quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Disfarce

Arremedo de luz julga ter dissipado a neblina.
Arremedo seduz arremedo.
Amanhã, voltaremos.
Voltaremos depois de amanhã
e depois de depois de amanhã
e depois de depois de depois de amanhã
e assim por diante enquanto a luz for disfarce. 

domingo, 28 de agosto de 2016

Rastejante

Apontamento 350

O Thiago de Mello escreveu que “a poesia não é a coisa dita, mas o modo de dizê-la”. Em O Banquete, do Platão, Pausânias, em seu discurso de enaltecimento do amor, diz, segundo a tradução de J. Cavalcante de Souza: (...) “Beber, cantar, conversar, nada disso em si é belo, mas é na ação, na maneira como é feito, que resulta tal; o que é bela e corretamente feito fica belo, o que não o é fica feio. Assim é que o amar e o Amor não é todo ele belo e digno de ser louvado, mas apenas o que leva a amar belamente”. O Artur da Távola, numa de suas crônicas fala sobre o saber tornar bonito o amor que se tem. No jeito de fazer, a busca pelo belo. Caprichar no verso, nas palavras, nos atos. O que me leva a Ricardo Reis, um dos heterônimos do Fernando Pessoa: “Para ser grande, sê inteiro: nada / Teu exagera ou exclui. / Sê todo em cada coisa. Põe quanto és / No mínimo que fazes”. 

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Apontamento 349

Quando o escritor é grande, a releitura é parcial. Relembramos personagens, enredo, versos, trechos: isso, claro, é sintoma de releitura. Contudo, a releitura pode ser também leitura, por trazer ineditismos, nuances não percorridas previamente. É como se voltássemos ao rio de Heráclito. O grande livro é um rio estático. Mas é rio. Quando voltamos a nos banhar, já não somos mais os mesmos. As palavras estão imóveis, não foram reconfiguradas, não mudaram de lugar. Nós é que mudamos. Nessa mudança, quanto mais crescemos, maior é o livro-rio. 

Convite

Na terça-feira que vem (30/08), vou lançar, durante a Bienal Internacional do Livro, em São Paulo, meu livro Dislexias.

Nós vamos, não vamos?... 

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Apontamento 348

Não basta o talento para o canto: a ousadia de buscar ouvidos alheios compõe o que é o dom de cantar. Não basta o talento para a escrita: a atitude de buscar outras leituras compõe o que é o dom de escrever. Quando pleno, o talento não se fecha em si; é genuíno quando reverbera no outro. A coragem compõe também o dom de amar. 

Apontamento 347

O mundo lá fora canta. Pseudocanto da pseudossereia. Vícios, diversões tecnológicas, distrações, trabalhos inócuos. Há muita gente interessada em nosso tempo e em nossa energia. São criativos, inovadores. Tudo muito sedutor, incitante, excitante. Todavia, o canto afinado está é dentro da gente. 

Gaiolas e pássaros

1
Gaiola sem pássaro
é melhor do que
pássaro com gaiola.

2
Gaiola sem pássaro
não é solidão.
Pássaro sem gaiola
é amplidão.

3
Alguma coisa
incomodava a gaiola.
Estudou, pesquisou-se,
ponderou — agiu.
Deixando ir o pássaro,
a gaiola teve paz. 

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Rafaela

No fim de semana, fotografei a Rafaela, filha do Manoel, um amigo. Os registros foram feitos para o álbum de quinze anos. 

Proposta

Sua chegada suave não me abalou.
Você chegou, foi ficando;
de mansinho, fui gostando.

Passei a aguardar sua chegada.
Agora, em vez de chegar,
por que você não fica? 

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Exortação

Quem ama enxerga
no que ama aquilo
que o ser amado
às vezes não enxerga
dentro de si mesmo.

Admiro-te incansável.
Convivo com o que és,
sei o que podes ser.
Que enxergues em ti
o que em ti eu amo. 

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Incidências

Quando não calculo o instante,
sempre estás comigo.
Quando não meço o lugar,
sempre estás onde estou.
Coincidência isso não é: é amor.
Mas amor realizado é coincidência.
Em momento incalculável,
em lugar imensurável,
que eu incida em ti,
que tu incidas em mim. 

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Uma partida de vôlei

O jogo entre Brasil e China (vôlei feminino) terminou há instantes, no Rio. Foi uma daquelas disputas que provam que o esporte pode ser uma das mais belas invenções. Tudo foi nobre e elevado, celebração da técnica, do talento, do corpo. Um espetáculo bonito como a vida pode ser. A China, tendo eliminado o Brasil, vai disputar a semifinal. 

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Labial

Os lábios se encostam:
digo teu nome.

Os lábios se encostam:
devoro teu beijo. 

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Haicai antropofágico

Você querendo me devorar com fervor. 
Eu, com vontade, querendo te comer. 
O corpo é substância que (se) faz amor. 

(Des)apontamento 52

escrevi que Rochefoucauld e Oscar Wilde fariam sucesso no Twitter. Revi essa opinião. Não fariam sucesso no Twitter porque os aforismos deles são inteligentes. 

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Concordância

Eu:
corpo são.

Tu:
corpo são.

Nós:
corpos são. 

Por aí

Alcance

Se minhas palavras tiverem
as delícias de teu corpo,
serão deliciosas a teus ouvidos.
Estivesse eu por perto,
elas seriam, diante deles, sussurro.
Aceita, à distância,
vontades que gritam. 

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

A política local — minha “contribuição”

Não é segredo para ninguém que trabalhei numa das empresas de um dos grupos políticos da cidade. Reitero: trabalhei numa das empresas. Como patrões, fizeram a parte deles; como empregado, tentei fazer a minha.

A relação era profissional. Jamais me envolvi na disputa política nem desse nem daquele grupo; nunca fiz campanha para nenhum deles, justamente por ser desejo meu ter a cidade representada por pessoas que não coadunem com nenhum dos grupos políticos que se revezam há décadas no poder local.

Jamais estabeleci, seja com que político for, relação que não fosse profissional, justamente para me manter à vontade para não me envolver e à vontade para me posicionar como cidadão e como eleitor. A já tão incensada aliança entre os grupos políticos locais não me seduz, como não me seduziria a não aliança entre eles.

O texto a seguir, a despeito da tentativa de humor de que se vale, tem, justamente nessa tentativa, o descontentamento meu. Foi o modo que achei de ser incisivo quanto ao cenário político daqui. Na leitura do que se segue, é preciso que você ative o senso de ironia, de sarcasmo ou de cinismo.

*****

Há uma foto circulando nas redes sociais em que os dois mandantes dos grupos políticos locais estão à mesma mesa. Sobre ela, há quitutes e xícaras de café. Um dos comensais está mastigando algo; a maioria dos demais olha para a lente da câmera. Os sorrisos são discretos. Há seis pessoas na foto.

A aliança entre os dois grupos já vinha sendo ventilada há meses. Uma vez confirmada, isso vai facilitar demais a vida dos redatores na campanha política. Terão clima de tranquilidade para redigir seus textos. Nem precisarão se esforçar a fim de produzir discursos que se queiram retumbantes.

Dando minha contribuição para esse cenário, deixo, a seguir, um discurso, que pode ser adaptado ou modificado a bel-prazer, de acordo com o que pedirem as circunstâncias. O texto é um esboço em que os dois grupos podem se pautar quando apresentarem o programa de poder que estão urdindo.

Com o objetivo de acentuar o congraçamento, pode-se escolher um líder de cada grupo: o líder A leria o primeiro parágrafo; o líder B, o segundo; o líder A, o terceiro; o líder B, o quarto — e assim por diante. Numa outra ocasião, o líder B leria o primeiro parágrafo; o líder A, o segundo; o líder B, o terceiro; o líder A, o quarto — e assim por diante. Ficaria muito... fofo... Eis, pois, a seguir, minha colaboração para o debate político local.
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O mundo vive novos tempos. Patos de Minas não pode ficar para trás. Nossa cidade, que sempre esteve à frente dos ventos que trazem as grandes mudanças e as grandes novidades, não pode perder o trem da história. Se por um lado não podemos abrir mão de nossas tradições, por outro, não podemos deixar de estarmos em sintonia com o que há de moderno e de pulsante nos tempos que correm.

Novos tempos pedem novas atitudes, novas abordagens, novos enfoques. Diante disso, para nós, integrantes dessa aliança, é um prazer unir dois grupos que, apesar das diversidades políticas, sempre tiveram um bem em comum; esse bem em comum é o bem que queremos para nossa querida e amada Patos de Minas.

Nós percebemos que é hora de deixarmos rivalidades políticas para trás. Como nunca, é hora de lutarmos em prol da nossa Patos de Minas. Tendo em mente o futuro dos patenses, decidimos que este é o momento de unirmos forças. A força de um grupo; a força do outro grupo. O que até agora foi rivalidade política vive, nestas eleições, um novo tempo. O que até agora foi rivalidade política se transforma em vontade de fazer uma Patos de Minas pronta para os desafios que virão.

A vida e a política ensinaram aos dois grupos que a união é mais forte do que a individualidade. Acertos foram feitos, arestas foram eliminadas. O que temos agora é uma aliança que dará ao futuro de Patos de Minas novos ares, novos líderes. Patos de Minas terá, a partir de agora, um novo desenvolvimento, uma nova pujança, uma nova força motora que conduzirá a cidade a um patamar jamais sonhado pelos líderes políticos que vieram antes de nós.

Neste momento ímpar da história patense, pedimos aos eleitores do grupo A ou do grupo B que deixem para trás as rivalidades, os ataques, as farpas, as picuinhas. O momento é de união, de congraçamento. Vamos unir inteligências dos grupos para que possamos criar uma cidade mais próspera do que ela já é.

Eleitores, é hora de encarar o futuro com ousadia, com felicidade. É hora de deixar de lado as diferenças de opinião e de unir forças para que a grande vitoriosa seja a população da nossa poderosa, amada e pulsante Patos de Minas. Vocês, eleitores, são os vitoriosos. Nós, ao juntarmos forças, estamos apenas atendendo ao chamado que veio das ruas. Nós existimos para servir o eleitor. Nossa missão é fazer com que seu voto, eleitor, seja o pontapé inicial para o crescimento, para a mudança, a educação, a saúde, o lazer.

Patos de Minas é maior do que o grupo A ou o grupo B. O eleitor é maior do que qualquer rivalidade política que possa ter existido no passado. Diante desse fato inegável, é que estamos aqui, diante de vocês, para que abracem a causa da união, do desenvolvimento. É hora de nos darmos as mãos. É hora de, num só abraço, elegermos uma cidade pronta para os desafios do mundo de hoje. 

Uma tarântula para García Márquez

No já longínquo vinte e quatro de agosto de 1996, publiquei, num jornal local, em coluna que eu mantinha, breve nota sobre a palavra “tarântula”. Na ocasião, mencionei o que o Aurélio dizia sobre o termo: “Espécie de aranha européia da família dos licosídeos, cuja picada causa febre, delírio e, segundo a crença popular, singulares sintomas que levariam o doente a cantar e dançar”.

É a palavra com o significado mais fabuloso que conheço. Na mesma nota publicada em 1996, sugeri aos leitores que conferissem no dicionário o significado de “tarantismo” (ou “tarantulismo”). Segundo o Houaiss: “Afecção nervosa caracterizada por desejo incontrolável de dançar, atribuída à picada de aranha (tarântula)”.

Esta postagem não é propaganda do que já fiz nem ataque de saudosismo. Não sou do tipo saudosista. Pode ser que quando eu ficar ainda mais velho eu passe a ser. Escrevo esta postagem por ter lido há instantes que um novo tipo de tarântula foi descoberto recentemente na Colômbia, segundo a Newsweek.

A descoberta foi publicada em artigo, que tem autoria de Carlos Perafán, William Galvis, Miguel Gutiérrez e Fernando Perez-Miles. Ainda de acordo com a Newsweek, o novo tipo de tarântula foi descoberto nas proximidades de onde viveu o García Márquez (ele nasceu em Aracataca). Como, segundo a revista, os cientistas são fãs do escritor, decidiram homenageá-lo ao batizarem o novo tipo de tarântula, que tem o nome científico de Kankuamo marquezi. Puro realismo mágico. 

Fresta

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Os comensais

Há muito tempo, li que comida “tem de ter cor, cheiro e sabor”. Não sei cozinhar. Todavia, tenho a impressão de que sei apreciar, embora eu possa estar enganado quanto a isso. Estando ou não, o pensamento de que a comida “tem de ter cor, cheiro e sabor” nunca saiu da minha cabeça.

O cheiro e o sabor podem parecer óbvios. Pode parecer desnecessário dizer que uma comida precisa ter cheiro e sabor. Todavia, não é bem assim. A cor não tem de ser necessariamente saturada. O prato pode não ser vistoso, pode não ter cores berrantes. Cores sutis ou não saturadas não sinalizam comida ruim. Há nuances, sutilezas, alimentos saborosos que não têm cores vibrantes.

Culinária é ritual. Sei que pode haver muito de careta, de arcaico e de afetado no que querem que seja ritual. Se há afetação, ritual não é, mas pose. O prazer de comer não está ligado a poses; por isso mesmo, etiqueta demais é desnecessária (bem como etiqueta de menos não é recomendada). Cor, cheiro e sabor são parte do ritual.

Pode-se comer sem a companhia de alguém. Já li por aí que o Drummond achava deselegante se alimentar quando havia pessoas por perto. Mesmo assim, o ritual da comida está intimamente ligado ao ato de celebrar. Comer é celebrar; celebrar de modo solitário é sem graça.

A celebração é parte do ritual. Que os comensais estejam reunidos para acompanhar, cheirar e degustar o que estiver sendo preparado. Que estejamos nas imediações da feitura, numa distância em que seja possível se dar conta, de antemão, do cheiro. O mesmo Drummond nos recomendou conviver com que nos propusermos a escrever. Convivamos com o preparo da comida. Que haja amizade, que haja amor. No ar, o cheiro. Quando a comida é servida, cheiro e cor. Tudo sem pressa, sem presunção. Cheiros, cores, sabores, olhares, risos, brindes.

Comer é celebrar. É um outro modo de dizer para as pessoas o quanto gostamos delas, o quanto fazemos questão da presença delas. A rigor, comer é atender a uma necessidade fisiológica; só que, ainda bem, achamos um modo de unir essa necessidade à possibilidade de congraçamento, de alegria, de sintonia. 

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Convite

Recebi da Chiado Editora o convite para a sessão de autógrafos de meu livro Dislexias, em São Paulo. Será durante a Bienal. Você vai, não é mesmo?