sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Uma jovem senhora

Os modos são civilizados, polidos. O jeito de caminhar é leve, mas calculado; é como se estivesse desfilando, mas sem espalhafato. É que a vida é uma passarela. Ela sabe que atrai. Os gestos, também estudados com dedicação, querem passar ideia de espontaneidade. A voz é doce, tem alguma melodia, que, se escutada, deixa escapar, em seu timbre, alguma afetação, que a jovem senhora insiste em esconder. Quase sempre, com sucesso.

Nas reuniões com os amigos e nas redes sociais, procurando falsa modéstia, dá notícia das doações que faz todo ano; se há um gesto caridoso, como, digamos, um alimento que é dado a um faminto, isso é divulgado. Não com alarde, o que seria trair a tão almejada classe, mas com discrição que camufla o ego enorme. A jovem senhora sabe fingir que não quer atenção para si o tempo todo. Sorri para ricos e para pobres.

Jacta-se de dizer em quantos países já esteve. Chega a um lugar, tira fotos em algum monumento famoso e corre para outra cidade; lá chegando, tira fotos em algum monumento famoso e corre para outro país; lá chegando, tira fotos em algum monumento famoso e corre para outro continente. Com o corpo, já esteve em muito lugar. Gosta de Paris. Mas adorar, adora mesmo é Nova York. Quanto às belezas do Brasil, vive a falar bem delas sem ter vontade de conhecê-las; mal conhece a cidade em que vive.

Ela cuida da linguagem, embora haja na jovem senhora alguma ilusão quanto ao português que tem e muita ilusão quanto ao inglês que emite. Dependesse dela, teria a língua de Trump como nativa. Em situações públicas, sejam pessoais, sejam virtuais, o carisma, mais pensado do que genuíno, entoa cânticos a favor da paz, envia elogios à gentileza e aos bons modos, declara-se tocado pela arte de Romero Britto, propaga amor à natureza.

Também não espontâneo, há um certo recato. Os desavisados, diante de cada parte do que ela é, recebem o impacto do todo, sem desconfiarem de que sob o aspecto liso, saudável e belo do rosto dela há uma jovem senhora que não gosta de pretos, não gosta de pobres, não gosta de índios, não gosta de gays. Muitos gostam dela por não saberem quem ela é; muitos gostam dela por saberem quem ela é.

Para ela, o Brasil precisa ser higienizado; pensa que não faz sentido um país que não seja habitado por peles branquinhas. Ela, que já lamenta não haver em terras tropicais o branco da neve, não lida bem com o desconsolo que sente quando tem de sair de casa e se deparar com pessoas suadas e de pele encardida, adjetivo este de que ela se vale quando se refere às pessoas que realizam trabalhos braçais ou que pegam ônibus. Para ela, só ditadores resolvem esses problemas.

O marido pertence a um clube. Não basta existir para frequentá-lo. É preciso ser convidado, é preciso ser eleito. A confraria divulga a si mesma como filantrópica. Na prática, dedicam-se a jogos políticos que enriquem a si mesmos e depenam os pobres. Quando o marido da jovem senhora está nas reuniões do clube, não é raro ela estar se refestelando no corpo do musculoso amante. 

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