sábado, 8 de março de 2014

"O VOO"


Eu me surpreendi com a densidade e com as implicações de “O voo” [Flight, 2012], do diretor Robert Zemeckis. O roteiro é de John Gatins. Comecei a assisti-lo sem saber quem era o diretor; pensei que se tratava de mais um daqueles filmes que lidam com catástrofes quando um avião cai.

Não é o caso de “O voo”. Se, de fato, há a queda de uma aeronave, isso é somente pretexto para que questões como o alcoolismo e o papel do direito num processo judicial sejam abordadas. Julgar é muito, muito difícil; isso paira o tempo todo.

O filme é estrelado por Denzel Washington. Prestem atenção no quanto ele está impecável no papel de William “Whip” Whitaker, piloto da aviação civil. Nos momentos em que está tenso, há trejeitos e tiques que se repetem e que se intensificam nas cenas finais. Washington convence como alcoólatra que se nega a assumir o vício.

Interessante é que Whitaker é um daqueles personagens que nos fazem torcer por ele, mesmo estando nós cientes de suas graves irresponsabilidades. É que reconhecemos o genial profissional que ele é, ao mesmo tempo em que logo sacamos que sua empáfia é sintoma de quem finge saber lidar com o alcoolismo.

Whitaker acaba conhecendo Nicole, interpretada por Kelly Reilly. Nicole é dependente de drogas. O encontro que haverá entre os dois é sugerido numa sequência tensa: Nicole está em terra, numa maca, depois de ter consumido droga pesada; Whitaker está pilotando um avião, que está prestes a cair.

É uma cena rápida, que me remete ao poema “Amor à primeira vista”, da poeta polonesa Wisława Szymborska. No poema, há a sugestão de que o primeiro encontro entre um casal já estava sendo tramado antes que ocorresse. Não sei se Zemeckis, o diretor, ou se Gatins, o roteirista, tinham o poema em mente ao compor a cena. À parte isso, ela faz lembrar o texto de Szymborska: a arte imita a arte.

Outro ponto alto do filme é a trilha sonora, regada a clássicos do pop/rock, em especial The Rolling Stones. Se Whitaker está curtindo alguma canção, ou se o figuraça Harling Mays, interpretado por John Goodman, entra em cena, esteja certo de que isso é garantia de boa música. Repare que próximo ao fim da película, em sequência gravada num elevador, “With a little help from my friends”, dos Beatles, é apropriadamente executada, em breve e sutil solo de piano.

Às vezes, julgamos uma pessoa por um gesto, por um delito. Julgar é complicado. Se por um lado Whitaker tem habilidade rara ao pilotar, por outro, é consumido pelo vício. E se o vício e o talento estiverem num mesmo instante?... Por fim, abaixo, a transcrição do poema que mencionei, de Wisława Szymborska. A tradução é de Regina Przybycien.
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Amor à primeira vista — Wisława Szymborska

Ambos estão certos 
de que uma paixão súbita os uniu. 
É bela essa certeza, 
mas é ainda mais bela a incerteza.

Acham que por não terem se encontrado antes 
nunca havia se passado nada entre eles. 
Mas e as ruas, escadas, corredores 
nos quais há muito talvez se tenham cruzado?

Queria lhes perguntar, 
se não se lembram — 
numa porta giratória talvez 
algum dia face a face? 
um “desculpe” em meio à multidão? 
uma voz que diz “é engano” ao telefone? — 
mas conheço a resposta. 
Não, não se lembram.

Muito os espantaria saber 
que já faz tempo 
o acaso brincava com eles.

Ainda não de todo preparado 
para se transformar no seu destino 
juntava-os e os separava 
barrava-lhes o caminho 
e abafando o riso 
sumia de cena.

Houve marcas, sinais, 
que importa se ilegíveis. 
Quem sabe três anos atrás 
ou terça-feira passada 
uma certa folhinha voou 
de um ombro ao outro? 
Algo foi perdido e recolhido. 
Quem sabe se não uma bola 
nos arbustos da infância?

Houve maçanetas e campainhas 
onde a seu tempo 
um toque se sobrepunha ao outro. 
As malas lado a lado no bagageiro. 
Quem sabe numa note o mesmo sonho 
que logo ao despertar se esvaneceu.

Porque afinal cada começo 
é só continuação 
e o livro dos eventos 
está sempre aberto no meio. 

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