quarta-feira, 21 de outubro de 2009

LUÍS ANDRÉ NEPOMUCENO ESCREVE SOBRE "O CADERNO SECRETO DE LORI"


Jornal local publicou recentemente texto de Luís André Nepomuceno, professor do Unipam (Centro Universitário de Patos de Minas), sobre a peça teatral “O caderno secreto de Lori”. Abaixo, com a devida autorização do autor, o texto que saiu no jornal.
_____
HILDA HILST CONTINUA NOS INCOMODANDO
Espetáculo baseado na obra da escritora, e apresentado no III Festival de Teatro em Patos de Minas, é visão amarga da infância destruída
Luís André Nepomuceno
Dentre os espetáculos apresentados no III Festival Nacional de Teatro Universitário de Patos de Minas, promovido pelo UNIPAM, “O caderno secreto de Lori” parece ter provocado um debate bem mais caloroso e acirrado do que os demais espetáculos normalmente vinham provocando. O monólogo, resultado do Trabalho de Conclusão de Curso de Jéssica Azevedo na UFMG, dirigido por Marcelo Rocco, e tendo Jéssica Azevedo no papel de Lori, é uma adaptação do polêmico romance de Hilda Hilst, “O caderno rosa de Lori Lamby” (1990), cuja mais recente edição saiu pela Editora Globo, com desenhos de Millôr Fernandes (2005). Lori é uma menina de 8 anos, vítima de seduções e da iniciação sexual que vem de seus próprios familiares, como os pais, os tios, ou de fregueses que participam das bandalheiras de que a menina é obrigada a participar. Seria comovente e, por certo, receberia a aprovação de qualquer espectador disposto a condenar um dos mais graves crimes do mundo moderno, a pedofilia, não fosse um detalhe comovente e incômodo: Lori (a exemplo de outras personagens clássicas da literatura libertina) registra, em boa parte de seu monólogo, que, embora seja ingênua, sente-se naturalmente inclinada aos favores sexuais que os adultos lhe impõem, nada vendo de reprovável no fato de que, para isso, receba chocolate e sorvetes como prêmio.

Uma das acusações feitas ao olhar de Marcelo Rocco e Jéssica Azevedo é a de que o diretor teria conduzido todo o espetáculo a uma exaltação dos prazeres da menina, em detrimento de uma denúncia mais pungente dos crimes que lhe são impostos. Em suma: que a direção estaria evidenciando na menina muito mais o prazer de ser pervertida do que o sofrimento que isso certamente acarreta.

Rocco, na verdade, optou por uma saída engenhosa e sutil, levando o espectador a rever seus próprios preconceitos. A primeira atitude de quem está diante da cena é acusar a menina de safadinha, de pervertida, de quem está gostando das orgias de que é obrigada a participar. Mas é nisso que reside o lado provocador do texto: o sofrimento da menina, que existe com profundidade, é preenchido por espaços vazios e quase invisíveis, sempre a nos revelar que sociedade nunca os enxerga. Cabe ao espectador (tanto quanto ao leitor, no livro da Hilda Hilst) completar e compreender esses espaços, como os terríveis momentos de silêncio de uma menina que não compreende o que está dizendo e o que está acontecendo com ela. É um exercício de revisão de valores por parte do espectador. Na verdade, um exercício de compreensão sutil de quem fez um julgamento precipitado.

Há pontuações evidentes do sofrimento de Lori: a dor física que ela sente, depois de se entregar aos homens; o processo cruel de sedução dos adultos (que ela não entende que é sedução); a dança desengonçada e sofrida de um balé estranho; a cegueira insinuada, quando ela tem os olhos vendados; e por fim, a crueldade da cena final, quando ela é sugestivamente violentada por um ícone da indústria infantil, um bichinho de pelúcia que se transforma num monstro. Aliás, entre as armadilhas da sedução dos adultos, evidencia-se no drama de Marcelo Rocco uma sátira cruel à imensa indústria infantil de erotização da criança. Como aponta Alcir Pécora, na apresentação do livro de Hilda Hilst, “a obscenidade n’O caderno não é senão demonstração ostensiva do lixo nacional, particularidade (nunca exceção) do sórdido humano”.

Hilda Hilst parte de uma estratégia que considero entre as mais engenhosas na estrutura de uma narrativa: ela é capaz de construir a identidade de um narrador que conta uma história, a partir de um determinado enfoque ingênuo e mal compreendido. A personagem do romance de Hilst e a personagem do monólogo de Marcelo Rocco são narradoras a quem não se pode dar crédito, pela sua própria incapacidade de discernimento do real. É o que o crítico John Gledson chama de “narrador impostor”, a respeito dos personagens dos romances de Machado de Assis. São narradores incapazes de compreender a própria natureza daquilo que veem e narram, ou narradores que arrastam o leitor a uma compreensão parcial dos fatos. O discernimento, nesse caso, é um exercício do leitor, ou do espectador, jamais do narrador. Trata-se de uma ironia cruel e amarga. Se o espectador não souber compreender esse exercício de desdobramento das vozes da narrativa, ou da linguagem cênica, por certo não será capaz de ter compaixão pela menina (exercício imprescindível no acompanhamento do espetáculo), e terá por ela um sórdido sentimento de preconceito. É uma safadinha, não mais que isso.

Mas devemos lembrar sempre que, na arte cruel da sedução, Lori é a seduzida, não o sedutor, é a vítima, não o carrasco. Mais que isso, de depravada, torna-se ingênua, quase inocente. Mais ainda: torna-se limpa e pura na sua simplicidade extrema de falar o que vem à boca. Não é à toa que um dos mais comoventes momentos do espetáculo é a “Ave Maria” que se toca ao fundo, enquanto ela nos revela o seu caderno secreto, o seu diário de menina.

Sim, Marcelo Rocco poderia ter optado por evidenciar o sofrimento de Lori, com toda a clareza possível, de tal forma que a peça ficasse mais óbvia e mais didática. Mas sua narradora tem apenas 8 anos e não é capaz de discernir moralmente os fatos; no entanto, narra-os de tal forma que nos obriga a fazer esse discernimento por ela.

Está aí a percepção sensível do que foi mostrado. Comovente, belo, irônico, amargo e desafiador, o espetáculo de Rocco acrescenta muito ao romance de Hilda Hilst. Pena que a peça não recebeu premiação alguma no Festival em Patos de Minas.

CAIU NA REDE EM NOVA EDIÇÃO

Pessoas, já no ar, mais uma edição do programa Caiu na Rede. Para escutá-lo, gentileza apertar a tecla “play”, abaixo do título do blogue.

No programa anterior, informei que o avião Enola Gay havia jogado uma bomba sobre Hiroshima e outra sobre Nagasaki.

Na verdade, o Enola Gay e Paul Tibbetts, seu comandante, não participaram do ataque sobre Nagasaki. A segunda bomba foi jogada por Charles Sweeney, que estava no comando do Great Artiste.

Devo a Manoel Almeida a correção. Grato, Manoel.