domingo, 1 de novembro de 2020

A Finlândia não é aqui

Desde que foi veiculado, faz sucesso um vídeoque dura algo em torno de vinte minutos, sobre o sistema educacional na Finlândia. É uma produção da Globo. Com frequência, esse vídeo é usado como argumento quando se quer elogiar a educação recebida pelos finlandeses e criticar a recebida pelos brasileiros.

É preciso ponderar a partir do que é dito no vídeo. É que sempre fico reticente quando há a tentativa de comparação entre a educação na Finlândia e a educação no Brasil. A primeira razão pela qual fico reticente é óbvia: o contexto finlandês é diferente do contexto brasileiro.

É dito no breve documentário que a Finlândia é o país mais feliz do mundo. À parte o fato de eu achar que felicidade é um conceito difícil de ser medido, pois o parâmetro de um pode ser diferente do parâmetro de outro, chamou minha atenção o seguinte: eles são um dos países menos desiguais do mundo.

Permitam-me um raciocínio simplório, mas necessário: o vídeo permite a fácil dedução de que menos desigualdade e felicidade estão conectadas. Mantendo o raciocínio simplório: igualdade e felicidade estão conectadas. Para nós, o problema começa na desigualdade. O Brasil é um país edificado sobre a desigualdade, que pode ser conferida em qualquer esquina do país.

Isso, por si, já é uma questão melindrosa. Mas a coisa fica pior: não há empenho de toda a sociedade para que as desigualdades sejam amenizadas ou dizimadas. O Brasil é um país em que quando se fala em ensino gratuito para todo mundo, há quem diga que não é obrigação governamental ofertar educação para todos. Segundo o vídeo, na Finlândia, “todas as crianças estão em escolas públicas” e “todo mundo tem as mesmas oportunidades”. Vou reescrever a frase: “Todo mundo tem as mesmas oportunidades”. Também é dito no trabalho da Globo que na Finlândia a educação é gratuita até o término do ensino superior. 

Acho estranho o que, com frequência, ocorre no Brasil: exalta-se a igualdade no exterior, mas se deplora a busca dela por aqui, onde há quem queira insistir na ideia de que o sujeito nascido na periferia de São Paulo tem as mesmas oportunidades de um nascido no Morumbi, e que se os projetos daquele não se concretizaram, a culpa é dele, que seria preguiçoso, indolente, burro. É dito no vídeo: “Você não precisa vir de família rica para se tornar alguém”. Lá, isso é possível porque há igualdade.

Tudo, contudo, fica pior: há uma cena do vídeo em que se mostra uma professora ensinando o processo de formação da Terra. Aqui no Brasil, congressos têm sido realizados para se afirmar que o planeta é plano, indivíduos têm negado princípios básicos da ciência. Estou sugerindo com isso que não cabe à escola fazer algo?

Não. Com isso, estou defendendo a ideia de que comparações entre países devem ser feitas com cautela, e que o ensino tem limites, principalmente se inserido em contexto desfavorável, caso do Brasil. A escola, ao mesmo tempo em que pode influenciar a sociedade, por ela é influenciada. Seria muita pretensão afirmar, no caso brasileiro, que a escola, sozinha, realizará a melhora.

No Brasil, a profissão de professor é desvalorizada, o que, segundo o vídeo, não ocorre na Finlândia. O professor, no Brasil, é visto, por alguns setores da sociedade, como um proscrito, um coordenador de badernas. Não bastasse, os professores, na Ilha de Vera Cruz, são enterrados sob um escombro de burocracia e de vigilância. Reitero: não sugiro desistência, mas ponderações quando insistem em querer aplicar o modelo educacional finlandês no Brasil.

Certa vez, perguntaram para o García Márquez se o artista tem de ser ou de estar triste para produzir. A resposta dele: “Escrevo melhor de barriga cheia”. O Brasil tem uma multidão de estudantes que não têm o que comer; estuda-se melhor de barriga cheia.  É dito no vídeo que a Finlândia teve guerra civil e fome. Superaram ambas. Vamos superar a fome no Brasil? Vamos ter uma sociedade composta por oportunidades iguais? Não tenho respostas.

Qual a importância em se conhecer a realidade educacional da Finlândia? Uma das importâncias é o saber em si, o estar informado. Outra importância: a ciência de que há um país como a Finlândia inspira a utopia, tal qual a concebe o Eduardo Galeano (1). Vídeos como esse, assim concebo, não são para que imitemos as engrenagens da Finlândia ou de outro país, nem para que tentemos implantar o sistema educacional deles aqui, mas para que saibamos que uma sociedade igualitária pode ser feliz. Seremos?

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(1) Há um texto do Eduardo Galeano em que ele se vale da seguinte imagem para ilustrar o que é o caráter utópico: a utopia é querer chegar à linha o horizonte; chega-se. Lá chegando, enxerga-se outra linha do horizonte, que deve, então, ser buscada; chega-se a ela. Lá chegando...