Obviamente, levo em conta que “Madame Bovary” é uma obra realista. Mesmo assim, desconheço um narrador que seja tão impiedoso com seu personagem quanto o narrador do livro de Flaubert. À parte as convenções do Realismo, que devem ser levadas em conta quando se analisa o livro, chega a ser engraçado (e, ao mesmo tempo, corrosivo) o quanto se mostra o tempo todo que o senhor Bovary é, aos olhos do narrador, um ser ridículo, limitado, digno de pena.
Carlos Bovary é, de cara, achincalhado pelo narrador e por alguns personagens. Logo no primeiro capítulo da primeira parte, nas páginas iniciais do livro, Bovary, ainda adolescente, é aluno novato em uma escola. A maneira como é recebido pelos futuros colegas dá o tom de como o futuro marido de Ema Bovary será tratado ao longo da história. Mal começado o livro, zomba-se da aparência de Carlos, de seu comportamento, de seu destrambelhamento. O trecho que cito tem tradução de Araújo Nabuco:
“Estávamos em aula, quando entrou o diretor, seguido de um novato.
(...)
“Calçava uns sapatos grosseiros, mal engraxados, reforçados com pregos.
(...)
“— Levante-se! — ordenou o professor.
“Levantou-se; o boné caiu. A classe inteira pôs-se a rir.
“Ele abaixou-se para erguê-lo. Um vizinho o fez cair com uma cotovelada, mas ele tornou a erguê-lo.
“— Livre-se desse boné! — disse o professor, que era um homem espirituoso.
“Houve uma explosão de riso entre os alunos, embaraçando o coitado de tal forma, que ele não sabia se segurava o boné, se o deixava no chão ou se o punha na cabeça. Afinal, sentou-se, pondo-o sobre os joelhos.
“— Levante-se! — repetiu o professor — e diga-me o seu nome.
“O novato articulou, com voz trêmula, um nome ininteligível.
“— Diga de novo!
“O mesmo murmúrio de sílabas, abafado pelas gargalhadas dos alunos.
“— Mais alto! — gritou o professor. — Mais alto!
“Tomando então uma resolução extrema, o novato abriu uma boca desmesurada e, como se chamasse alguém, lançou a plenos pulmões esta palavra: Carbovari.
“Foi uma algazarra que explodiu de repente, num crescendo de gritos agudos (uivava-se, latia-se, sapateava-se, repetia-se: Carbovari! Carbovari!), que depois passou a ecoar em notas isoladas, dificilmente acalmadas (...).
“Entretanto, sob uma chuva de castigos, pouco a pouco foi restabelecida a ordem na classe. O professor, tendo conseguido perceber o nome de Carlos Bovary, fazendo-o ditar, soletrar e reler, ordenou em seguida ao coitado que se fosse sentar no banco dos preguiçosos, ao pé de sua cadeira. O rapaz dispunha-se a obedecer, contudo hesitava.
“— Que está procurando? — interpelou o professor.
“— Meu bo... — tartamudeou o novato, lançando olhares inquietos à sua volta.
“— Quinhentas frases à classe inteira! — bradou o mestre, sustando assim, como o quos ego, uma nova tormenta. — Fiquem quietos! — continuava, indignado, enxugando a testa com o lenço que acabava de tirar de dentro do gorro. — Quanto a você (e apontava o novato), copie-me vinte vezes o verbo ridiculus sum”.
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FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Tradução de Araújo Nabuco. São Paulo. Círculo do Livro LTDA. 1994. Pp. 7,8 e 9.
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