domingo, 24 de dezembro de 2017

Um homem chamado Ove



O que somos agora é o resultado de todas as nossas experiências passadas, sejam conscientes, sejam inconscientes. Se, aparentemente, temos a capacidade de dar às nossas vidas o rumo que bem quisermos, não devemos, todavia, ignorar o fato de que grande parte do que somos é consequência de nosso passado, que determina em larga medida nosso comportamento no presente.

Essa reflexão é o fio condutor de Um homem chamado Ove [En man som heter Ove], produção sueca de 2015. O diretor é Hannes Holm. O roteiro é dele e de Fredrik Backman, autor do romance que originou o filme. Ove, interpretado por Rolf Lassgård, é um velho ranzinza que tem o hábito de visitar o túmulo da mulher com quem foi casado; enquanto está no cemitério, “conversa” com ela. No dia a dia, flerta com o suicídio. 

Ao mesmo tempo em que achamos graça das manias de Ove, há momentos em que elas nos irritam. Sendo ao mesmo tempo reflexão sobre a velhice, não há como assistir a Um homem chamado Ove sem pensar nos velhos que talvez venhamos a ser, ainda mais levando-se em conta que a velhice parece incrementar ou cristalizar defeitos que carregamos conosco desde sempre. A intenção primeira diante do modo como Ove age é tentarmos não ser tão rabugentos e chatos quanto ele, mas à medida que o filme vai avançando, o personagem começa a tomar um alcance diverso daquele que vínhamos tendo dele até então.

Quando o passado dele é contextualizado, o filme assume de vez algo que já vinha se insinuando, que é uma delicada e profunda reflexão sobre a amizade, a velhice, o amor e, principalmente, sobre as marcas que determinadas experiências podem deixar num coração. Ove não deixa de ser o velho metódico e turrão. Todavia, a compreensão ampla de quem ele é/foi confere beleza e poeticidade à trajetória dele. Ao tomarmos conhecimento das experiências que o fizeram ser o que dele presenciamos, descortina-se um personagem profundamente humano. Não há como não gostar dele.

(Além do cartaz do filme, inseri nesta postagem duas fotos que fiz após pausar Um homem chamado Ove. Num determinado momento do enredo, o personagem faz uma viagem à Espanha; lá, hospeda-se num hotel chamado Araxa (sem acento mesmo). Dei uma conferida rápida na internet. Há mesmo um hotel com esse nome na Espanha; fica em Palma de Mallorca.) 

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Piolhos

Eu pensava que os piolhos, assim como os dinossauros, haviam entrado em extinção. Pensava eu que piolho era coisa da minha época. Fiquei surpreso de fato quando descobri que ainda infestam os pensamentos dos alunos.

Minha mãe tentou um tratamento nada ortodoxo contra os que tive. Ela borrifava um veneno chamado Neocid, que vinha numa lata amarela, redonda. Depois de borrifar, amarrava um pano na minha cabeça. Não me lembro se o tratamento era eficaz contra piolhos, mas descobri que sou à prova de Neocid. 

Êxito e fracasso

Em texto que escrevi em 2013, mencionei o livro O andar do bêbado, escrito por Leonard Mlodinow. Nele, o autor discorre sobre a presença do acaso e do aleatório em nossas vidas. A tese do livro de Mlodinow é a de que não há como sabermos as causas do que leva uma pessoa a se dar bem ou a se dar mal.

Ontem, comecei a ler Ética e vergonha na cara!, livro de conversas entre Mario Sergio Cortella e Clóvis de Barros Filho. Em determinado momento, Steve Jobs é citado por Clóvis de Barros Filho: “Queria lembrar Steve Jobs que, em um momento de sua autobiografia, diz algo mais ou menos assim: ‘Curioso, porque jamais poderia imaginar que as coisas que eu estava fazendo levariam a esse resultado a que cheguei. Hoje as pessoas julgam o que eu fiz em função do ponto a que cheguei, mas não houve da minha parte uma estratégia deliberativa orquestrada para chegar aonde cheguei. Porque aonde cheguei decorreu de um milhão de causas que até eu ignoro — causas psicológicas das pessoas que contratei, causas macroeconômicas que eu não podia controlar. E hoje as pessoas querem fazer de mim um guru por ter arquitetado as coisas de maneira que chegasse a esse resultado. Mas não sou causa dos resultados que eu mesmo colhi’”.

Os defensores da chamada meritocracia querem incutir naqueles que consideram perdedores a ideia de que são perdedores porque são preguiçosos, incompetentes ou imbecis, ao passo que eles, meritocratas, vencedores aos próprios olhos, são disciplinados, talentosos e inteligentes; exatamente por terem tais atributos, deram certo.

O meritocrata tem uma visão egoísta de si; com frequência, o egoísmo leva a uma visão distorcida da realidade. O defensor intransigente da meritocracia se considera o único responsável por ter atingido o que ele chama de sucesso. De modo análogo, para ele, aquele que ele considera perdedor é o único responsável pelo que o meritocrata chama de fracasso.

É impossível saber o que leva uma pessoa ao fracasso ou ao sucesso. Também por isso, as palestras motivacionais de empreendedorismo incorrem em erro quanto os palestrantes expõem fórmulas para se ter êxito, exibindo “cases” (palavrinha que eles adoram) de sucesso.

Teria sido muito fácil para um sujeito como o Steve Jobs se considerar o único responsável pelo sucesso que obteve. Contudo, ele teve a inteligência de perceber que não há como uma pessoa saber o que a levou à vitória — ou à derrota. Isso não nos livra de nossa responsabilidade em nossos fracassos nem anula nossa participação em nossos êxitos. Todavia, a partir daí, como querem os “sábios” da meritocracia, atribuir somente ao indivíduo a causa por seu sucesso ou por sua derrota é indício de ignorância ou de desonestidade intelectual. 

domingo, 17 de dezembro de 2017

Você é sonso?

Quando eu era pequeno, minha mãe me dizia que eu era sonso. Com isso, ela queria dizer que eu era lento, bobo. Passei décadas supondo que esse era o sentido do vocábulo “sonso”. Num dia, enquanto eu estava folheando um velho dicionário em busca de uma palavra, meus olhos se deparam com a palavra “sonso”. O significado dela me surpreendeu: “Que ou aquele que finge não ter defeitos ou se faz de simplório, palerma, inocente, mas faz coisas reprováveis dissimuladamente ou pelas costas; manhoso, dissimulado, santo do pau oco”.

A definição acima é a que está na versão eletrônica do dicionário Houaiss, que tem o mesmo teor da definição do Aurélio, com a qual me deparei há tempos. Ou seja, o sonso não é um palerma, um bobo. Ele se finge de. A cultura popular pegou a parte visível do fingimento e a tomou como significado da palavra, quando de fato a totalidade do significado está no fingimento e no que ele esconde.

sábado, 16 de dezembro de 2017

Empáfia e jeitinho não ganham jogo

Há ocasiões em que não há espaço para o improviso, o descompromisso, o achar que as coisas vão se resolver a partir de um jeitinho, de um drible. O futebol brasileiro insiste em negar essa evidência, a despeito do sete a um na Copa aqui realizada.

O jogo entre Real Madrid e Grêmio, terminado há pouco, jogou luz mais uma vez sobre o quanto nosso futebol está distante do profissionalismo do futebol europeu. A culpa disso é dos nossos cartolas e do espírito improvisador do brasileiro, o qual acha que tudo resolver-se-á a partir da genialidade, que é rara e não anula a necessidade de treino, disciplina e profissionalismo.

Durante a partida, o próprio locutor do Fox Sports ficou clamando por um lance de genialidade. O brasileiro como um todo e o futebol aqui praticado precisam aprender que esse negócio de genialidade, no futebol de hoje, não se fará sem rigor, concentração e seriedade.

Como somos um povo que não vai assumir esse compromisso, teremos em campo o que houve há pouco no jogo entre Grêmio e Real Madrid. Mesmo disputando um torneio para o qual não dão importância, e que o Grêmio considerava essencial, a equipe espanhola ganhou com facilidade do time brasileiro. Os europeus nem tiveram de se esforçar para chegarem à vitória.

O primeiro tempo foi monótono. No segundo, Cristiano Ronaldo bateu falta que passou no meio da barreira e foi parar dentro do gol. Houvesse para o Grêmio a mesma desimportância que o jogo tinha para o Real Madrid, a derrota seria menos sintomática do modo amador como nosso futebol é gerido. Mesmo as equipes tendo entrado em campo com atitudes tão distintas, o Real Madrid passeou enquanto o Grêmio escancarou o fiasco de nosso jeitinho, despreparo e incompetência. Mas não será isso que vai nos livrar de nossa atávica empáfia e de nossa perigosa ilusão quanto a nossos talentos. 

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

"Confesso que perdi"

Dizer que se espera de um profissional que ele seja ético parece ser algo redundante. Mas é uma daquelas redundâncias que precisam ser ditas, por haver tantos profissionais sem ética. Não é diferente no jornalismo. Interesses espúrios, ideologias pessoais ou puxa-saquismo acabam deturpando o que deveria ou poderia ser jornalismo.

Juca Kfouri é o jornalismo feito com ética, beleza e espírito combativo. Numa época em que meios de comunicação contratam profissionais que não sabem lidar nem com o próprio idioma de que se valem para se comunicar com leitores, ouvintes e telespectadores, Kfouri é o cuidado com o idioma, que não é pose nem é inócuo porque vem, antes de tudo, sustentado por uma conduta corajosa e honesta.

Todo esse espírito está em Confesso que perdi, livro de memórias publicado recentemente por Juca Kfouri; a obra saiu pela Companhia das Letras. Há momentos líricos, ternos. Sem cair em discurso açucarado nem em condescendência para consigo, Confesso que perdi se detém mais sobre o universo profissional do autor, ainda que, o que é natural nesse tipo de livro, haja menção a questões mais intimistas.

A leitura do livro é um refrigério. Mesmo que o autor confesse ter perdido, com o que concordo, a partir da justificativa que ele dá no livro e que tem dado em entrevistas e depoimentos, Confesso que perdi, a despeito de ser a crônica de uma derrota anunciada já no título, é, paradoxalmente e ao mesmo tempo, a vitória de um profissional que é uma pérola no jornalismo brasileiro.

Juca Kfouri conta casos, bastidores dos eventos que cobriu, histórias sobre as pessoas com as quais conviveu e as quais entrevistou. À medida que eu ia lendo o livro, a memória resgatava cenas de Kfouri que conferi na TV ou memoráveis páginas com a presença dele em revistas. Enquanto lia Confesso que perdi, eu me dei conta de que o autor está mais presente na minha vida de telespectador e de leitor do que eu havia percebido.

domingo, 10 de dezembro de 2017

Haicai 62

Para minha cura,
não importa o mal,
drágeas de leitura. 

O que Zezé di Camargo enxerga e o que Marcelo Rubens Paiva enxerga

Os que defendem o retorno da ditadura deveriam ler Ainda estou aqui, do Marcelo Rubens Paiva, cujo pai, o político Rubens Paiva, foi torturado e morto pelo regime militar. Mas gente a favor da tortura ou do regime militar não está interessada nesse tipo de leitura. Gente assim está preocupada em não aprender sobre a história do país.

Não raro, isso as leva a negar a história. É o que fez, dentre outros, em setembro, Zezé di Camargo, ao declarar que não existiu ditadura militar, mas o que ele chamou de “militarismo vigiado”. Na ocasião, o cantor disse ainda que o Brasil “nunca chegou a ser uma ditadura daquelas que você ou está a favor ou você é morto”. Ele deveria ler o livro de Marcelo Rubens Paiva. Mas não vai. E ainda que lesse, não mudaria o pensamento.

Ao se deter no microcosmo da família do autor, Ainda estou aqui escancara o mal que a ditadura fez ao país. Claro que ele não é o primeiro a fazer isso; nem será o último. O que não impedirá que haja pessoas concordando com o Zezé di Camargo ou pessoas alegando que os militares fizeram bem em torturar e em matar. 

O engano não é só do Bono

Autorias atribuídas incorretamente passaram a ocorrer com mais furor após os ventos da internet e das redes sociais. Um desses casos é o poema “Instantes”, tido como sendo de Jorge Luis Borges. Eu mesmo tenho um jornal em casa em que o texto é atribuído a Borges. Quando ele não é atribuído a Borges, é atribuído a uma estadunidense de nome Nadine Stair. “Instantes” não é nem de Stair nem de Borges. É de Don Herold, humorista dos Estados Unidos.

A atribuição incorreta dessa autoria já causou episódios curiosos ou divertidos. Num deles, Bono Vox, vocalista do U2, disse, num canal de TV mexicano, antes de ler trechos do poema, que declamaria alguns versos do “poeta chileno Borges”. Há duas informações incorretas na afirmação do Bono: Borges não é chileno, mas argentino. 

O apelo do Tito

Tive um dia desses mais uma prova insofismável do quanto sou desafinado: comecei a cantar, o Tito, meu cachorro, começou a resmungar num choro baixinho. Parei de cantar, o Tito voltou a sorrir. 

Apontamento 371

Por mais que vivamos, a morte sempre recebe um rascunho. 

Comunhão

Não escrevo na ilusão de mudar as pessoas nem de mudar o mundo. Isso seria muita empáfia minha. O que escrevo é meu modo de dizer que você não está sozinho, que eu não estou sozinho, que não estamos sozinhos. Mas sei: ainda que sozinho eu estivesse, escreveria. Mas saber que não estou sozinho é mais uma razão para que eu escreva. 

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

A ghost story

Se por acaso você cogitar não assistir ao filme A ghost story (2017) por achar que o enredo remete a Ghost — do outro lado da vida (1990), esqueça isso. Também não deixe de assistir ao filme por achar que um fantasma representado por uma pessoa coberta por um lençol é algo muito infantil ou inverossímil para ser conferido. Por fim, se você não gosta de filmes de terror, leve em conta que A ghost story não é um filme de terror e que qualquer gênero tem obras-primas.

O filme não tem pressa e subverte regras clássicas de composição dos quadros cinematográficos. Acostumados do modo como estamos aos cortes frenéticos da maioria das produções atuais, o diretor David Lowery, também o autor do roteiro, propõe longas tomadas com a câmera estática.

O filme é estrelado por Casey Affleck e Rooney Mara. C (interpretado por Casey Affleck) morre em acidente de carro. M (interpretada por Rooney Mara) fica sozinha na casa deles. Pouco depois de deixar o hospital a que havia sido chamada para fazer o reconhecimento do corpo de C, M vai embora; instantes depois, C se levanta e sai caminhando, coberto pelo lençol que estava sobre seu corpo no hospital.

O fantasma de C vai parar na casa que era compartilhada por ele e por M, onde ela passa a morar sozinha. A partir daí, A ghost story se torna uma bela e poética reflexão sobre a inexorabilidade da passagem do tempo e sobre a destrutibilidade de tudo o que edificamos. Com relação ao espaço que ocupamos, o acesso ao que houve e o conhecimento do que haverá não anulam a destruição cabal. Num eufemismo, dir-se-ia que a transformação é que vem, não a destruição. 

Pode-se assistir ao filme de David Lowery como uma alegoria da dificuldade que temos em nos desapegar daqueles com quem um dia convivemos ou daquilo que um dia esteve em nossas mãos. Num limbo melancólico, o fantasma de C não se conforma com a dissolvência do que um dia foi o espaço dele, mas que foi e será o espaço de outros.

Pode ser que chegue o instante em que não haverá o espaço de ninguém. Numa dimensão cósmica, pode ser que não restará nem memória nem átomo do que fomos ou dos lugares que ocupamos ou das coisas que tivemos em mãos. Diante da duração e da extensão do Universo, nossas vidas são ínfimas. Não bastasse, um vento macondiano poderá aniquilar qualquer possibilidade de permanência de qualquer coisa. Mas isso não é pretexto para que deixemos de assistir a filmes como A ghost story. Que se reserve tempo e espaço para o trabalho de David Lowery. 

Sobre práticas pronominais

Ainda há pessoas que se encantam porque o presidente usa mesóclise. Sob pretexto de moralizar o país e sem saber (ou sabendo) que vai doer nelas também, dar-se-ão por satisfeitas com o pronome oblíquo no meio. 

Haicai

Constato demais:
é bonito e sedutor
quem lê mais. 

Singular

Gosto de gente no singular. 
Mais de dois, multidão.
Não confio em plural,
o singular me robustece. 
Melhor do que dois,
somente a solidão. 

A liga da justiça

Que o humor é algo magistral, todo mundo sabe. Mas ele não pode ser usado para encobrir ou salvar algo que é ruim. Ele deve ser a consequência de algo que é bom. Nem o humor de A liga da justiça o redime. É o humor que faz com que o filme seja simpático. “Simpático” não é um adjetivo honroso para um filme que pretendeu ser mais.

A impressão com que filmes de super-heróis têm me deixado é a de que há enredo de menos e computação gráfica demais. Não bastasse isso, os vilões têm sido tediosos e óbvios. Foi assim em Batman versus Superman, é assim em A liga da justiça. Os alienígenas vilões dos dois filmes são superficiais, servindo apenas para dar e levar porrada.

Os fãs dos quadrinhos ressentir-se-ão com o fato de que a essência do Flash não é a mesma (nos quadrinhos, ele não é o engraçadinho do filme) e com a pouca empatia que o Cyborg gera. Quanto a Aquaman, é um personagem bem construído. Pena que após fazer menção a Ahab, personagem do livro Moby Dick, joga uma garrafa ou algo assim no mar. Não faz sentido justamente ele poluir as águas.

Aqui ou ali, há referências a outros filmes de super-heróis. O primeiro soco desferido pelo Super-Homem no vilão em A liga da justiça tem menção ao tema criado por John Williams. É esse o breve instante em que alguma emoção se esboça, logo indo embora. Nem o (mais uma vez) belo trabalho de Danny Elfman na trilha sonora consegue dar alguma grandiosidade a um filme destituído de grandeza. O humor sozinho não pode salvar o mundo. 

Haicais pontuais

1
Três pontos: reticências.
Três exclamações:
excrescências.

2
Três pontos: reticências.
Três interrogações:
excrescências. 

sábado, 25 de novembro de 2017

Pedro Cardoso na TV Brasil

O ator e escritor Pedro Cardoso esteve recentemente nos estúdios da TV Brasil. Em vez de conceder a entrevista para a apresentadora Katy Navarro, ele criticou o diretor da emissora, Laerte Rimoli, por supostas declarações racistas dirigidas à atriz Taís Araújo. Em sua intervenção, o ator ainda apoiou os grevistas da TV Brasil.

Poder-se-ia argumentar que Pedro Cardoso protagonizou o episódio como estratégia de divulgação de si mesmo, e, de modo indireto, de seu primeiro romance, O livro dos títulos, lançando recentemente. Os que acusam o ator em virtude do ocorrido no estúdio da TV Brasil alegam que ele sabia de antemão tanto da greve dos servidores quanto do suposto racismo de Rimoli.

Ciente tanto de uma coisa quanto da outra, a atitude adequada dele teria sido não comparecer ao estúdio do canal de TV. Pedro Cardoso teria feito o que fez por saber que uma conversa “comum” em que ele falasse de seu livro não repercutiria tanto como repercutiu a atitude dele de fazer o discurso que fez e de ir embora sem conceder a entrevista.

O episódio foi habilmente conduzido por Katy Navarro. Não tenho como saber quais teriam sido as motivações intrínsecas de Pedro Cardoso. Se ele tiver agido também com a intenção de causar a repercussão do nome dele, isso não me incomoda; se tiver agido com a intenção de criticar a direção da TV Brasil e de apoiar os grevistas, isso muito me contenta. 

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Resvalos

Nietzsche resvala na poesia.
Guimarães Rosa resvala na filosofia.
Eu resvalo na leitura. 

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

A duração do conhecimento

As universidades particulares são adeptas do empreendedorismo, que mencionei na postagem anterior. Uma das pérolas do empreendedorismo é o “pitch”. O termo se refere a uma apresentação de três a cinco minutos. O tal do “pitch” foi parar na academia.

Nas universidades, já estão pedindo comunicações que durem de três a cinco minutos. É a linha de produção nas comunicações acadêmicas. O lance é ser rápido, superficial, tolamente palatável. Mais um estratagema a serviço da bestialização e da preguiça das pessoas de pensar e de prestar atenção.

O uso do termo “pitch” confirma o quanto o pessoal do empreendedorismo adora usar vocábulos estrangeiros. “Pitch” vem do inglês. Em linguagem informal, segundo o dictionary.com, significa “to attempt to sell or win approval for; promote; advertise: ‘to pitch breakfast foods at a sales convention’”. 

Das bobagens do tal empreendedorismo

Crachás de equipe de hotel que visitei recentemente não tem dizeres como “atendente”, “telefonista” ou “gerente”. Em vez de escreverem a função que a pessoa tem na empresa, escreveram a palavra “emocionador” no crachá dos funcionários.

Fico até pensando nas tais dinâmicas a que são submetidos quando há reunião. Por outro lado, o modismo do “emocionador” vai pegar, por ser tão bobo quanto outros modismos já propalados pelas corporações e seus empreendedorismos. 

Haicai 60

Liguem a televisão!
Está começando o 
Show do Grilhão. 

Meu balanço da Fliaraxá

À parte uma excessiva e artificial intimidade dirigida aos convidados por parte do mediador da maioria das conversas nos diálogos literários na Fliaraxá, que ocorreu de quinze a dezenove de novembro, um evento como esse é bom por um sem-número de razões. A questão dessa intimidade me incomodou porque era reiterada. Não há nada de errado em alguém expressar carinho ou afeto por um amigo em público. Todavia, quando há o exagero, a conversa cai num tom informal demais, fazendo com que o evento assuma uma leveza afetada.

Não é da conta de ninguém se o mediador é muito amigo dos convidados. É muito antipático quando a pessoa quer mostrar, reiteradamente, que é amigo de alguém num evento em que há um imenso público que não está interessado na amizade que possam ter, mas, sim, no trabalho que executam. Talvez o auge de tudo isso, que considero pouco profissional, tenha sido o momento em que o mediador chamou Zuenir Ventura de Zuzu. Tivesse isso sido um episódio isolado, teria sido algo que até poderia ter soado divertido, mas foi apenas mais um ato da longa série de intimidades ou supostas intimidades entre amigos no tom de que se valeu o principal mediador das conversas.

Não bastasse, ao expor a (suposta) amizade que tem com os convidados, o mediador, que também foi o curador do Fliaraxá, se valia de um tom muito baixo de voz, na intenção, suponho, de soar carinhoso para os amigos. Nessas horas, era quase impossível escutá-lo, mesmo eu tendo estado o tempo todo muito perto do palco e das caixas de som. A curadoria dele foi excelente; nomes consagrados se juntaram a estreantes, autores de variados matizes participaram. Penso que seria melhor a Fliaraxá manter a curadoria e buscar outro mediador para as conversas.

Dito assim, sei que estou parecendo um daqueles velhos ranzinzas que reclamam de tudo. Asseguro que sou apenas velho. As reclamações que faço são muito mais expressão de um desejo genuíno que o evento dê certo, que prossiga, que cresça. Além do mais, o que considero intimidade forçada e falta de profissionalismo pode não ter incomodado outras pessoas e pode não ser encarado assim por outros que acompanharam a Fliaraxá, seja pessoalmente, seja via internet.

No todo, gostei demais do evento, que é um refrigério em meio a tanta caretice que tem havido no Brasil. Sei muito bem que não é fácil organizar algo daquele porte. Há muita gente e muito equipamento envolvido. As coisas funcionaram. Os imprevistos que aconteceram não comprometeram o andamento da festa. É bom presenciar uma cidade do interior, com pouco mais de cem mil habitantes, possibilitando a nós, sem cobrar entrada, acesso a grandes nomes da literatura nacional (Cristovão Tezza, Luiz Ruffato) e internacional (Mia Couto, José Luís Peixoto).

Pela primeira vez, a Fliaraxá foi realizada no famoso Grande Hotel de Araxá, espaço amplo e bonito para um evento que foi tão amplo e bonito quanto o lugar em que ocorreu. Não houve tolices, não houve ninguém pedindo tortura nem ditadura, o que é um alento num país em que livres manifestações de ideias têm sido invadidas por quem não quer pensamentos contrários aos seus sendo debatidos. Só num evento assim é que temos a oportunidade de estarmos próximos daqueles que tanto admiramos à distância. Voltei de Araxá já com saudade do que houve e com vontade de estar lá outra vez. 

O conto de Arnaldo

Arnaldo não se dedicava a longas ações porque tinha medo de morrer durante a execução de uma delas. Morreu enquanto estava digitando um haicai. 

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

"Down em mim"

É muito bom quando há a preocupação com soar bonito; não raro, isso está nos detalhes. Eu estava escutando "Deu pra ti", com Kleiton e Kledir. Na segunda vez em que se canta "quando eu ando assim meio down", o vocal de apoio fica repetindo "down, down, down"... É muito bonito. A busca do belo já é uma beleza em si. 

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Docentes, discentes e outros entes

Com frequência, digo que se boa parte das pessoas que parabenizam os docentes quando é quinze de outubro se preocupassem ou tivessem se preocupado em ser bons alunos, a educação seria um pouco melhor. Com isso, nem preciso dizer, não estou desprezando as congratulações que vêm dos estudantes que têm ou tiveram comportamento decente. Dito isso, quando não é o dia dos professores, a tônica é falar mal da escola, não importa se a pessoa tenha sido uma daquelas que em sala de aula exibiam comportamento deplorável.

Há algum tempo, no Facebook, alguém postou um texto atribuído à Lya Luft, intitulado “O traje”, em que ela discorre sobre o desleixo que se tem com o português. Uma senhora vaticinou, nos comentários da postagem, de modo lacônico, a causa desse desleixo: “Isto é a escola que temos”. Esse prosaico exemplo confirma a tendência de se criticar a escola como um todo.

Tenho convivido há muito tempo com a necessidade de escrever algo a favor dos professores. Contra nós, já há muito modismo, muita burrice disfarçada de pedagogia e muitos burocratas. Todavia, este texto, antes de ser uma defesa a favor dos que lecionam, mesmo eu sabendo que não precisam de alguma intervenção minha, é, antes de tudo, consequência de ideias que preciso materializar. As vivências de que me valho são em maioria as que tive no ensino médio, embora não sejam tão diferentes nos outros níveis da educação.

Durante a maior parte de minha vida, lecionei em escolas particulares. Sempre tive as ferramentas necessárias para realizar meu trabalho. Desde 2014, leciono em instituto federal; os institutos federais fazem parte da rede de escolas públicas da União. Aqueles que não concordarem com o teor deste texto podem, talvez, alegar que tanto nas escolas particulares em que trabalhei quanto no instituto federal eu não vivenciei nem vivencio a precariedade do ensino público dos estados. Estão certos nessa alegação.

É verdade que não trabalhei nem trabalho em ambiente precário. Mas não sou alienado. Tenho colegas professores que trabalham na rede estadual. Converso com eles, sei das dificuldades que têm de enfrentar. Sei também que tanto em Minas Gerais quanto em outros estados há escolas mais precárias do que algumas que conheci.

O que me incomoda é que, com frequência, quando se fala mal da educação, responsabilizam os professores pelas fraquezas do ensino. Com relação a isso, de antemão, devo dizer que não sou ingênuo. Certa vez, aqui em Patos de Minas, visitando uma escola estadual, onde eu falaria sobre literatura, a convite de um professor, escutei, durante o intervalo, uma professora dizendo que, depois de terminada a faculdade, nunca mais havia lido um livro. E completou: “Eu me formei há dezesseis anos”. Sei bem que há professores que não cumprem o mínimo do que é da obrigação deles.

Quando se fala mal da educação, nem sempre as pessoas têm acuidade. Quando criticam o ensino, estão culpando o governo estadual, a falta de estrutura das edificações ou os professores? Ou estão criticando tudo isso? No que diz respeito aos professores, a maioria deles não é do tipo que nunca leu nenhum livro depois que se formou. É difícil uma semana em que não me deparo com algum professor ou alguma professora da rede pública estadual fazendo muito mais do que é o dever dele ou dela. Enquanto isso, o tempo vai passando. Mais um quinze de outubro vem. Os professores são elogiados. Terminado o dia, a culpa pelo fracasso do ensino volta a ser dos docentes.

Não bastasse, passou-se a delegar à escola funções que não são dela. Coisas que deveriam ser aprendidas em casa têm, agora, de ser ensinadas em sala de aula. Há muitos anos, numa palestra cujo tema era ética, o palestrante iniciou a fala dele dizendo que era difícil falar sobre ética, pois ela é algo que percebemos se a pessoa tem (ou não tem) pela maneira como ela abre uma porta. Os professores têm de ensinar a uma pessoa de dezesseis anos como se abre uma porta ou como se portar quando alguém está dando uma aula.

Tem-se, então, um quadro em que parcela da sociedade culpa os professores pelo fiasco da educação. Isso, por si, é ruim. Mas os professores têm outro algoz, não importa se na rede pública estadual ou federal: o próprio sistema escolar. Nesse jogo de apontar o dedo para aqueles que supostamente não fazem o que deveriam fazer, o aluno deixou de ser responsabilizado. O discente fica de fora do problema.

Os que estão em cargos de comando na educação têm o mantra de que o professor deve aprender, deve se atualizar, deve estar em sintonia com o mundo, deve saber falar a linguagem da juventude. Qualquer professor que já tenha estado numa escola para lecionar já escutou essa prédica, que é correta, embora aplicada de modo deturpado. Falar a língua do aluno não é o mesmo que ter de ser extrovertido, de ter de ser comediante.

Em tese, todo professor é um leitor. Ele pode até não cumprir sua função quanto às leituras que deveria sempre fazer. Mas os que estão em cargos de comando na educação, salvo exceções, não dizem ao aluno o que ele deve fazer. Ainda que digam ou que façam de conta que dizem, na prática, as atitudes são de quem está exigindo somente dos professores.

Ensinar se torna então mais complicado ainda. O mundo fora da escola diz que o aluno deve ter sempre o mais recente modelo de celular, diz que ele deve consumir drogas em festas, que é a roupa que define o caráter, que basta tomar refrigerante para se alcançar a felicidade. O mundo fora da escola é o mundo da permissividade.

Esse mundo não dirá ao aluno que o universo do conhecimento nem sempre vai ser divertido; não dirá que o estudante pode vir a ter muitos fracassos, por mais inteligente que seja; não dirá que sisudez e timidez não são defeitos; não dirá que a sutileza é poderosa. O mundo fora da escola prega ousadias barulhentas, declarações inconsequentes. O mundo lá fora dirá que o estudante não merece um não, dirá que ele tem direito, imediatamente, ao que quer, ainda que não tenha lutado por isso.

O mundo fora da escola é o mundo do sim perene, da conquista sem esforço, do conhecimento sem dedicação, da ausência da dor e da obrigatoriedade da alegria. O professor, pela natureza da profissão, não deveria coadunar com essas ideias. Só que ao não coadunar, ele se torna um pária. Professor bom prega profundidade e concentração; elas não são indicativos de caretice nem impedem o surgimento do humor.

Na maioria das vezes, o professor tem a clara ciência de que o que ele propõe está contra a onda irresponsavelmente hedonista do mundo fora da escola. O professor segue, a despeito de suas limitações, tentando fazer seu trabalho. O problema é quando ele fraqueja. Antes de ser um profissional da educação, o professor é gente. Quando fraqueja, no mais das vezes, estará sozinho. Vão dizer a ele o que ele já sabe: que ele deve se informar, que ele deve falar a língua do jovem...

Na prática, não há, nos cargos de comando, contundentes profissionais (na teoria, há) a perguntar para os estudantes se eles tentam entender a linguagem dos professores ou se eles, estudantes, estão dispostos a agir em consonância com a ideia de que o caminho do conhecimento é trabalhoso. Não dizem que o aluno terá de estudar demais e terá de aprender a falar corretamente se quiser ir mais longe em si mesmo. Não perguntam aos estudantes o que eles têm feito para assimilarem o legado dos que vieram antes deles.

Sempre resguardadas as exceções, os que estão no comando burocrático da educação serão contundentes com apenas um dos lados da moeda, o lado de quem está empenhado em passar para os alunos coisas que o mundo fora da escola não diz a eles. Nesse cenário, o professor fica sozinho. Volta para casa remoendo a deselegância do estudante ou a incompreensão dos que ocupam cargos de chefia, que, na maioria das vezes, terão o discurso usual, o de que faltou nele, professor, o traquejo, o manejo ou a experiência para saber dialogar com a juventude.

Essa juventude, que ainda não aprendeu que o mundo das ideias é bem mais profundo do que uma mensagem em aplicativo de celular, seguirá mimada. Para boa parte dos que estão no comando burocrático da educação, basta que o professor seja uma espécie de animador de auditório como os que há em programas dominicais para ser considerado bom; alunos ingênuos pensam de modo similar. Os comandantes continuarão a adular os jovens, mesmo quando fazem de conta que não adulam. Os jovens, por sua vez, seguirão cheios de si, numa empáfia que é típica da idade e que é incentivada por quem deveria estar dando apoio aos professores. Há todo um aparato dentro do sistema escolar dizendo para o professor, o tempo todo, o que ele deve fazer; não há nem esboço de estrutura similar a sugerir para os estudantes o que eles deveriam fazer. Nada se fala do papel do aluno na melhoria da educação. A juventude seguirá blindada; os professores seguirão desguarnecidos.

Boa parte da sociedade culpa os docentes. Boa parte do sistema educacional culpa os professores. Nesse massacre, muitos dos que lecionam passaram mesmo a acreditar que são de fato os culpados pelo desastre que a educação se tornou, pois é isso que os detratores reiteradamente apregoam. Qualquer professor trocaria as mensagens açucaradas vindas deles ou de burocratas em quinze de outubro por atitudes firmes de apoio nos demais dias. 

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Quanto pesa um morto?

Somente há algumas horas assisti a Infidelidade [Unfaithful] (2002), do diretor Adrian Lyne. Os roteiristas são Claude Chabrol, Alvin Sargent e William Broyles Jr. Nos papéis principais, Richard Gere, Diane Lane e Olivier Martinez.

Edward Summer (interpretado por Gere) mata Paul Martel (interpretado por Olivier Martinez), pois Martel tinha um caso com Connie Summer, esposa de Edward (Connie é interpretada por Diane Lane). Logo após o homicídio, Edward não sabe bem o que fazer com o cadáver. Decide então enrolar o corpo morto num cobertor; a seguir, prende o tecido com fitas adesivas e arrasta Paul para dentro de um velho elevador, que estava com defeito. Por causa disso, o elevador emperra entre dois andares. É quando Edward ergue do chão o morto. Erguendo-o, consegue elevá-lo acima dos ombros e deixá-lo novamente no chão, fora do elevador.

Enquanto eu assistia à peleja de Edward com o corpo de Paul, fiquei pensando na força que ele teria de fazer para tirar o morto do chão e erguê-lo. Mal esse pensamento me ocorrera, eu me lembrei de uma frase que está num dos romances do Gabriel García Márquez: “Você não sabe o quanto pesa um morto”. Segundo García Márquez, quando ele ainda era criança, essa frase lhe fora dita pelo avô dele.

Algo em torno de dez ou quinze anos antes da morte de Márquez, tentei enviar algumas perguntas para ele, no que seria uma entrevista. Enviei esse conteúdo para a editora que o publica no Brasil, pedindo à equipe da empresa que encaminhasse as perguntas para ele. Não obtive retorno. Depois, vasculhando a internet, consegui o que, salvo engano, era o e-mail profissional de um dos irmãos de García Márquez. A pessoa com quem entrei em contato poderia não ser um dos irmãos dele, a despeito do sobrenome, que era o mesmo do autor. Também não obtive retorno para esse e-mail. Fui abusado em tentar conseguir a entrevista, pois sou desconhecido, não trabalho em nenhum grande periódico. Mas não havia delírio. Eu estava ciente de que era improvável o escritor receber as perguntas que eu havia preparado.

Há algumas horas, assistindo à cena que ocorre dentro do elevador no filme de Adrian Lyne, eu me lembrei de frase do avô do Gabriel García Márquez. Penso que o autor teria gostado de saber disso. Mas ainda que ele tivesse recebido as perguntas que enviei ao tentar entrevistá-lo, eu não comentaria sobre a cena do filme, pois só hoje é que o conferi. Mesmo assim, suponho que o autor teria gostado de saber que a frase do avô dele ainda reverbera.

“Você não sabe o quanto pesa um morto”.

Ecológico

A natureza não pede socorro.
Depois de nós,
ela vai se inventar,
vai se renovar.
Nós pediremos socorro.

A natureza não escuta súplicas. 

A dama e o guarda-caça

Em tempos nos quais muitos hipócritas fazem mais barulho por causa de uma pessoa nua do que pelas indecências do senado e da câmara dos deputados (muitos dos hipócritas barulhentos e indecentes estão nessas duas casas), O amante de lady Chatterley (1928), escrito por D.H. Lawrence, prossegue relevante. Dentre tantas coisas, o livro pode ser lido também como libelo contra a hipocrisia.

Num país como o Brasil, que, seja por má-fé, seja por ingenuidade, por interesse próprio, por ignorância, elencou alguns como corruptos e outros como salvadores, mas que, mesmo assim, continua elencando salvadores falsamente moralistas e verdadeiramente perigosos, O amante de lady Chatterley, que também permite leitura política, tem muito a dizer. Irresponsáveis, há no Brasil os que tecem elogios a torturadores e alegam que vão acabar com a corrupção. Mas o moralismo ditatorial de muitos só consegue enxergar a corrupção que vem de alguns. Mesmo quando dizem que gostariam de ver seus heróis na cadeia, de pronto se dizem apoiadores de quem elogia ditaduras e torturas. Defensores de “virtudes”, querem uma sociedade, na visão deles, ordeira, obediente.

Esses conservadores, alguns por ignorância, outros por questões interesseiras, reprovariam um livro como O amante de lady Chatterley, ainda que as cenas de sexo não sejam chocantes. O livro é um grande romance sob qualquer aspecto. O sexo é um desses aspectos, mas tão importante quanto os demais. Ainda que se leve em conta a ousadia do autor em ter usado palavrões numa época em que eles quase não frequentavam a literatura, o que o livro tem de grandioso quanto ao sexo são as ideias que ele defende. Ainda que não se concorde com Lawrence, ele tem uma teoria sobre o sexo e sobre o amor.

Todavia, não é somente com relação ao sexo que certos defensores dos bons costumes do Brasil atual reprovariam O amante de lady Chatterley. Como todo portentoso trabalho literário, o livro é vasto, multifacetado. A política ou as questões sociais são outro grande tema de que trata a obra, cujo enredo se passa quando os estilhaços da primeira guerra mundial ainda não haviam sido retirados das ruas.

Os guardiões da boa conduta no Brasil de hoje não aprovariam o modo como Clifford é retratado no livro. Ele, vítima da guerra, é também os preconceitos da classe a que pertence. O próprio Lawrence, em texto sobre o livro, admite que Clifford pode ter aspectos simbólicos. Ainda que Lawrence não tivesse admitido isso, a cena em que Clifford depende de Mellors para subir uma encosta é densa, ao contrapor o papel de duas classes sociais e de dois modos díspares de como encarar a organização política, o sexo e o mundo.

Clifford é o burocrata, o frio, o que se considera detentor de privilégios por meramente pertencer a determinada classe social. Mellors é o “selvagem”, o espontâneo, a força da natureza. Sobre Clifford, Lawrence, num ensaio, escreveu: “Ele é um produto da nossa civilização, mas é a morte da humanidade”. Ao se referir a Mellors, Lawrence diz que ele “ainda conserva o calor de homem” e que ele representa a vitalidade.

Como toda grande obra artística, O amante de lady Chatterley pode ser lido hoje sem que soe datado. Como toda grande obra artística, dialoga com a época em que foi produzida sem deixar de desvelar verdades atemporais. Dizer que se trata de um livro corajoso já seria um grande elogio, mas a coragem não é a única virtude da obra. Com vigor, com talento e com honestidade, Lawrence expõe a fraqueza e a pusilanimidade de pessoas que, a despeito de sua artificialidade, julgam-se superiores em função de privilégios econômicos.

Seja pelo ridículo de Clifford, pela coragem de Mellors, pela entrega de Constance Chatterley, pelo que tem de político, pelo que tem de amor, O amante de lady Chatterley é uma obra que incomodaria muitos dos supostos paladinos dos bons costumes e da boa moral no Brasil de hoje. Também por isso, num país em que a indecência, não raro, usa terno e gravata ou se diz religiosa ou gente de bem, é um livro de leitura imprescindível. 

A morte da política ou a política da morte

Em 2011, quando Lula teve câncer, houve postagens em que se desejou a morte dele. Após a reeleição de Dilma, dentre outras atitudes, em adesivos para carros, pegaram a imagem dela e a colocaram, com as pernas abertas, no lugar em que a bomba é colocada para abastecimento do carro. Recentemente, eu me deparei com postagens em que pediram a morte de Temer, que, recentemente, foi internado. É assim que parte do Brasil faz “política”. 

O deus que é teu

Deus, se for para haver,
que seja íntimo.
Deselegante cuspir nos outros
o deus de tuas entranhas.
Guarda para ti teu deus.
Cuida dele com amor discreto.
Há sintonias possíveis sem deuses. 

Little dreams

Na noite que passou, em sonho, inventei enredo para livro que nunca li: Mulherzinhas, da Louise May Alcott. O sonho era a história da obra. Depois disso, é começar hoje a leitura. 

sábado, 21 de outubro de 2017

O que ficará para o filho?

Concordo com as respostas dadas pelo garoto espanhol na foto desta postagem. Isso não quer dizer que eu discorde do resultado que a professora esperava. O enunciado é dúbio; dizia: “Escribe con cifra los siguientes números”. O problema da questão é a ambiguidade. Mas a professora não merece o calvário nem pelo “x” que escreveu por cima das respostas nem por esperar que fosse outra a solução dada pelo estudante.

O pai do menino, Ignacio Bárcena, postou no Twitter uma foto do exercício com as respostas do filho; junto à imagem, Bárcena escreveu: “Aquí va un ejercicio de mates de mi hijo (7 años). Yo creo que quien no lo ha entendido bien es el profe.@RaquelMartos”.

Os desdobramentos disso já foram bem divulgados. Como ocorre nessas ocasiões, as opiniões “pedagógicas” e as hipérboles surgem como filhotes de coelho. O cineasta Juan José Campanella escreveu postagem em defesa do filho de Bárcena: “Es un genio tu hijo. Escribió literalmente los números ‘siguientes’, jaja”.

No fundo, acho que Campanella fez uma brincadeira ao dizer que o menino era gênio. Mas não custa dizer que o fato de o garoto ter respondido do modo como respondeu não o torna genial. A resposta dele, claro, é só consequência do modo como as crianças interpretam as coisas. Como já esperado sempre que algo similar ocorre, há toda a cantilena sobre o papel da escola e dos professores.

Não se falou, contudo, sobre a atitude do pai em tornar pública a discordância dele, expondo, de modo desnecessário, a professora; ela não foi autora de um crime. Como pai, é óbvio que ele tem o direito de discordar da correção de algum exercício feita pela professora. A falta de tato dele está em dizer publicamente que quem não entendeu bem foi ela. Que o pai do garoto tentasse resolver isso com ela. Sugerir em público que a professora errou é infantil. Questionar é diferente de expor.

Sei que há professores obtusos; talvez o pai do menino tenha tentado argumentar com a professora, defendo as respostas dadas pelo filho dele. Nesse ambiente que imagino agora, pode ser que Bárcena tenha decidido tornar públicas as respostas do filho dele por causa de hipotética recusa da professora em acatar as respostas do menino. Ainda que isso tenha ocorrido, isso não anula a infantilidade dele ao exibir o que a profissional fez. (Será que ele, pessoalmente, já elogiou alguma professora do filho dele?)

Isso são cogitações, pois não achei nenhuma matéria sobre os bastidores do imbróglio. Contudo, mesmo num cenário assim, caberia ao pai não a deselegância ao dar publicidade ao ocorrido, mas procurar resolver a situação com a colaboração de outros profissionais da escola. Lamentável: em redes sociais não se diferencia o público do privado. Nesse episódio, ficará algo para o filho? Caso sim, que seja o benéfico questionamento do pai, e não o modo como ele tratou o caso.
_____

P.S.: depois e publicar o texto, li, há pouco, mea-culpa de Ignacio Bárcena: Para que conste, mi hijo piensa así gracias a profes como el que tiene y los que tuvo, que fomentan cada día su creatividad”.  

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

A história por trás da(s) foto(s) (108)


De tempos em tempos, gosto de fotografar a esmo (é a primeira vez que uso a expressão “a esmo”). Fotografar por fotografar, sem compromisso, a não ser o de produzir a melhor foto, ainda que ela não fique tão boa assim.

Realizo trabalhos sob encomenda; mesmo assim, a maior parte de meu acervo fotográfico é composto por imagens feitas sem compromisso profissional, embora feitas sempre com o maior profissionalismo ou rigor de que sou capaz.

As duas imagens desta postagem foram feitas há pouco, aqui em casa. Eu estava com vontade de fotografar, seja o que for. Foi quando me dei conta, lá no quintal, da pequena planta (mede alguns centímetros) que driblara o cimento, conseguindo existir. Já voltando para dentro de casa, eu me deparei com os cabides. 

domingo, 15 de outubro de 2017

12/10

A feitura do bem.
As girândolas.
Se a capacidade daquela 
fosse proporcional
à quantidade destas,
seríamos menos
explosivos. 

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Atrás dos passarinhos

Tito, meu cachorro, não sabe que é luta vã correr atrás de passarinhos. Eu também corro atrás dos meus passarinhos. A diferença entre mim e o Tito é que sei que a corrida é vã. 

Depois da leitura

Alguns livros são maiores ainda depois de lidos. Ficamos os ruminando. Quando estamos refletindo sobre eles ou sobre eles conversando, de repente tornam-se mais grandiosos, surgem com nitidez mais cristalina do que a que tiveram quando estávamos com eles em mãos, diante dos olhos. Também por isso é bom conversar sobre livros. Tertúlias podem ser celebração da amizade, do amor, da literatura. Podem fazer com que enxerguemos com foco mais acurado o que é um livro ou o que somos. 

domingo, 1 de outubro de 2017

"Os sinos da agonia"

Tito, meu cachorro, não tinha medo de fogos de artifício quando era pequeno. Hoje, crescido, tem muito medo deles. Não bastasse, ele passou a ligar os sinos de uma igreja que há aqui perto aos foguetes. Mal os sinos começam a badalar, o medo do Tito toma proporções imensas; os sinos se tornaram trombetas apocalípticas para ele. Ele diferencia a cadência e o ritmo das batidas que marcam as horas dos dobres que precedem os fogos ou anunciam alguma liturgia. Os repiques que marcam as horas não o incomodam. Tal é o medo que ele passou a ter dos sinos, que nem precisa haver os fogos para que haja desespero nele. 

No mais, ele segue a vida sendo simplesmente feliz; ou sendo feliz simplesmente. Parte dessa felicidade, parece-me, reside precisamente em ele não saber que é feliz. Cães não teorizam. Ou, quem sabe, a felicidade dele está em bastar para ele apenas correr para buscar e em seguida me entregar, para que eu jogue de novo, de novo, de novo, de novo, de novo e mais tantas vezes, um pneuzinho, que é o brinquedo dele. 

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

(Des)apontamento 54

In the rat race, not everyone will be a ratter. Most of us will be rats. 

Da ingratidão

Permitam-me falar da ingratidão. Em primeiro lugar, pela facilidade que há em ser ingrato. É mais fácil ser ingrato, mais confortável. Na ingratidão, não é preciso reconhecer o que o outro fez de bom nem é preciso reconhecer o que se possa ter feito de ruim.

A ingratidão pode implicar empáfia por parte de quem recebeu o bem, é típica de quem prefere apontar os erros do outro e esquecer as qualidades dele, em vez de admitir que recebeu o bem desse outro.

A ingratidão é vizinha da falta de justeza, pensa que sabe muito. A ingratidão é duplamente cega: tem a cegueira de quem não sabe olhar para si e de quem não sabe olhar para o outro. Se não é cega, tem pelo menos uma visão distorcida tanto de si quanto do outro. Ao olhar para si, não enxerga os defeitos que todos temos; ao olhar para o outro, enxerga somente os defeitos que todos temos.

Há dois tipos de ingratidão: a silenciosa e a barulhenta. Os ingratos barulhentos se valem das armas que os convencem, as quais podem ser gritos, missivas, ausências de delicadeza. Os ingratos barulhentos gritam porque não sabem entender nem as sutilezas do agradecimento nem as gradações da gentileza. Gritar é mais fácil do que olhar para si, ser ingrato é mais fácil do que reconhecer os acertos do outro.

É da natureza do ingrato apagar o bem que por ventura tenha recebido. Se não o apaga totalmente, apaga-o quase completamente. Para o ingrato, bom é quem está longe, não quem está no árduo dia a dia. Para o ingrato, a grama é sempre mais verde do outro lado da cerca. Ele ovaciona a miragem que lhe promete (apenas promete) água fresca, mas desdenha da fonte de conhecimento e de dedicação que jorrou ao lado dele o tempo todo.

O ingrato é leve porque é ignorante, porque não enxerga a riqueza do outro, porque simplesmente acha que não tem o que agradecer. Ele é leve porque sempre tem um pretexto. Não raro, chama esse pretexto de boa intenção. Ao se olhar no espelho, o ingrato não enxerga ingratidão.

Há profunda beleza em reconhecer que se é uma pessoa melhor graças ao outro, a despeito da imperfeição tanto de quem recebe quanto de quem oferta, não importa o que esteja sendo doado nem o que esteja sendo recebido. Mas os ingratos estão mais ocupados em apontar as imperfeições alheias e em ignorar as suas.

Ser grato é ser maduro o bastante não para ignorar as falhas do outro, mas para reconhecer que a doação desse outro pode ser maior do que os erros dele. A gratidão é bonita porque sabe reconhecer no outro o que ele tem de bom, sabe receber dele o que ele tem de bom. Felizes os que sabem agradecer. 

Cruzeiro, Flamengo, Tito e uma dama

Antes da partida que decidiu a final da Copa do Brasil, há pouco, no Mineirão, havia a dúvida se Raniel começaria a partida ou se Arrascaeta começaria. Aos quatro minutos do primeiro tempo, Raniel, contundido, deixou o campo chorando; Arrascaeta entrou em campo no lugar do jovem Raniel. Pouco tempo depois, aos seis minutos, Guerrero, cobrando falta, acertou o travessão do goleiro Fábio; a bola foi para fora.

Aos catorze minutos, foi a vez de Thiago Neves perder chance de gol dentro da grande área. Eu não saberia dizer se faltou talento ou se faltou calma (ou os dois) no momento do chute. Enquanto isso, o Cruzeiro, talvez devido à tensão, fazia mais faltas do que o Flamengo. Erros simples ocorriam tanto num time quanto no outro.

Não deve mesmo ser fácil jogar uma decisão desse tamanho. Por mais que se treine, por mais que haja preparação física e psicológica, a carga de tensão e de adrenalina, suponho, é muito grande. Eu mesmo, por muito menos, em situações prosaicas, corriqueiras, fico com a voz trêmula e com vontade de estar aqui em casa, colocando uma pipoca no micro-ondas ou lendo as aventuras da elusiva dama Chatterley.

Diferentemente do meu nervosismo, que nunca passa, a impressão com que fico é a de que o nervosismo dos jogadores, lá pelos vinte minutos do primeiro tempo, já foi embora. É a partir daí que se pode ter uma noção mais clara do que os times podem apresentar. Cruzeiro e Flamengo apresentaram o tal do equilíbrio, a despeito de chance perdida pelo cruzeirense Arrascaeta, que não conseguiu dominar a bola dentro da área, aos trinta e cinco do primeiro tempo. Aos trinta e oito, Berrío, do Flamengo, errou o alvo, chutando de fora da área.

Não há muito o que dizer sobre o primeiro tempo. Se por um lado não foi um jogo ruim, por outro, não foi memorável. Mas não foi monótono a ponto de eu deixar de assistir à partida e ir para o quintal brincar com o Tito, meu cachorro, que manifestava medo sempre que algum fogo de artifício espipocava como pipoca em panela ou em micro-ondas.

Mal começado o segundo tempo, pareceu que o jogo seria menos truncado, mais espontâneo, menos estudado. Foi isso mesmo o que ocorreu. Ainda que não tenha havido grandes chances de gol de nenhum dos times, pelo menos a partida não ficou tão presa a esquemas táticos. Muito se falou do Muralha, codinome mais do que apropriado para um goleiro, embora muitos achem não ser essa uma alcunha adequada para o goleiro do Flamengo. Aos trinta e três do segundo tempo, ele rebateu uma bola de modo incorreto, possibilitando a Arrascaeta a chance de marcar. Ele não conseguiu. Aos quarenta e dois, Fábio fez bela defesa depois de chute de Guerrero.

Ambos os times apresentaram futebol equilibradamente mediano. Não importa com quem o título tivesse ficado, teria havido mérito igual. Nos pênaltis, o Cruzeiro venceu. Como o jogo terminou, hora de renovar a água para o Tito. Depois, voltar para a dama Chatterley. E esse Mellors, hum, não sei, não... 

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Encontros, reencontros

Não há como saber de antemão as tramas do acaso e das coincidências. Devemos cuidar bem do encontro, não por interesse espúrio, mas para que, no caso de a vida trazer o reencontro, possamos celebrar o encontro havido. 

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

(Des)apontamento 53

Andam dizendo que a Terra é chata. Não é. Parte da população é. 

A ventura de ler

Li hoje uma entrevista com Luis Fernando Verissimo no extraclasse.org.br. Ele diz: “Concordo com o que diz o Zuenir Ventura, que não gosta de escrever, gosta de ter escrito. O ato em si não é muito prazeroso, não”.

Numa dessas saborosas coincidências relativas à leitura, também hoje, pouco depois de ter lido a entrevista com o Verissimo, li crítica do imprescindível Pablo Villaça sobre o filme “mãe!” (com letra minúscula mesmo). Escreveu ele: “Frank Norris, numa frase frequentemente (e incorretamente) atribuída a Dorothy Parker, observou que ‘odiava escrever, mas amava ter escrito’”.

Bom mesmo é ter lido, bom mesmo é estar lendo. 

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Fernando Sabino e a tradição da crônica

Herman Melville, em seu monumental Moby Dick, escreveu, no capítulo cento e quatro do livro, segundo a tradução de Pericles Eugênio da Silva Ramos: “Para escrever um livro imenso, tendes de escolher um tema enorme. Nenhum volume grandioso e duradouro poderá jamais ser escrito sobre a pulga, embora muitos já o hajam tentado”. [1] Obviamente, não se pode descontextualizar uma afirmação, seja ela literária, seja ela não literária. Quando se descontextualiza, pode-se fazer injustiça para com a afirmação ou para com quem a tenha feito. Sejamos justos com Herman Melville. Moby Dick é um livro do século XIX, período em que as conquistas artísticas do século XX praticamente nem haviam se insinuado. Sim, Moby Dick é suntuoso, ambicioso, grandioso, grandiloquente. Mas o que poderia ser dito, digo, não de uma pulga, mas de algum freguês de alguma taverna frequentada por Ismael, o narrador de Moby Dick? Quais seriam os dramas desse frequentador? Que mares já teria ele navegado? Do que ele sentia saudade? Quantos sonhos deixou para trás? Qual a bebida favorita dele? Preferia ele o verão ou preferia sair de viagem logo pela manhã? Ismael não está interessado nisso que poderia ser considerado questões menores diante do assunto literalmente gigantesco que escolheu para tratar. Todavia, é também na vida do homem “menor” que a crônica, tal qual será abordada neste trabalho, está interessada. Deixemos de lado, por ora, as estupendas digressões de Ismael. Passemos a outro tipo de digressão. Falemos, a princípio, da crônica como gênero literário.

Em sua essência, parte-se do pressuposto de que a crônica é, antes de tudo, um gênero cujo texto é breve. Isso porque, em sua história, a crônica como tratada aqui, não a crônica dos navegadores e seus relatos, nasce para ser veiculada em jornal. Não ao modo de um romance cujos capítulos vão sendo publicados pouco a pouco por algum periódico, mas à maneira de um texto que começa e que logo termina. É um texto breve, mas essa brevidade abarca o começo, o meio e o fim do que se diz. Amanhã é um novo dia; um novo dia pede uma nova crônica. É um gênero escrito no calor dos acontecimentos, na urgência que pedem as redações, que, não raro, estão a pressionar o cronista para que ele entregue a crônica, não importa se é um texto diário ou um semanal.

Sempre que o assunto é a crônica, não raro, paira a ideia, o questionamento ou a sugestão de que ela seria um gênero menor. Ora, mas o mero uso do adjetivo “menor” para se referir ao gênero crônica implica o outro lado da moeda, ou seja, implica a existência de gênero ou de gêneros considerados maiores. E quando se considera haver gêneros maiores, remete-se à clássica divisão grega, aristotélica. Todavia, estamos agora tratando da crônica, um gênero híbrido, escorregadio, sem regras claras. Afinal, dizer que a crônica é um texto breve geralmente veiculado em jornal é definição que não é capaz de precisá-la. Se tentarmos fechar o cerco a fim de se achar uma definição para a crônica, pode ser que não achemos uma só, pode ser que não haja unanimidade. Todavia, ainda que considerada por alguns literatura menor, importa-nos o seguinte na expressão “literatura menor”: deixar de lado o adjetivo “menor” e nos concentrarmos no substantivo “literatura”.

Sim, a crônica é literatura. Que este texto sirva também de argumento meu a favor do que afirmei na frase anterior. Por ser literatura, ela consegue, de antemão, tornar-se atemporal. O que a torna atemporal é o fato de ela se debruçar sobre um aspecto da realidade que é permeado por aquilo que temos de subjetivo, por aquilo que somos, por aquilo que sentimos, aquilo que compõe as experiências cotidianas por que passamos. Fenômeno nascido com a popularização da imprensa no século XIX, a crônica tem, como estrela, no mais das vezes, o cidadão urbano, “anônimo”. Para me valer de nome de personagem criado por Drummond, que também era cronista, a crônica, não raro, debruça-se sobre um João Brandão qualquer, que transita em meio aos demais, como se fosse mais um. Só que para a crônica ninguém é só mais um, seja na multidão, seja no escuro de um quarto solitário madrugada adentro.

Na letra da canção “Notícia de jornal”, Chico Buarque, esse cronista em verso e em letra de música do cotidiano brasileiro, escreveu que “a dor da gente não sai no jornal”. Claro que a constatação de Chico se refere ao texto da notícia-padrão, que é “fria”, destituída de pessoalidade; como produção, é um gênero em que o personagem de que fala a letra da canção de Chico Buarque é mais um, é tratado como um número a mais — ou a menos, dependendo do teor da notícia. Todavia, não é o que se dá quando se trata da crônica. Ela não tem o compromisso com a notícia nem com o fato como ocorrido, o que, por si, já começa a dar a ela ares de literatura, mas, a despeito desse não compromisso nem com a veracidade nem com os dados nem com os números é que a crônica foi se esgueirando em meio às páginas dos jornais, em meio a textos literalmente datados. Mostrando que era algo mais do que notícia ou, pelo menos, algo diferente da notícia, embora possa ser escrita a partir, também, de uma notícia, a crônica, com o passar das décadas, foi parar nos livros, sem ter deixado, contudo, de frequentar as páginas dos jornais e, hoje, dos blogues, das redes sociais ou dos sítios. Num mundo iconoclasta, que gosta de asseverar a morte de tudo, a crônica segue viva, continua sendo lida, debatida, divulgada. Como prova disso, basta mencionar que no sábado passado, durante a Bienal do Livro, no Rio de Janeiro, ocorreu o debate “Cronistas contemporâneos”. Com a mediação de Arnaldo Bloch, participaram do evento Fabrício Carpinejar, Raphael Montes e Afonso Borges. A própria organização da Bienal divulgou no sítio do evento o seguinte texto: “Alguns escritores parecem ter a capacidade de identificar, em meio ao cotidiano, os traços que definem a época e marcam a sensibilidade das pessoas: são os cronistas. Seus poderes de observação são um capítulo à parte na cena literária brasileira”. [2] O próprio Carpinejar, só para ficar num exemplo, escreve crônicas para a Revista da Cultura, periódico mantido pela Livraria Cultura. O Brasil citadino consagraria também no gênero crônica autores como Machado de Assis, Carlos Heitor Cony, Luis Fernando Verissimo, Mario Prata, João Ubaldo Ribeiro, Fernanda Takai, Rubem Braga, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues, Lêdo Ivo, Stanislaw Ponte Preta, Lima Barreto, Antônio Maria e, claro, Fernando Sabino.

Contudo, antes de eu discorrer especificamente sobre o cronista pelo qual estamos aqui, permitam-me algumas cogitações sobre a crônica ser, não raro, tida como gênero menor. Não é minha intenção nem esgotar o assunto nem oferecer resposta cabal para a questão. Mesmo assim, recordemos, a crônica, do modo como mencionada aqui, nasce nos jornais. É para ser lida rapidamente. Amanhã ou na semana que vem haverá outra e depois outra e depois outra. A crônica não tem intenção nem espaço de se debruçar sobre temas que demandariam tempo para serem desenvolvidos. Não bastassem essas características, dependente do meio em que era veiculada, a crônica caiu no gosto do leitor de jornal, que nem sempre era o leitor da chamada grande literatura, nem sempre era o leitor do cânone. Mesmo hoje em dia, é muito comum alguém dizer que é leitor de crônicas ou dizer que tem na crônica o gênero favorito, mesmo sem se dedicar à leitura dos gêneros clássicos ou à leitura de autores canônicos. Um texto que não demanda erudição para ser apreendido nem demanda leitores acostumados a produções de maior fôlego. Essa é a crônica, que é, no mais das vezes, compreensível para qualquer um. Precisamente isso é o que pode fazer com que alguns torçam o nariz para ela. Haveria em função disso, por parte de alguns que se consideram representantes de uma suposta elite intelectual, a presunção de considerar a crônica como gênero menor por ela ser lida e apreciada por aqueles que não têm tradição de leitura. Essa empáfia, não somente no que diz respeito à crônica, sugere que o que cai no gosto popular perderia as prerrogativas de ser considerado arte verdadeira ou arte maior, atemporal. 

Não levo em conta essas arrogâncias. Vamos nos deter em algumas características que podem fazer com que a crônica se torne literatura. De antemão, digo que a brevidade não pode ser usada como argumento. Emily Dickinson está no panteão dos grandes poetas. A obra dela é composta por versos breves, epigramáticos. Se concordarmos, pois, que o caráter de literariedade não está na extensão do texto, podemos aventar possibilidades ao defendermos a crônica como sendo literatura.

Uma delas diz respeito ao não compromisso que a crônica tem quanto à verdade factual, quanto à abordagem jornalística. Ainda que o ponto de partida seja fato verificável, fácil de ser comprovado, o viés da crônica não é o do jornalismo, o de relato de onde, de quando e de como, embora tais informações possam estar no corpo dela. Não, a crônica não vai apenas relatar, por exemplo, que nesta semana os vereadores locais visitaram o Rio Paranaíba a fim de conferirem os estragos da seca no leito que um dia foi caudaloso. Isso, já noticiaram os sítios, o jornal, a televisão, as rádios. Mas a realidade é cheia de facetas. O mesmo evento permite várias abordagens. A do cronista é captar a partir das miudezas ou das não miudezas do cotidiano um texto que pode soar às vezes algo ingênuo, às vezes poético, às vezes opinativo, às vezes doce, às vezes saudoso. Nesse caldeirão podem estar o futebol, a política, a erudição, a conversa de bar, a amizade, o amor, a arte, a metalinguagem, a guerra... É curioso: não há receita para a crônica, não há amarras que a definam com precisão. Ainda assim, sabe-se reconhecer uma quando se está diante dela. O cronista diz de tal modo que ele pode ser uma espécie de poeta em prosa breve. Ainda que não seja oficialmente poeta, tem em si alma de poeta, carrega em si o senso poético, o senso do espanto, da estranheza, da análise por ângulos inusitados. É como se o cronista olhasse para as coisas não com o olhar desgastado e sem graça do adulto, mas com o espírito de quem contempla as coisas pela primeira vez. Essa atitude mental ou esse espírito acabam fazendo com que o cronista desvele ou revele para o leitor aquilo que esteve diante dele o tempo todo, mas que havia passado diante dele sem que ele se desse conta. O cronista é, antes de tudo, um observador, uma pessoa que presta atenção, que olha, que repara, que se debruça sobre a vida que passa, que anda de ônibus ou que namora num banco de praça.

É então que nos damos conta, graças ao cronista, que a vida do cidadão “anônimo” pode gerar literatura. O historiador Eric Hobsbawn, no imprescindível Pessoas extraordinárias, evidencia que a história não é feita somente por quem detém o poder. O cronista evidencia que para figurar na literatura não é preciso ser um rei, um presidente, um nobre, um rico. O vendedor da feira ou o padeiro são tão dignos de literatura quanto a realeza de algum país nórdico. Ainda que se concentre sobre um personagem assim, a crônica destacaria nele não a imponência do cargo que ocupa, mas aquilo que uma pessoa assim tem de prosaico, de acessível, por assim dizer. É o que Shakespeare fazia com seus personagens nobres, mostrando-os em situações engraçadas ou vexaminosas, é o que Tom Wolfe faz com seus personagens de Wall Street, preocupados em ter seu primeiro milhão de dólares antes dos vinte e poucos anos. O cronista sabe muito bem que antes do cargo ou da pompa há uma pessoa, um indivíduo, que compartilha pontos em comum com todos os demais indivíduos. Esses pontos em comum, é claro, não estão nos cargos que ocupam nem no dinheiro que têm nem no poder que detêm.

A crônica não está interessada em pseudomistérios, em construir teses, em dar resposta aos supostos desígnios do Universo. Um dos méritos da crônica é exatamente o de edificar literatura a partir do que é evidente e trivial. Se há algum mistério trazido pela crônica, esse mistério é o que existe em tudo. Um mistério que surge a partir do que é compreensível, alcançável. Num sentido amplo, o exercício da crônica é a edificação de uma literatura humilde, postura de quem não oferece uma resposta pronta, mas uma acessível inquietação com o sem-número de não respostas que todos carregamos em nossas idiossincrasias. A crônica se posiciona frente ao mundo não ao modo de quem se predispõe a destrinchar seus mecanismos, mas à maneira de quem tem olhar curioso diante das engrenagens. A crônica nem sempre dá respostas, mas com frequência tem questionamentos inquietantes e poéticos. 

A fim de ilustrar essas questões sobre as quais tenho teorizado, transcrevo a seguir a crônica “Notícia de jornal”, que extraí da coletânea As melhores crônicas de Fernando Sabino:

Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca, 30 anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade, permanecendo deitado na calçada durante setenta e duas horas, para finalmente morrer de fome.

Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de comerciantes, uma ambulância do Pronto Socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxílio ao homem, que acabou morrendo de fome.

Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era da alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem morreu de fome. 

O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Médico Legal sem ser identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome.

Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa — não um homem. E os outros homens cumprem seu destino de passantes, que é o de passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum. Passam, e o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e sem perdão.

Não é da alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.

E o homem morre de fome. De 30 anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome, pedindo providências às autoridades. As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que morresse de fome.

E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição, tombado em plena rua, no centro mais movimentado da cidade do Rio de Janeiro, um homem morreu de fome.

Morreu de fome. [3]

O texto, escrito a partir de notícia lida em jornal, segundo o narrador, exemplifica com perfeição o cerne da crônica, que é o de extrair do cotidiano o material de que é feita. Embora careça de alguns dados para ser considerado notícia de jornal, o texto, com pequenos ajustes, poderia ser jornalístico. Contudo, a leitura dele nos revela que há algo mais, que o relato não é somente uma notícia de jornal. O leitor pode até não saber esmiuçar o que diferenciaria o texto de uma notícia, embora intua haver algo a diferi-lo do gênero estritamente jornalístico. Tentemos destacar alguns procedimentos que fazem com que “Notícia de jornal” seja, num sentido afunilado, crônica, e, num sentido amplo, literatura.

De início, tem-se a reiteração, com pequenas variações, da expressão “morreu de fome”. Uma típica notícia de jornal anunciaria apenas uma vez a causa da morte. O tom seria o mais neutro possível. Uma notícia não chamaria o homem de “coisa”, não teria seu autor se perguntando “que é que eu tenho com isso?”, para depois, em sua retórica, afirmar: “Deixa o homem morrer de fome”. Esses são apenas alguns exemplos de que a crônica permite carga maior de subjetividade do que o texto jornalístico. Ela tem tido o jornal como suporte, mas jornalismo não é, mesmo sendo com ele confundido. Ou pelo menos não é só jornalismo. É também literatura. 

Tomemos outro exemplo. Um caso em que um grande poeta aparece, depois de ter consumido boas doses de álcool em Belo Horizonte, fazendo um comentário prosaico; mostra-se um lado dele que não diz respeito à excelência de seus versos, embora ele já fosse conhecido pelo estilo de vida boêmio que levava. Além disso, o que poderia ter se tornado uma digressão é logo interrompido, cedendo o lugar a afirmações bem mundanas, distantes do tom elevado que o texto poderia ter assumido. O trecho a que me refiro está na crônica “O menestrel do nosso tempo”. Por enquanto, não direi o nome do poeta que é mencionado no texto. Eis o trecho:

Era uma delegação de intelectuais que visitava Belo Horizonte, em 1943, a convite do então prefeito Juscelino. Em meio a tanta gente, ele era o poeta. E alta noite fomos ver a lua no Parque Municipal. Alguém apareceu com um violão: depois de um sambinha ou outro, ele começou a tocar — e a cantar! — ‘Blue moon’. Tomados de entusiasmo etílico, por pouco não celebramos o insólito acontecimento jogando Etienne Filho dentro do lago. Depois subimos a pé a Avenida João Pinheiro e já somos apenas três, em companhia do poeta de nossa admiração. Vamos para o banco de sempre na Praça da Liberdade, puxar uma angustiazinha:

— Que sentido têm as coisas?

— Que somos nós, diante da eternidade?

A alma encharcada de literatura até o rabo. Mas o poeta não deixa por menos:

— Bom mesmo é mulher. [4]

Por certo, muitos já deduziram que o comentário “bom mesmo é mulher” foi feito por Vinicius de Moraes. O comentário do poeta não somente confere humor ao texto: ele quebra o que poderia ter se tornado uma digressão de tom filosófico. No mais, esse suposto tom filosófico havia sido insinuado de modo tímido. Tanto é assim que o narrador se valeu da expressão “puxar uma angustiazinha”. Houvesse de fato a intenção de se levar a crônica para reflexão mais densa, o substantivo “angústia” não estaria no diminutivo. O narrador está quase a mofar de qualquer sentimento de inquietação que pudesse ter tomado conta dos amigos alcoolizados.

Todavia, não nos esqueçamos de que a crônica, em sua trivialidade, pode nos remeter a reflexões drásticas, contundentes. Para exemplificar o que digo, cito trecho de “A lua quadrada de Londres”, também de Fernando Sabino:

Lembro-me de uma história — história que inventei, mas que nem por isso deixa de ser verdadeira. Era um marinheiro dinamarquês, de um cargueiro atracado no porto do Rio de Janeiro por uma noite apenas. Saíra pela cidade desconhecida, de bar em bar, e vinha voltando solitário e bêbado pela madrugada, quando se deu o milagre: nas sujas águas do canal do Mangue, viu refletida uma claridade difusa — ergueu os olhos e viu que as nuvens se haviam rasgado no céu, e o Cristo surgira para ele, braços abertos, em todo o seu divino esplendor. Fulminado pela visão, caiu de joelhos e chorou de arrependimento pela vida de pecado e impenitência que levara até então. De volta à sua terra, converteu-se, tornou-se místico, acabou num convento. E anos mais tarde, depois de uma vida inteira dedicada a Deus, o monge recebe a visita de um brasileiro. Aquele homem era da cidade em que se dera o milagre da sua conversão.

— O que o senhor viu foi a estátua do Corcovado — explicou o carioca.

Não diz a história se o religioso deixou de sê-lo, por causa da prosaica revelação. Não diz, porque me eximo de acrescentar que, na realidade, depois de viver tanto tempo uma crença construída sobre o equívoco, este equívoco passava a ser mesmo um milagre, como tudo mais nesta vida. [5]

O que o marinheiro supôs ser uma epifania nada mais era do que a estátua do Cristo Redentor. Ora, precisamente esse tema está presente no filme O planeta dos macacos, de 2001, do diretor Tim Burton. No enredo, os macacos veneram um deus, que chamam de Calima. Próximo do término do filme, é revelado que a palavra Calima nada mais é do que sílabas de um aviso de segurança que havia numa nave. Os macacos louvavam um engodo. Nesse momento, é inevitável que o espectador pense nas religiões que a humanidade tem edificado para si. As implicações de que a crença em um deus pode ser fruto de um engano são poderosas demais. Exatamente essas implicações estão presentes no breve trecho da crônica de Fernando Sabino. Por trás do humor e da leveza do texto dele, há uma profícua possibilidade de reflexão.

Antonio Candido, em texto intitulado “A vida ao rés-do-chão”, elogia a crônica como gênero. Mesmo assim, no primeiro parágrafo de seu texto, pondera: “Não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que fosse”. [6] Eu não veria como contrassenso cogitar-se atribuir o prestigioso prêmio a um cronista, embora isso de fato nunca tenha ocorrido. Mas o que faz a literatura ser o que é não são os prêmios que por ventura ela venha a receber. A literatura é feita do que somos; o que somos pode ser mostrado a partir da caça a uma baleia, a partir de um homem que vê a estátua do Cristo Redentor e pensa estar diante de uma epifania ou a partir de uma pulga.
___________

[1] Melville, Herman. Moby Dick. Tradução de Pericles Eugênio da Silva Ramos. Círculo do Livro. 1994. P. 535.

[2] Disponível em http://bit.ly/2feGame. Acesso em 13/09/2017.

[3] Sabino, Fernando. As melhores crônicas de Fernando Sabino. 5ª edição. Rio de Janeiro. BestBolso. 2015. Pp. 46 e 47.

[4] Idem. Pp. 58 e 59.

[5] Ibidem. Pág. 69.

[6] Candido, Antonio. A vida ao rés-do-chão. Disponível em http://bit.ly/2fbrODb. Acesso em 14/09/2017.