Tatiana acordou. Teve um sonho ruim, em que um ônibus, estando na pista central das três que compunham percurso de rodovia, tentou pegar a da direita. Só que o acesso ousado pelo motorista era nada mais do que um barranco. Mal começara a atravessá-lo, o ônibus se descontrolou. Tatiana acompanhava a cena dirigindo um carro que seguia atrás do ônibus. Quando ele chegou à pista que era seu objetivo, tombou. Nesse momento, Tatiana acordaria.
Durante alguns minutos, ficou se perguntando que significado o sonho teria. Não chegando a conclusão alguma, prometeu a si mesma começar, finalmente, a leitura de “A interpretação dos sonhos”, do Freud. A manhã ainda não estava aberta, mas nesgas de luz se insinuavam pelo quarto através da janela. Pela respiração de João Carlos, marido dela, Tatiana sabia que ele ainda dormia pesado.
Com passos sonolentos, ela entrou no banheiro. Assim que olhou para a direita, viu a toalha no suporte, ao lado do espelho. Intuiu naquele instante que o dia dela seria terrível. Ficou olhando para a toalha, que, a rigor, não estava pendurada, mas embolada no suporte, entre este e a parede. Há anos aquilo a irritava.
No auge da paixão, relevam-se coisas que depois passarão a espezinhar. Nos meses seguintes ao casamento, Tatiana ignorava o modo como a toalha era deixada no suporte por João Carlos. Duzentos e treze dias depois de estarem casados, ela pediu ao marido que não deixasse a toalha daquele jeito, mas, sim, que a pendurasse, para que ela secasse rapidamente, para que não ficasse com cheiro ruim. Como o pedido foi infrutífero, ela voltou a abordar o assunto com o marido, argumentando que sempre tivera um certo asco quanto a toalhas, e que não era higiênico deixar uma toalha toda espremida entre o suporte e a parede. De nada adiantou. Meses depois, veio uma discussão. Ela não segurou: “Será que o senhor é tão incompetente que não consegue pendurar uma toalha?”.
Depois da discussão, a toalha viveu dezesseis dias de estiramento. Passado esse tempo, voltou a ser o chumaço criado diariamente por João Carlos. A fim de evitar brigas, Tatiana não expressava o incômodo que sentia. Dois filhos e seis anos se passaram. Naquela manhã em que sonhou com o ônibus, levantou-se e se deparou com o bolo entre a parede e o suporte. Houve em Tatiana algo inédito, a clarividência com a qual admitiu o que vinha se insinuando há tempos, mas que ela, a princípio, negara para si mesma: não mais suportava a convivência com o marido. Tempo houve em que isso foi apenas um sussurro, um sopro. As repetidas miudezas do cotidiano, de mansinho, fizeram com que aquilo que era uma nuvenzinha fosse se agigantando até o ponto em que ela teve a certeza de que não queria mais viver com João Carlos.
Encarando a toalha toda embolada, ela não sabia se sentia mais raiva do marido ou de si mesma, por não ter tido a coragem de acabar com um relacionamento cujos sonhos e alegrias não mais existiam. O que havia era um arremedo de casamento, um teatro social e familiar. Deixando de olhar para a peça no suporte, mirou-se no espelho, perguntando-se o que tinha feito da própria vida. De onde estava, pôde ouvir o marido mudar a posição do corpo na cama. Mas ela sabia que ele ainda não acordara. Olhando-se no espelho, disse em voz baixa: “Tenho trinta e um anos”. Sentiu-se velha. Reparou nas rugas, que ainda eram incipientes, mas que lhe pareceram profundas e ancestrais. Culpou-se por não mais querer o marido, pois sabia que ele a amava; culpou-se por não conseguir passar por cima dos defeitos dele; culpou-se por não ter deixado de sonhar com alguém mais idealista, mais ambicioso, mais cheio de ímpeto; culpou-se por cozinhar para ele de modo automático, por fazer amor de modo automático, por ostentar uma alegria automatizada. Teve vontade de chorar. Por segundos, voltou a olhar para o que considerou um trapo entre o suporte do banheiro e a parede. Apoiando as mãos na pia, estava se observando outra vez. Esquadrinhava o rosto quando disse, novamente em voz baixa: “Você precisa mudar de vida, Tatiana”. Depois, jogou a toalha.