sábado, 30 de abril de 2016

O narrador cruel

Obviamente, levo em conta que “Madame Bovary” é uma obra realista. Mesmo assim, desconheço um narrador que seja tão impiedoso com seu personagem quanto o narrador do livro de Flaubert. À parte as convenções do Realismo, que devem ser levadas em conta quando se analisa o livro, chega a ser engraçado (e, ao mesmo tempo, corrosivo) o quanto se mostra o tempo todo que o senhor Bovary é, aos olhos do narrador, um ser ridículo, limitado, digno de pena.

Carlos Bovary é, de cara, achincalhado pelo narrador e por alguns personagens. Logo no primeiro capítulo da primeira parte, nas páginas iniciais do livro, Bovary, ainda adolescente, é aluno novato em uma escola. A maneira como é recebido pelos futuros colegas dá o tom de como o futuro marido de Ema Bovary será tratado ao longo da história. Mal começado o livro, zomba-se da aparência de Carlos, de seu comportamento, de seu destrambelhamento. O trecho que cito tem tradução de Araújo Nabuco:

“Estávamos em aula, quando entrou o diretor, seguido de um novato.

(...)

“Calçava uns sapatos grosseiros, mal engraxados, reforçados com pregos.

(...)

“— Levante-se! — ordenou o professor.

“Levantou-se; o boné caiu. A classe inteira pôs-se a rir.

“Ele abaixou-se para erguê-lo. Um vizinho o fez cair com uma cotovelada, mas ele tornou a erguê-lo.

“— Livre-se desse boné! — disse o professor, que era um homem espirituoso.

“Houve uma explosão de riso entre os alunos, embaraçando o coitado de tal forma, que ele não sabia se segurava o boné, se o deixava no chão ou se o punha na cabeça. Afinal, sentou-se, pondo-o sobre os joelhos.

“— Levante-se! — repetiu o professor — e diga-me o seu nome.

“O novato articulou, com voz trêmula, um nome ininteligível.

“— Diga de novo!

“O mesmo murmúrio de sílabas, abafado pelas gargalhadas dos alunos.

“— Mais alto! — gritou o professor. — Mais alto!

“Tomando então uma resolução extrema, o novato abriu uma boca desmesurada e, como se chamasse alguém, lançou a plenos pulmões esta palavra: Carbovari.

“Foi uma algazarra que explodiu de repente, num crescendo de gritos agudos (uivava-se, latia-se, sapateava-se, repetia-se: Carbovari! Carbovari!), que depois passou a ecoar em notas isoladas, dificilmente acalmadas (...).

“Entretanto, sob uma chuva de castigos, pouco a pouco foi restabelecida a ordem na classe. O professor, tendo conseguido perceber o nome de Carlos Bovary, fazendo-o ditar, soletrar e reler, ordenou em seguida ao coitado que se fosse sentar no banco dos preguiçosos, ao pé de sua cadeira. O rapaz dispunha-se a obedecer, contudo hesitava.

“— Que está procurando? — interpelou o professor.

“— Meu bo... — tartamudeou o novato, lançando olhares inquietos à sua volta.

“— Quinhentas frases à classe inteira! — bradou o mestre, sustando assim, como o quos ego, uma nova tormenta. — Fiquem quietos! — continuava, indignado, enxugando a testa com o lenço que acabava de tirar de dentro do gorro. — Quanto a você (e apontava o novato), copie-me vinte vezes o verbo ridiculus sum”.
_____

FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Tradução de Araújo Nabuco. São Paulo. Círculo do Livro LTDA. 1994. Pp. 7,8 e 9. 

Nenhum comentário: