposta arregimenta admiradores. 

sábado, 22 de agosto de 2020

Razões

Ele é
ameaçador, 
arrogante, 
bobo, 
boçal, 
bronco, 
cruel, 
desavergonhado, 
desinformado, 
despreparado, 
imaturo, 
inapto, 
inepto, 
maléfico, 
mentiroso, 
nefasto, 
perdido, 
pérfido.
perseguidor, 
perverso, 
preconceituoso, 
sinistro, 
sórdido, 
tacanho, 
tosco, 
violento.

Uns o elevaram,
sem vernizes
de cultura,
sem disfarces 
de humanidade,
por ele ser 
quem ele é.

Outros o elevaram 
porque diziam,
em arremedo
de civilidade,
que ele mudaria 
quando vestisse
trajes de gala.

Uns e outros estão contentes 
porque ele é
violento,
tosco, 
tacanho, 
sórdido, 
sinistro, 
preconceituoso, 
perverso, 
perseguidor, 
pérfido.
perdido, 
nefasto, 
mentiroso, 
maléfico, 
inepto, 
inapto, 
imaturo, 
despreparado, 
desinformado, 
desavergonhado, 
cruel, 
bronco, 
boçal, 
bobo, 
arrogante, 
ameaçador. 

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Haicai 81

O plano é genocida:
para livros, impostos;
para armas, guarida. 

Haicai 80

Para livros, impostos.
Para armas, benesses.
Assassinos a postos. 

Encruzilhada

Nas prateleiras e nas geladeiras,
diversas criaturas mortas.
Há patos, galos, perus...
No açougue, bois, vacas, carneiros...
Algumas espécies podem ser
adivinhadas através das embalagens.
Outras estão fatiadas,
penduradas em ganchos,
sem embalagens.
Demandam conhecimento
técnico para que sejam identificadas.

Num dos corredores do supermercado,
há uma espécie que morreu há pouco.
Lá jaz; parece alheia aos que passam,
que parecem alheios ao corpo,
coberto por guarda-sóis.

Um tanto curioso,
alguém de nome José
quer saber 
o nome da criatura caída,
que segue morta no corredor.
“O nome dele era Moisés”,
diz Mariana, que tem
olhos vivazes.

José agradece a Mariana
pela informação.
Ele segue fazendo compras.
Vai até a seção de frios e
pega um quilo de moelas.
O gerente da empresa
segue averiguando 
os lucros do CNPJ. 

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Ele não lê

Ele não lê poesia.
Sabe que é possível viver sem ela.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse 
“o erro da ditadura foi torturar e não matar”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“eu sou favorável à tortura”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“eu acho que essa polícia militar do Brasil tinha que matar é mais”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“policial que não mata não é policial”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“o exército não matou ninguém”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“Ustra é um herói”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“eu sonego tudo o que for possível”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“espero que saia; infartada, com câncer, de qualquer jeito”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“só não te estupro porque você não merece”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“sou homofóbico, sim, com muito orgulho”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“prefiro ter um filho viciado do que um filho homossexual”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“é só uma gripezinha”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
se tratar de “histeria”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“não sou coveiro”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“e daí?”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“todo mundo morre um dia”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“vamos parar de divulgar números”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“invadam hospitais e filmem leitos vazios”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“hidroxicloroquina salva”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“é preciso tocar a vida”.

Ele não lê poesia.

Sabe que é possível matar sem ela. 

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

O que importa

Durante o trabalho, na Ilha de Vera Cruz, um servidor não preenche um papel inútil. Os hierárquicos: “É preciso duas cópias do mesmo trabalho. Assine ambas. Depois, refaça o trabalho. Uma vez tendo refeito, envie duas vias dele para os superiores. Depois de enviar, refaça-o e arquive esse refazimento”.

Durante o trabalho, na Ilha de Vera Cruz, um servidor é chamado de “gorila fedorento”. Os hierárquicos dizem nos bastidores “nada podemos fazer”; divulgam nota: “Lamentamos profundamente o ocorrido”. 

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Meus livros na Amazon

Pessoas, meus livros estão à venda também na Amazon. Caso alguém aí esteja a fim de conferi-los, é só clicar aqui

terça-feira, 14 de julho de 2020

Flavio Sousa, o corajoso

Em nome da clareza, é necessário eu dizer que trabalhei no Sistema Clube de Rádio por quinze anos. A relação entre mim e eles era estritamente profissional. Nunca me envolvi com campanhas políticas das quais participava o dono da emissora, nunca pedi a ninguém que votasse nele nem nunca votei nele, mesmo quando ele reunia os funcionários pedindo apoio para as candidaturas dele; além do mais, sei que ele e que a família dele não precisam do meu voto. Tanto é assim que têm longa carreira política sem meu apoio. Também nunca votei no outro grupo político local; nenhum dos grupos faz o que considero política; obviamente, sei que esse outro pessoal também não precisa de voto meu. Isso não que dizer que o dono do Sistema Clube de Rádio estava errado em pedir que os funcionários da emissora votassem nele. Comento isso para ilustrar que minha convivência com a direção da rádio sempre ficou no campo profissional. Fiz meu trabalho da melhor maneira que pude (o que não quer dizer que eles gostaram do que fiz); não estando mais na emissora, não fiquei devendo favores de nenhuma natureza para eles (pois nunca os pedi) nem eles ficaram me devendo favores de nenhuma natureza (pois nunca me pediram).

Só hoje, no começo da noite, fiquei sabendo do episódio ocorrido com o Flavio Sousa, locutor, repórter e redator do Sistema Clube de Rádio. Num programa da emissora, Flavio criticou a elite dos Patos de Minas. Por causa disso, ele não mais fará comentários na atração, dedicada, segundo o que me foi informado, a debates. Enquanto escrevo esta nota, o locutor segue trabalhando na empresa como repórter e como leitor de notícia.

Nada é surpreendente nessa história. Nos primeiros contatos que tive com o Flavio, ele havia me procurado para que eu ministrasse para ele aulas, acho, de português. Na época, ele era estudante de jornalismo ou estava prestes a começar o curso. Pensei comigo: “Esse tá começando bem, pois está preocupado com o bem falar e o bem escrever”. Essas aulas duraram pouco tempo, o que não fez com que eu perdesse contato com o Flavio. Não acompanho o trabalho dele no rádio por eu não mais escutar nenhuma das emissoras locais há um bom tempo. Do Flavio, acompanho o que ele tem escrito, lendo o que é publicado em redes sociais, seja uma opinião, seja um artigo, seja um conto, seja um poema. Flavio, além de radialista, dedica-se a escrever ficção, tendo já publicado livro.

A história entre ele, o Sistema Clube de Rádio e a elite local não surpreende porque a opinião do Flavio, bem sei, foi expressão do pensamento dele. Ele não estava fazendo um personagem que se dedica a ter audiência a qualquer custo. O que Flavio disse diante do microfone da emissora é expressão do que ele é, não uma expressão de atitude sensacionalista. A reação da rádio não surpreende porque a mentalidade dos que a dirigem é expressão do que pensa a elite local, do que pensa a elite brasileira, uma elite conservadora que deseja manter às custas dos pobres os privilégios (não merecidos) que vêm de séculos (a quem se interessar pelo tema, indico Jessé Souza ou Darcy Ribeiro).

Flavio não disse nada demais. Contudo, o que ele disse é gigantescamente necessário. Ele fez um contraponto ao discurso da elite. Ora, ela, a elite, já tem todos os espaços para apresentar o que pensa e o que (não) faz. Os pobres não têm recursos nem estrutura técnica para que a voz deles chegue a mais pessoas. A dor deles não aparece nos jornais, valendo-me eu de paráfrase de canção do Chico Buarque, o qual, aliás, não raro, é execrado pela elite que o Flavio criticou.

A direção da rádio divulgou nota, também reveladora e nada surpreendente. A primeira coisa que chama a atenção na nota que divulgaram é o cuidado que eles não tiveram com o português (cuidado esse que o Flavio tem). No que a emissora divulgou há coisas como “houveram excessos”. Contudo, o português incorreto é o problema menor da nota; ela é sintoma do conservadorismo da elite brasileira, que, travestida de bom-mocismo, apresenta o que chama de pluralidade de ideias, quando tal pluralidade não há. Esse, sim, é o grande problema da nota que a rádio divulgou. (Os problemas de português seriam resolvidos se um revisor tivesse conferido o texto.)

Diz a nota deles sobre o comentário que o Flavio fizera: “(...) A direção da Rádio Clube reitera que não se trata de opinião da emissora, tratando-se de livre manifestação do pensamento do profissional, sempre permitida por essa empresa em toda sua história, e em especial neste programa, criado para dar espaço a todas as vertentes de pensamentos. Entretanto entendemos que houveram [sic] excessos e palavras mal colocadas, que acabaram ofendendo pessoas, principalmente ligadas ao nosso valoroso e pujante comércio local, a quem a Rádio Clube pede desculpas”.

A emissora diz haver nos microfones dela “espaço a todas as vertentes de pensamentos”, mas alega ter havido “excessos e palavras mal colocadas” por parte do Flavio. Em essência, o que Flavio disse foi que a elite não está nem aí se os pobres não podem pagar por um exame de detecção da covid-19 e que a elite não dá a mínima se os pobres não podem se dar o luxo de se refugiarem contra a epidemia em espaços milionários. Por fim, Flavio disse que uma elite burra pode servir de “púlpito para candidato burro e despreparado”.

A nota da emissora menciona que o discurso do Flavio ofendeu pessoas “ligadas ao nosso valoroso e pujante comércio local”. Não bastassem o bairrismo e a pieguice do trecho, o que Flavio disse não é agressão pessoal; em nenhum momento ele faz referência a nome(s). Ele diz que uma elite burra cai em balela de candidato burro. Ora, pobre burro também cai em balela de candidato burro. Os que se sentiram ofendidos poderiam alegar, talvez, que o Flavio só criticou a elite burra, nada tendo sido dito sobre os pobres burros. Que a emissora, então, apresentasse um contraponto à opinião do Flavio. Não é isso o que ocorreu. Em vez de apresentar o contraponto, preferiram calar as opiniões do jornalista sob o argumento de que ele foi ofensivo.

Ainda sobre a “livre manifestação do pensamento” alegada pela emissora: quando lá trabalhei, o dono do meio de comunicação era candidato a prefeito de Patos de Minas. Ele concederia uma coletiva para jornais, rádios e TVs. Fui escalado para fazer pergunta em nome da Rádio Clube FM (salvo engano, hoje é chamada apenas de 99FM, mas posso estar enganado quanto a isso). Faltando mais ou menos uma hora para o início da coletiva (não lembro mais onde ela ocorreu), um dos funcionários do Sistema Clube de Rádio, envolvido com a campanha do político e superior a mim na hierarquia da firma, pediu-me que eu mostrasse a ele a pergunta que eu faria durante a coletiva. Depois de a ler, ele disse: “Pergunta outra coisa”. A pergunta era: “Já foi dito que os políticos poderiam ser melhores se mantivessem o hábito da leitura. O que o senhor tem lido?”.

A pergunta era simples; ademais, a leitura ou a falta dela, em si mesmas, nada garantem. O sujeito pode ser leitor e ser um péssimo político, bem como pode nada ler e ser um excelente político. Ainda assim, fui “orientado” a não fazer a pergunta que eu preparara. Não a fiz. Não me recordo do que perguntei, mas como não me remanejaram (o que fizeram com o Flavio), devo ter perguntado algo protocolar, algo que não ofendesse pessoas “ligadas ao nosso valoroso e pujante comércio local”.

A opinião do Flavio não foi ofensiva; foi uma opinião sensata. Sobretudo, ele teve uma admirável coragem, por ter dito o que disse no espaço em que estava. Uma rádio pode adotar a política que quiser, pode manifestar o espectro ideológico que quiser. Sei disso. O que critico é a postura de quem se declara “um espaço democrático da comunidade”. É democrático até o momento em que verdades sobre a elite não sejam ditas. Certos espaços democráticos da comunidade não estão interessados em quem dá voz às agruras dos pobres.