Não confiamos nos narradores dos contos de Edgar Allan Poe. Um dos menos confiáveis é o narrador de “O caso do sr. Valdemar”, publicado pela primeira vez em dezembro de 1845. No enredo, um sujeito interessado em magnetismo, que será explicado em linhas gerais já, já, diz a princípio que ainda não havia tido a oportunidade de usar esse conhecimento no momento em que alguém estivesse morrendo.
Sobre o magnetismo, também conhecido como magnetismo animal: no século XIX, o médico alemão Franz Anton Mesmer tratou de pacientes que padeciam de espasmos epiléticos e transes sonambúlicos. A técnica de que ele se valia tornar-se-ia conhecida como mesmerismo. Mesmerismo ou magnetismo são termos intercambiáveis; algumas técnicas do magnetismo foram incorporadas depois na hipnose. No conto de Poe, o narrador, repito, é entusiasta do magnetismo, que, no período oitocentista, foi usado como tratamento e como paliativo contra dores. Para os adeptos da prática, os humanos, os demais animais e os vegetais teriam uma força natural invisível; essa força poderia curar, sendo transmitida pelo magnetizador para o magnetizado.
Ele combina então com um amigo (o Valdemar do título do conto) que essa tentativa seria feita quando os médicos decidissem que a morte de Valdemar, que era tuberculoso, era iminente. Feito o procedimento, o magnetizado é dúbio no que responde, afirmando estar morto e magnetizado. De qualquer modo, o narrador e uma pequena junta médica deixam Valdemar nesse estado ou nesse limbo por quase sete meses, tendo confabulado que despertar o tísico senhor seria causar a morte dele. Quando, por fim, decidem desmagnetizá-lo, há o horrendo desfecho (em Poe, a expressão “horrendo desfecho” soa até redundante).
Poe, não somente em função de seu trabalho em jornais, mas também por causa de sua mente analítica, interessou-se pela ciência da época, num tempo em que ciências como a medicina e a psicologia ainda não haviam definido com exatidão seu campo de estudo. A atmosfera romântica ainda pairava; não raro, relatos de casos clínicos soavam mais literários do que científicos.
Não nos esqueçamos de que Poe é literato, e um literato imbuído do romantismo como movimento cultural. Poe se vale da ciência para dar verossimilhança às histórias que conta, mas uma verossimilhança que se sustenta, é claro, no ambiente diegético dos contos. Poe não quer fazer ciência, mas, sim, levar à literatura o que a ciência da época andava investigando, levar à literatura o que seria padecer dos distúrbios estudados pela ciência da época.
Volto à ideia de que Poe deu verossimilhança ao conto de terror, de mistério, mas, em saboroso paradoxo, não raro, Poe cria um narrador que não inspira confiança no leitor (o mesmo ocorre quando lemos as palavras de Dom Casmurro). No escritor inglês, os narradores podem estar sob o efeito de drogas ou podem ter propensão a alucinações ou a demais estados de alteração mental.
Alguns exemplos: Egeu, o narrador de “Berenice”, declara que sua estirpe “tem sido chamada uma raça de visionários”; William Wilson, no conto de mesmo nome, revela que descende “de uma raça que se assinalou, em todos os tempos, pelo seu temperamento imaginativo e facilmente excitável”; o narrador de “O coração denunciador” afirma que tem sido “nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso”; o narrador de “Eleonora” também admite que provém “de uma raça notável pelo vigor da imaginação e pelo ardor da paixão”. E como fica o narrador de “O caso do sr. Valdemar”? O título original do conto é “The Facts of M. Valdemar’s Case”. Chamo a atenção para a palavra “fatos”. Vamos, pois, a eles...
Logo no segundo parágrafo, o narrador anuncia: “Torna-se agora necessário que eu exponha os fatos [itálico do autor] – até onde alcança minha compreensão” [1]. Todavia, no décimo parágrafo do conto, o narrador, que, curiosamente, identifica-se com uma inicial, a letra “P” (quem sabe, uma brincadeira com “P” de Poe), declara: “O senhor L***1 teve a bondade de satisfazer meu desejo de tomar notas de tudo quanto ocorresse, e é dessas suas notas que o que vou agora narrar foi na maior parte condensado ou copiado verbatim [itálico do autor]” [2].
Tem-se, pois um problema: o mesmo narrador, que se predispusera a expor fatos declara que a versão desses mesmos fatos não diz respeito somente ao modo como ele, narrador, presenciou e vivenciou o que ocorreu; tais supostos fatos chegam até nós a partir das lembranças do narrador e das notas tomadas por um médico que compunha a pequena junta que cuidava do sr. Valdemar. O narrador e o médico que escrevera as notas estiveram diante do mesmo fenômeno. Ainda assim, preferiu o narrador se valer também da subjetividade alheia para contar sua história.
Nem é preciso discutir o conceito da palavra fato nem é preciso debater possíveis motivos pelos quais a objetividade absoluta é impossível para nós. Ainda que o narrador se livrasse de emoções e de percepções e de escolhas pessoais (como se isso fosse possível), o que ele nos conta é a realidade como ela foi percebida não somente por ele, mas também por outras pessoas que estiveram diante dos estranhos acontecimentos que acometeram o senhor Valdemar. Como leitores, temos acesso não somente ao universo perceptivo do narrador, mas também ao universo perceptivo registrado nas anotações de um médico. O narrador assume a “coautoria” do que ele conta.
Isso, por si, já torna problemático o uso da palavra “fatos” no título original do conto, bem como torna problemática a afirmação inicial, por parte do narrador, de que exporia as coisas tais quais ocorreram de acordo com sua compreensão. Uma certa desconfiança já começa a se insinuar no leitor. Essa desconfiança se solidifica quando a “insegurança” do narrador é escancarada. Ele escreve: “Sinto agora ter chegado a um ponto desta narrativa diante do qual todo leitor passará a não dar crédito algum” [3].
O que se tem: aquele mesmo narrador que havia anunciado que contaria fatos, primeiramente se vale de anotações de outra pessoa para narrar o que ele mesmo, narrador, havia presenciado. Depois, ainda que estando a narrar, volto a insistir, fatos, o narrador diz que “todo leitor passará a não dar crédito algum” no que lerá.
É como se o narrador estivesse inseguro quanto à sua escrita. Ele inicia sua história propalando que haverá fatos, que haverá objetividade, mas, à medida que o relato vai seguindo, o que antes era intenção de objetividade efetiva-se como insegurança narrativa. O que aconteceu com o sr. Valdemar não é nada crível, mas, ainda que fosse, paira em nós a sensação de que, não bastasse o que há de assombroso e sobrenatural no que é contado, o narrador é um dos “culpados” para que duvidemos da veracidade do que se conta. Terminada a leitura, fica para o leitor não o ideal da objetividade, mas a presença da subjetividade, algo que, por fim, era tão caro aos românticos.
Há outro aspecto desse narrador que me chama a atenção: nos contos de Poe, os narradores são, eles mesmos, os que têm alterações em suas mentes. É bastante divulgada a noção de que uma das inovações de Poe foi ter feito com que o medo ou o terror estivessem não no mundo físico, exterior, mas na mente de quem narra a história. É o que ocorre nos contos que mencionei há pouco. Todavia, pelo menos em tese, a despeito da desconfiança que o narrador de “O caso do sr. Valdemar” provoca, não é ele, o narrador, que está passando por uma alteração de seu estado mental. Poder-se-ia alegar que apenas uma mente enlouquecida alegaria haver algum fato na história de um homem que, magnetizado, fica num limbo entre a vida e a morte. Mesmo assim, o terror que lemos, em teoria, não é criação da mente do narrador, mas algo pelo qual passa o desafortunado Valdemar. Não é o narrador que, ainda que narre em primeira pessoa, procedimento comum em Poe, está passando por uma experiência mental drástica e aterradora, mas outro personagem cuja história é contada, e isso faz com que o narrador de “O caso do sr. Valdemar”, ainda que tenha nos contado algo que permeia o imaginário assombrado e assombroso de Poe, seja uma exceção no universo criado pelo escritor norte-americano.
Mas, ainda assim, não nos esqueçamos: estou falando de Edgar Allan Poe. A despeito do que defendo quanto à técnica narrativa em “O caso do sr. Valdemar”, poderíamos cogitar que, mesmo assim, o narrador estivesse, ele também, passando por alguma alteração mental? Caso sim, isso seria algo que minha leitura não detectou. De qualquer modo, a razão, tal qual a concebemos, não habita os contos de Poe. Quando se trata dele, o que posso afirmar é que eu não acredito em narradores, mas que eles existem, eles existem.
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[1] Poe, Edgar Allan, 1809-1849. Contos de terror, de mistério e de morte. Tradução de Oscar Mendes. 6ª edição. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 2017. Pág. 208.
[2] Idem. Página 211.
[3] Ibidem. Página 214.
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