quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Contrafação

Parte da classe média brasileira imita, sem sucesso, o que os EUA têm de bom, e consegue, na verdade, piorar o que eles têm de ruim. 

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Preposições

Sob as águas, 
em tragédia brasileira, 
a Bahia.

Sobre as águas, 
em veículo aquático, 
o presidente.

Sob a lama, 
em legado bolsonarista, 
o Brasil. 

domingo, 26 de dezembro de 2021

Não é só um cometinha

O diretor Adam McKay não tem medo de ser óbvio em Não Olhe para Cima (2021). O roteiro é dele e de David Sirota. Logo no início do filme já sabemos que ele desenvolver-se-á quando dois astrônomos, Randall Mindy [Leonardo DiCaprio] e Kate Dibiasky [Jennifer Lawrence] têm provas visuais e matemáticas de que um cometa vai atingir e destruir a vida na Terra.

O destemor de McKay quanto à obviedade está na ausência de sutilezas com relação aos personagens, que acabam sendo estereótipos das categorias a que pertencem. Assim, Randall Mindy é o cientista desajeitado, Kate Dibiasky é a cientista jovem que não se adéqua, a presidente Orlean [Meryl Streep] é o político imbecil, Brie Evantee [Cate Blanchett] é a apresentadora midiática no que a mídia tem de pior, Peter Isherwell [Mark Rylance] é o magnata sem escrúpulos que manda na presidente por ter sido o maior financiador da campanha dela.

Pode-se argumentar haver algum arco dramático na trajetória de Randall Mindy, que acaba deixando-se seduzir (no caso em questão, literalmente) pelos apelos midiáticos. Todavia, Não Olhe para Cima não é um filme sobre estudos de personagens, mas uma produção que escancara, sem sutilezas, uma época sem sutilezas.

Randall e Kate são ridicularizados não somente porque os negacionistas desdenham deles, mas também porque a mensagem que entregam, que é o fim iminente da vida na Terra, é levada ao público não de modo espalhafatoso, circense. Mesmo quando dão um polimento na imagem de Randall, a notícia do fim da vida na Terra não é absorvida por grande parte do público, que, anestesiado, vai para as redes sociais fazer piadinhas com a tragicidade do evento cósmico.

O filme é uma sátira-espelho de um tempo, que finge nada ter a ver com a destruição do planeta e que ri daquilo que não tem graça nenhuma. Adam McKay entrega algo que, se levar ao riso, será aquele tipo de riso travado de quando se está diante da perigosa burrice dos que detêm o poder.

Curiosamente, uma das poucas metáforas do filme (senão a única) é o cometa em si. E, caso raro, uma metáfora que pode ser encarada em dois planos — o literal e o figurado. A metáfora, em regra, não é interpretada ao pé da letra. Se alguém diz “você é Sol da minha vida”, sabe-se, é claro, que ninguém é o Sol. Ou seja, a frase “você é o Sol da minha vida” vale não pelo que é literalmente dito, mas por aquilo que se quer dizer, por aquilo que é sugerido.
 
De modo análogo, o cometa em Não Olhe para Cima pode ser uma metáfora, e ainda que assim interpretado, o diretor, mantendo o tom do filme, deixa óbvia essa metáfora. Há, por exemplo, a criação de dois movimentos sociais: os que se organizam para pedir à população que não olhe para cima e os que se organizam para pedir à população que enxergue o óbvio, bastando, para isso, olhar para cima. Como metáfora, o cometa simboliza tudo aquilo que a ciência descobre e o efeito que isso tem numa sociedade idiotizada. (A bem-vinda obviedade de Não Olhe para Cima lembra a igualmente bem-vinda de Viagens de Gulliver, do Jonathan Swift.)

No filme, a presidente Orlean, movida também por interesses financeiro-pessoais, é uma negacionista. O cometa é uma ameaça que vem do céu, mas pode ser metáfora de uma ameaça que existe em forma minúscula e que não é só uma “gripezinha”. De resto, quando o assunto é um governante negacionista, sabemos bem que no cenário como o do filme, um desses governantes diria algo como “é só um cometinha”. 

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

A promessa

Beijos, carícias, peles eriçadas, preliminares ditosas. Nus, os dois. Sexos ávidos pela trama. Ela diz:
— Hoje, não. Pensando bem, quero que você seja não o meu primeiro homem, mas o segundo. 

Llosa

O Vargas Llosa continua lamentável. Com relação ao Brasil, já compôs loas para o Moro. Agora, mais recentemente, quanto ao Chile, louvou José Antonio Kast. É muito fácil apoiar a extrema-direita quando não se é alvo dela. Mas não nos esqueçamos de que há casos em que os alvejados por ela, ainda assim, glorificam o algoz. Isso ocorre, por exemplo, no Brasil. 

O que se aceita

Queiroga disse que mortes de crianças por covid “estão dentro de patamar aceitável”. Para o governo Bolsonaro, o que é inaceitável é a vida. 

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

O otimista Bresser-Pereira

Pesquisas recentes têm revelado a queda de Bolsonaro. Diante de números, o imprescindível Luiz Carlos Bresser-Pereira, após pesquisa divulgada pelo Datafolha, escreveu no Facebook: “Os brasileiros caíram em si. Depois do imenso erro que cometeram elegendo um presidente de extrema-direita, eles voltaram a pensar”. Quisera eu pensar como o Bresser-Pereira, mas não consigo deixar de supor que o brasileiro está mais do que pronto para, assim que tiver oportunidade, eleger um governo cuja tosquedade seja similar ou pior do que a de Bolsonaro. No futuro, o brasileiro somente não elegerá um governo que defenda tortura e ditadores e que homenageia milicianos se tal candidato não apontar no horizonte. 

sábado, 18 de dezembro de 2021

Cléverson Lima

Fiquei sabendo há pouco que o Cléverson Lima morreu. Estava morando na cidade de onde veio, Araxá. Quem frequentou bares em Patos de Minas na década de 1990 e na década de 2000 se lembra do Cléverson Lima.

Não havia como não gostar dele: agregador, talentoso, carismático; tinha humor involuntário e uma capacidade assombrosa de saber de cor toneladas de canções; sobretudo, foi um sujeito com alma generosa, boa. Assistindo a shows dele em bares de Patos de Minas e da região, tive momentos memoráveis, catárticos. Assistir às apresentações dele era um modo de ser feliz.

Não sei detalhes sobre a morte do Cléverson. Num áudio que me enviaram, é dito que infarto foi a causa. A fim de materializar minha admiração pelo Cléverson, eu o mencionei em dois de meus livros: no Algo de Sempre, há um poema em que faço referência ao Cléverson; no Anacrônicas, há uma crônica sobre ele. Ambos os textos estão também neste blogue. Abaixo, links em que há a presença do Cléverson.
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https://liviosoares.blogspot.com/2008/09/clverson-lima.html

https://liviosoares.blogspot.com/2009/06/fotopoema-110-cleverson-lima_27.html

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

A velha novidade

Assisto novamente a filmes como se eu quase estivesse assistindo a eles pela primeira vez. Assim foi ontem com Newness (2017), dirigido por Drake Doremus e roteirizado por Ben York Jones. No enredo, Martin Hallock [Nicholas Hoult] e Gabi Silva [Laia Costa] são dois jovens que se conhecem por intermédio de aplicativo telefônico.

O filme pode ser entendido como o amor nos tempos do celular. Newness é um retrato poético e eficaz de como os jovens de relacionam com a tecnologia e com o que sentem. Ela é, por assim dizer, personagem, é extensão dos mundos de Martin e de Gabi. 

Se, por um lado, o casal está antenado quanto a relacionamentos que começam na esfera eletrônica, por outro, os dramas, as dúvidas, as dificuldades de que padecem são os mesmos a que o amor pode levar, não importa a época em que ocorra. Newness é um filme sobre o amor, tem os ingredientes dele, com suas alegrias e seus pesos. 

Martin e Gabi não sabem o que fazer com o que sentem. Ou assim se tornam quando entendem que gostam um do outro. E não há tecnologia que ensine o que fazer com isso; a resposta, se é que há, é de cada um. No que diz respeito à tecnologia, estão em sintonia com o tempo em que vivem; no que diz respeito ao amor, as dificuldades que enfrentam no dia a dia da relação são as dificuldades de sempre, as alegrias que vivenciam são as de sempre. Em meio à parafernália eletrônica, o amor, na ótica, do filme, permanece o mesmo.

A paleta da produção é pouco saturada, as cores são frias, as imagens são subexpostas, a profundidade de campo é reduzida. Nessas escolhas estéticas, Martin e Gabi são com frequência mostrados em contraluz. A câmera de Drake Doremus, quase sempre em movimento, ora enquadra os personagens em tomadas fechadas, ora os observa com discrição, seja através de uma vidraça, seja a partir de outro cômodo. Em imprecisos contornos, somos postos diante das imprecisões de Martin e de Gabi.

A despeito da estética descolada, Newness é filme cujos personagens principais são, no fundo, conservadores. Martin e Gabi se entregam à vida e ao amor, às diversões e às possibilidades de encontros que nasceram a partir de aplicativos para celulares. Os dois jovens não sabem ao certo o que fazer com o que querem nem o que fazer com o que supõem querer. Querem crer que o conservadorismo não combina com o modo de vida que elegeram; destrambelham-se, contudo, quando tentam não ser conservadores.

Martin e Gabi são o amor como ele sempre foi, embora tentem exercê-lo no que julgam ser contemporâneo. O celular substituiu as encardidas missivas. No entanto, o casal encarna o amor no que ele tem de antigo e, talvez, de perene. Ele, o amor, pode fazer com que, diante da tela de um telefone ou numa pista de dança, a pessoa tenha em si os mesmos sentimentos de quando bilhetes marcando hora e local de encontros eram entregues às escondidas.