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domingo, 21 de outubro de 2018

Cova 312

Os violentos não escondem mais o que querem, que é matar aqueles com quem não concordam, desconsiderando qualquer noção de direitos humanos, de dignidade humana, de direito à vida, de liberdade civil, de liberdade de defender ideias. No poema “Morte do leiteiro”, do emblemático A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1945, há os versos “há no país uma legenda, / que ladrão se mata com tiro”.

Em involuntária paráfrase sinistra, parte da classe média apropriar-se-ia dos versos drummondianos, devidamente descontextualizados, criando o bordão “bandido bom é bandido morto”, cunhando suas variações, inserindo no lugar da palavra “bandido” qualquer outra que expresse pensamento diverso do deles ou do modo de vida que eles têm. Basta pensar diferentemente deles para se receber a pena de que o mais indicado é ser morto.

É questão de tempo para que passem a matar de modo mais escancarado do que já matam. Estão a um passo de obter carta branca para que desconsiderem as leis, a constituição e as instituições. Vão implantar um país que seja regido unicamente por heterossexuais brancos, de classe média ou de classe alta. Se um dos integrantes dessa seita tiver algum comportamento sexual que não faça parte da opressora cartilha deles, esse mesmo integrante tratará de se calar, evitando confessar até para si, no travesseiro, espectros que atormentam; se o “desvio” for no outro, aí a solução é fácil: basta matar esse outro.

A leitura de Cova 312, da jornalista Daniela Arbex, publicado pela Geração Editorial, pode ser recebida com ambivalência. O livro tem como fio condutor pesquisa realizada por Arbex sobre o paradeiro do corpo de Milton Soares de Castro, morto pela ditadura militar brasileira. Na época, a versão dos militares foi a de que Milton suicidara-se.

Os que são a favor de alguma garantia para o cidadão têm no livro de Daniela Arbex mais um documento, dentre tantos, que atesta a violência, a arbitrariedade e a vileza do regime ditatorial que assolou o país; os que são a favor da ditadura (negando que ela existiu e que deveria ser instaurada ou gritando para que ela volte) acharão merecido o padecimento por que Milton e outros cidadãos mencionados por Daniela Arbex passaram.

Há muitos que bradam a favor da infâmia que é torturar; há muitos que defendem ou apoiam torturadores; muitos que exibem em camisetas ou em adesivos de carros algozes fardados ou de ternos; muitos que votam em quem quer a morte dos que defendem alguma mínima garantia para o corpo de quem não está em sintonia com carrascos. Desses muitos que arrotam essas brutalidades, a maior parte não deu nem dará a mínima para o livro de Daniela Arbex, por não lerem coisa alguma, por não estarem interessados na história ou por distorcê-la de acordo com seus princípios desinformados e covardes.

O livro de Daniela Arbex tem dois grandes méritos: é uma exceção no sentido de que se dedica a contar uma história que demandaria fôlego — o jornalismo feito aqui não é de se debruçar sobre longas matérias; outro grande mérito do trabalho de Daniela Arbex é saber buscar o que há de mais humano e universal nas histórias que conta. Holocausto Brasileiro, Todo Dia a Mesma Noite e Cova 312 provam a grande contribuição de Daniela Arbex para a história recente do Brasil. Mas, sabemos, muitos por aí alegarão que livro bom é livro queimado. 

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

“Todo Dia a mesma Noite”

O jornalismo brasileiro não se dedica a matérias de fôlego, alimentando-se da preguiça mental de parte dos leitores, ao mesmo tempo em que fomenta essa mesma preguiça. Uma das exceções é a revista Piauí, que ainda realiza matérias densas, escritas com capricho.

Outra louvável exceção no jornalismo do país é a Daniela Arbex, autora de Holocausto Brasileiro e de Cova 312. A jornalista lançou neste 2018 Todo Dia a mesma Noite: a História não Contada da Boate Kiss.

Na noite de vinte e sete de janeiro de 2013, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, a Kiss pegou fogo. Duzentas e quarenta e duas pessoas morreram. Ao esmiuçar a tragédia, Daniela Arbex mistura inteligência, objetividade e afeto num texto que, a despeito da abordagem jornalística, que ela não abandona, emociona não pela desgraça do ocorrido, conhecida de todos, mas por a jornalista evidenciar o aspecto humano e individual de alguns dos personagens que perderam entes no dia do incêndio.

Esse debruçamento sobre o indivíduo já havia sido feito no brilhante Holocausto Brasileiro, em que a jornalista conta a história de famoso manicômio em Barbacena/MG, que por décadas do século XX foi uma usina que fazia adoecer e matava pessoas, com a anuência de políticos e de parte de uma ignorante sociedade. A mesma ignorância e a mesma desumanidade estão presentes em Todo Dia a mesma Noite. Ao se aproximar de sobreviventes ou ao abordar familiares destroçados pelas perdas de familiares na boate, Daniela Arbex revela o descaso e o oportunismo de políticos ou o radicalismo tosco e a falta de compaixão de quem se diz religioso, ao mesmo tempo em que, ao se voltar para os que perderam filhos no incêndio, a jornalista exibe as minúcias do que é ser gente.

O olhar cuidadoso, terno e jornalístico que Arbex tem ao contar a história acaba fazendo com que ela roce a literatura, o que só torna o livro mais grandioso ainda. Marcelo Canellas, autor do prefácio, foi muito feliz ao escrever que Todo Dia a mesma Noite é um “inventário de saudades”. A poética expressão de Canellas dá o tom do livro, que, a despeito de lidar com perdas e com sofrimento, em momento algum resvala na pieguice.

Os objetos que temos são parte de nossa história. Assim, um batom, um par de sapatos, um vestido ou um telefone podem assumir uma dimensão tocante quando os associamos a uma pessoa. Enquanto as dezenas de corpos eram retirados da boate, num dos celulares, ao lado da palavra “mãe”, havia cento e trinta e quatro chamadas não atendidas.

Ao se aproximar dos que foram diretamente afetados pelo incêndio, incluindo familiares, sobreviventes e profissionais que lidaram com o acontecimento, Daniela Arbex emociona; além do mais, o livro acaba sendo alerta quanto ao que pode ocorrer quando há descaso e protelação. Todo Dia a mesma Noite é um documento, uma obra-prima do jornalismo, um sopro de literatura e um testemunho de humanidade. 

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

SIM, NÓS TEMOS HOLOCAUSTO


Uma mulher é internada num hospício depois de ter sido estuprada pelo patrão. Uma outra pessoa é internada por ser tímida. Outra, por ter perdido a carteira... Setenta por cento dos internados não tinham diagnóstico de doença mental. 

São histórias que estão em “Holocauto brasileiro” (publicado pela Geração Editorial), de Daniela Arbex. Ela escreveu um livro tão importante, que ele deve ser lido não somente por aqueles que se interessam pelo que se considera a loucura. “Holocausto brasileiro” deve ser lido por quem se interessa por gente. Se não é esse seu caso, insisto: o livro deve ser lido por quem é gente. 

Há um dado na capa do livro: “Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil”. O número se refere aos mortos em Barbacena/MG, no hospício conhecido como Colônia. No auge do extermínio, o lugar chegou a ter dezesseis mortes por dia. 

O texto de Daniela Arbex, bem como as fotos de Luiz Alfredo, publicadas originalmente na revista O Cruzeiro, contam uma história sinistra que perpassou boa parte do século XX. Com sensatez e inteligência, Arbex não se rende ao sensacionalismo: em meio a relatos de vidas dilaceradas no hospício, não deixa de trazer à tona a capacidade que o ser humano tem de ser magnânimo — há histórias grandiosas no livro da jornalista. 

O genocídio sistematizado em Barbacena revela conivência de médicos, de funcionários da instituição e da população. Ao mesmo tempo, conta-se a atuação de alguns médicos, de alguns funcionários e de quem não gravitava na Colônia para que os pacientes de lá não precisassem nem comer ratos nem beber urina. Algumas mães, a fim de protegerem a gestação, passavam fezes no corpo, para não serem molestadas. 

Arguta, Arbex adverte: “Ontem foram os judeus e os loucos, hoje os indesejáveis são os pobres, os negros, os dependentes químicos”. “Holocausto brasileiro” evidencia o que o ser humano é capaz de fazer quando, movido por ódio ou ignorância, sente-se apto a realizar uma limpeza social, decidindo, arbitrariamente, quem pode e quem não pode estar em sociedade. “Holocausto brasileiro” é um livro fundamental. Leia.