sábado, 29 de outubro de 2016

O vendedor lógico

A mercearia ficava a duas quadras aqui de onde moro. A rigor, não era somente uma mercearia, pois o comerciante vendia material escolar. Talvez fosse na verdade uma pequena livraria fazendo as vezes de uma mercearia. Lembro-me de ter ido lá apenas uma vez.

Assim que entrei, foi inevitável: tive medo da cara do dono; ele era a única pessoa que estava como atendente no local. Ele morava aqui perto. Eu sabia que ele era o proprietário do pequeno estabelecimento. Todo empertigado, vestindo camisa de mangas compridas, calças de tecido fino e exibindo um penteado impecável, olhou-me como se estivesse me pedindo para sumir de lá. Eu devia ter uns sete ou oito anos. O proprietário deve ter percebido minha cara de assustado. Num tom ríspido, grave, perguntou:

— Cê quer o quê?

A única coisa que me ocorreu dizer:

— Tem caderno?

— Como assim? Você está me perguntando se tem caderno?

— Estou.

— Essa pergunta não faz o menor sentido.

A fala dele, ao mesmo tempo em que me fez sentir que minha existência não fazia sentido, deixou-me com vontade de dizer que ele estava sendo muito sem educação. Eu só estava lá para comprar um caderno. Eu não precisava ser tratado daquele jeito. Falei:

— Não estou entendendo.

— Ora, você chega aqui e me pergunta se tem caderno. O que mais tem aqui é caderno. Você por acaso chega numa farmácia e pergunta se lá tem remédio?

Fiquei num silêncio tolo. Ele continuou:

— Vamos, me responda! Você chega numa farmácia e pergunta se lá tem remédio?!...

Continuei tolo e silencioso. O dono do lugar voltou a falar:

— É claro que você não chega numa farmácia e pergunta se lá tem remédio. Você chega lá e pede um remédio. Por isso, você não deveria chegar aqui e perguntar se aqui tem caderno. Está na cara que aqui tem caderno. Em vez de chegar aqui e fazer essa pergunta imbecil, você deveria chegar aqui e perguntar: “Tem caderno pequeno de capa mole, cinquenta folhas?”. Ou então: “Tem caderno grande, capa dura, duzentas folhas?”. Se você chega aqui e me pergunta se tem caderno, não posso fazer nada. Olha — disse ele, enquanto fazia um gesto que abarcava todo o ambiente —, tem muito caderno aqui. Que tipo de caderno você quer? Pequeno? Grande? De capa dura? De capa mole? Caderno para desenho ou para escrita?... Aprendeu como se pede?

Eu estava estático. Com os olhos arregalados, num mutismo imóvel, eu procurava um jeito de resolver a situação. O comerciante continuava com os olhos furiosos cravados em mim. Passou pela minha cabeça xingá-lo, mas não tive coragem. Peremptório, tomei a decisão de sair correndo de lá.
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Por muito tempo, fui cronista na imprensa local. Escrevi para os jornais Correio de Patos, Folha Patense, O Tablóide (quando o jornal existiu, o ditongo do nome dele ainda era acentuado) e Novo Tempo. Escrevi ainda para as revistas Diga e Phatos. Depois, mantive uma coluna no Patos Hoje e no Correio de Uberlândia. Hoje, não mais escrevo esse tipo de texto.

Há tempos, venho adiando a publicação de um livro de crônicas. Ele seria uma coletânea das que escrevi. Já descartei os textos que não fariam parte da reunião. Depois que fiz a seleção dos textos, meio que desisti da ideia de publicar o volume. É que, num certo sentido, eu me senti envergonhado por ter escrito os textos.

Há neles a leveza que eu buscava; não considero que errei no tom. Contudo, os textos me pareceram ingênuos. Há um tempão não os releio, embora, ultimamente, tenha me ocorrido a vontade de ler outra vez as crônicas. Caso haja a releitura, se eu continuar as achando ingênuas, desisto de vez da publicação. Se não, pode ser que haja ainda um volume reunindo minhas crônicas. A desta postagem foi escrita por eu ter me lembrado um dia desses do episódio nela relatado. 

Um amor


A estudante Thamara Oliveira faz o primeiro ano do curso de eletrotécnica integrado ao ensino médio. Há alguns dias, em conversa casual, combinamos de eu entregar a ela uma letra, para que ela fosse musicada.

A rigor, entreguei um poema (quando escrevi o texto, não pensei nele como letra de música). Quando a Thamara o leu, ela disse que tentaria musicá-lo. Ontem, ela me enviou o resultado, em gravação caseira. 

No cinema

Visita ao Colégio Fonseca Rodrigues

Na quinta-feira (27/10), tive o prazer de voltar ao Colégio Fonseca Rodrigues, escola em que trabalhei durante catorze anos. Na ocasião, bati um papo com estudantes do terceiro ano sobre meus livros, sobre literatura como um todo, sobre política, sobre o papel da mídia e sobre o ato da leitura e da escrita. Não bastasse isso (o que já é muito), tive a oportunidade de rever amigos.

Obrigado demais à Dulcimar pelo convite. Também agradeço demais aos professores Agostine, Eunice e Ana Maria, que estiveram presentes no bate-papo. Também agradeço à Terezinha, a dona da escola, que sempre tão bem me recebe.

Gostei demais de estar lá. Foi uma conversa honesta, agradável e gentil. Gostei das perguntas que me foram feitas, e não somente das que diziam respeito à literatura. Numa época de PECs desumanas e num tempo em que querem banir o debate das escolas, é um alento estar diante de estudantes para discutir ideias. 

O olhar de quem ama

Sou professor do IFTM (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia), campus Patos de Minas. Na quarta-feira (26/10), tive o privilégio de escutar as estudantes Geovana e Luana lendo trechos do prólogo do Dom Quixote. Leram no original. Um dos trechos que citaram está a seguir, segundo tradução de Viscondes de Castilho e Azevedo: “Acontece muitas vezes ter um pai um filho feio e extremamente desengraçado, mas o amor paternal lhe põe uma venda nos olhos para que não veja as próprias deficiências; antes as julga como discrições e lindezas, e está sempre a contá-las aos seus amigos, como agudezas e donaires”.

O texto de Cervantes alega que o amor do pai pelo filho põe nos olhos daquele uma venda que o impediria de enxergar os defeitos deste. O amor do pai tornaria esse mesmo pai “cego” para os defeitos que o filho por ventura tivesse. No prólogo do Dom Quixote a relação pai e filho é usada para se referir ao escritor e o livro criado por ele; o autor seria o pai do livro, embora Cervantes afirme ser não o pai, mas o padrasto de Dom Quixote.

A temática do olhar do amante sobre o objeto amado me é instigante demais. Tomo a liberdade de estender o amor tal qual está na analogia do prólogo de Cervantes, mencionando, assim, não o amor paternal, mas o amor carnal, o amor não ligado a parentesco, o amor de pessoas que se desejam sem ter entre si elos de família.

Esse amor, o carnal, faz com que o amante tenha uma venda nos olhos ao contemplar o ser amado ou faz com que o amante enxergue o ser amado em essência, muitas vezes enxergando nele, ser amado, coisas de que nem ele se dera conta? Nos olhos de quem ama, esse amor carnal põe venda ou clarividência? Aquele que ama embeleza o objeto amado. Mas embeleza por estar cego ou por ter sobre quem é amado um olhar que tem maior acuidade?

Amor maduro enxerga os defeitos do outro. Ao mesmo tempo, se maduro, sem exagerar as qualidades, embeleza quem é amado. Aquele que ama embeleza o objeto amado. É por isso que devemos amar: não só a fim de sermos em troca amados, mas para que tenhamos o poder de embelezar o outro. Quem embeleza o outro fica mais bonito. 

O terrível encontro

Em sentido amplo, a afinidade musical não é imprescindível para que artistas se juntem e façam música. Nesses casos, quando se tem alma de artista, a música, por si, é o elo. Sendo linguagem universal, ela faz com que o encontro flua: o repentista e o roqueiro podem conviver num mesmo palco.

Isso, é claro, não quer dizer que não haja afinidades musicais. Se, por um lado, o encontro pode se dar entre artistas que não as têm, por outro, essas mesmas afinidades podem motivar a celebração.

Caso se leve em conta os trabalhos musicais de Luiz Salgado e de Alan Delay, Ciro Nunes e Lucas de Paula (que fizeram parte da banda O Berço), a princípio, poder-se-ia dizer que Luiz Salgado tem a vertente do cancioneiro popular, ao passo que Alan Delay, Ciro Nunes e Lucas de Paula estariam numa vertente mais voltada para o rock.

Todavia, um olhar mais aproximado revelaria que há entre esses artistas afinidades instigantes. Em Luiz Salgado, existe a pesquisa da cultura popular e o diálogo com sonoridades contemporâneas — sonoridades essas que são evidenciadas em seu mais recente trabalho, “Quanto mais meus óio chora, mais o mar quebra na praia”. Já os ex-integrantes da banda O Berço, em que pese a pegada roqueira que têm, deixam claras em seus trabalhos musicais as influências da cultura popular.

Tem-se, pois, diferentes abordagens diante do fazer musical. De um lado, um cantor popular que bebe nas novas sonoridades; do outro, artistas sintonizados em tendências contemporâneas bebendo em fontes populares. Partindo de pontos diferentes, as produções deles acabam chegando a resultados com mais semelhanças do que diferenças.

Tal sintonia poderá ser conferida no Teatro Municipal Leão de Formosa, hoje e amanhã, quando Luiz Salgado, Alan Delay, Ciro Nunes e Lucas de Paula farão um show. No repertório, além de canções deles, releituras de trabalhos de outros artistas. Haverá participação de convidados.

“O Terrível Encontro” será o nome do espetáculo. Segundo Lucas de Paula, esse nome é uma homenagem a um cantador violeiro que conhecem; ainda de acordo com Lucas, sempre que o cantador chega, diz: “É um prazer terrível estar aqui”. Sei que será um prazer terrível conferir esse show.