quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Folha do cinismo

O editorial em que a Folha de S.Paulo se diz sob ataque, intitulado “Sob ataque, aos 99”, chega a ser cínico, não porque ela não esteja sendo atacada, mas porque ela ajudou a colocar no poder gente que nunca respeitou a democracia, que defende ditadores e torturadores, gente que só veio a falar em presunção de inocência quando o envolvido era um miliciano. Seria cara de pau da Folha dizer ter suposto que o cenário seria diferente deste em vigor. Ela está sendo tão patética quanto foi o Lobão quando ele gravou vídeo dizendo-se arrependido de seu voto para presidente.

“Frustraram-se, faz tempo, as expectativas de que a elevação do deputado à suprema magistratura pudesse emprestar-lhe os hábitos para o bom exercício do cargo”, publicou a Folha. “Frustraram-se”?! Ora, ninguém é imbecil a ponto de supor que haveria “hábitos para o bom exercício do cargo”. Mudanças de hábitos vêm de dentro para fora, são frutos de reflexão. Nem cândidas ovelhas em pastos viçosos e verdejantes esperavam que a suprema magistratura pudesse tornar um tosco que elogia tortura em um cavalheiro respeitador de princípios democráticos.

Grande parte dos ataques contra a Folha tem partido de pessoas que não querem democracia, que são xenófobas, homofóbicas, afetadas, racistas, elitistas, defensoras de ditaduras, adeptas de incivilidades. Gente que aplaude quando o chefe de uma nação, em vez de responder a questionamentos pertinentes, apela para a vulgaridade ou para a fuga.

Dito isso, é preciso dizer também que os ataques são tão tacanhos quanto o próprio jornal. O cinismo da Folha não é justificativa para que ela seja atacada, mas, além de expor os vitupérios que tem recebido, o periódico de São Paulo deveria fazer seu mea-culpa na patuscada que agora grassa dos pampas à caatinga. A Folha está colhendo o que ela mesma e tantos outros ajudaram a robustecer. Os frutos envenenados vão parar também na mesa de quem não os plantou. 

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Mandamentos

Homem religioso mandou — 
fiel votou.

Homem religioso mandou —
fiel acreditou em messias.

Homem religioso mandou — 
fiel defendeu tortura.

Homem religioso mandou — 
fiel desmaiou.

Homem religioso mandou — 
fiel acordou.

Homem religioso mandou — 
fiel deu grana.

Homem religioso mandou — 
fiel se calou.

Homem religioso mandou — 
fiel não estudou.

Homem religioso mandou — 
fiel mentiu.

Homem religioso mandou — 
fiel se ajoelhou.

Homem religioso goza. 

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Natural da Ádria

Milicianos
são amigos uns dos outros,
promovem churrasco para os pares, 
zombam de leis,
matam Marielles,
têm amigos na presidência,
são homenageados pelos homens do presidente,
presenteiam ordens cumpridas.
Miliciano silencia miliciano que sabe muito.
Miliciano que silencia miliciano que sabe muito é silenciado.
Miliciano de terno caro sai incólume. 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

É assim

É preciso fazer. É preciso produzir. É preciso criar. O que, talvez, não tem significado nem sentido agora, terá depois, para alguém, em algum lugar. Não sugiro com isso que quando o Bruce Hornsby compôs “The way it is” ele estivesse supondo que compusera algo sem valor, sem sentido, sem significado. O que escrevo, é só para dizer que, nesta madrugada, “The way it is” faz sentido (como sempre). Eu sei que o Bruce Hornsby existe, sei que “The way it is” existe. Eu agradeço a ele e à canção. Graças aos dois, existo melhor nesta madrugada. 

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Crenças

1
Há quem acredite que 
o hábito faz o padre.

Há quem acredite que
a farda faz o patriotismo.

Há quem acredite que
o púlpito faz o pastor.

Existem hábitos que violentam.
Existem hábitos que corrompem.
Existem hábitos que estupram.

Existem fardas que violentam.
Existem fardas que corrompem.
Existem fardas que estupram.

Existem púlpitos que violentam.
Existem púlpitos que corrompem.
Existem púlpitos que estupram.

Há quem acredite em imaculados.

2
Há quem acredite que
o discurso faz o cidadão de bem.

O discurso
violenta,
corrompe,
estupra,
tortura.

O jornal acoberta
o hábito,
a farda,
o púlpito,
o discurso.

Há quem acredite no jornal.