O jornalismo brasileiro não se dedica a matérias de fôlego, alimentando-se da preguiça mental de parte dos leitores, ao mesmo tempo em que fomenta essa mesma preguiça. Uma das exceções é a revista Piauí, que ainda realiza matérias densas, escritas com capricho.
Outra louvável exceção no jornalismo do país é a Daniela Arbex, autora de Holocausto Brasileiro e de Cova 312. A jornalista lançou neste 2018 Todo Dia a mesma Noite: a História não Contada da Boate Kiss.
Na noite de vinte e sete de janeiro de 2013, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, a Kiss pegou fogo. Duzentas e quarenta e duas pessoas morreram. Ao esmiuçar a tragédia, Daniela Arbex mistura inteligência, objetividade e afeto num texto que, a despeito da abordagem jornalística, que ela não abandona, emociona não pela desgraça do ocorrido, conhecida de todos, mas por a jornalista evidenciar o aspecto humano e individual de alguns dos personagens que perderam entes no dia do incêndio.
Esse debruçamento sobre o indivíduo já havia sido feito no brilhante Holocausto Brasileiro, em que a jornalista conta a história de famoso manicômio em Barbacena/MG, que por décadas do século XX foi uma usina que fazia adoecer e matava pessoas, com a anuência de políticos e de parte de uma ignorante sociedade. A mesma ignorância e a mesma desumanidade estão presentes em Todo Dia a mesma Noite. Ao se aproximar de sobreviventes ou ao abordar familiares destroçados pelas perdas de familiares na boate, Daniela Arbex revela o descaso e o oportunismo de políticos ou o radicalismo tosco e a falta de compaixão de quem se diz religioso, ao mesmo tempo em que, ao se voltar para os que perderam filhos no incêndio, a jornalista exibe as minúcias do que é ser gente.
O olhar cuidadoso, terno e jornalístico que Arbex tem ao contar a história acaba fazendo com que ela roce a literatura, o que só torna o livro mais grandioso ainda. Marcelo Canellas, autor do prefácio, foi muito feliz ao escrever que Todo Dia a mesma Noite é um “inventário de saudades”. A poética expressão de Canellas dá o tom do livro, que, a despeito de lidar com perdas e com sofrimento, em momento algum resvala na pieguice.
Os objetos que temos são parte de nossa história. Assim, um batom, um par de sapatos, um vestido ou um telefone podem assumir uma dimensão tocante quando os associamos a uma pessoa. Enquanto as dezenas de corpos eram retirados da boate, num dos celulares, ao lado da palavra “mãe”, havia cento e trinta e quatro chamadas não atendidas.
Ao se aproximar dos que foram diretamente afetados pelo incêndio, incluindo familiares, sobreviventes e profissionais que lidaram com o acontecimento, Daniela Arbex emociona; além do mais, o livro acaba sendo alerta quanto ao que pode ocorrer quando há descaso e protelação. Todo Dia a mesma Noite é um documento, uma obra-prima do jornalismo, um sopro de literatura e um testemunho de humanidade.
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