terça-feira, 31 de março de 2020

De novo, sobre a CNN Brasil

Há alguns dias, escrevi sobre minha convivência como telespectador, durante décadas, da CNN Internacional. No texto, mencionei também que ainda era cedo para que eu emitisse algum juízo mais nítido sobre a CNN à brasileira. A internauta Déa Fonseca, no Facebook, comentou meu texto, escrevendo: “Os donos são a igreja universal e o dono da construtora MRV. Tire suas conclusões”.

Há pouco, assisti, no Youtube, a um vídeo produzido pelo canal Meteoro Brasil (link na seção de comentários). De acordo com a equipe do canal, Rubens Menin, dono da MRV Engenharia, detém 65% da CNN Brasil. Os 35% restantes pertencem Douglas Tavolaro, sobrinho de Edir Macedo.

A CNN Internacional é contra a atuação de Donald Trump, de quem a emissora é crítica implacável. Já da CNN Brasil, depois de fazer breve apresentação sobre os passados de Rubens Menin e dos processos de que ele é réu, e de Douglas Tavolaro, o realista veredito do Meteoro Brasil, em referência à CNN daqui, deve mesmo se cumprir: “A CNN será a favor do governo — de qualquer governo”. 

sábado, 28 de março de 2020

Novo Brazil

Era o dia 29 de março de 2020; 6h da manhã. Zé Alazão acordou. Antes mesmo de os olhos estarem totalmente abertos, já pulara da cama. Embora essa rotina ocorresse todos os dias, o jeito brusco de ele se levantar não deixava de assustar Maria do Morro, a esposa de Zé Alazão. Meio dormindo, meio acordada, ela olhou para o marido, que já estava se vestindo:

— Acorda, sá. Gente dorminhoca não faz um país. Eu não tô saindo de casa, mas não tô deixando de produzir.

O tempo estava frio. De dentro do quarto, no aconchego da cama, Maria do Morro deu-se conta de que caía uma fina garoa lá fora. A vontade que ela teve foi de curtir a cama um pouco mais, permitindo-se uma preguiça inofensiva naquela manhã de domingo. 

O dono do matadouro já estava vestido. Foi até o espelho, passou a mão pela farta cabeleira. Sentia orgulho de não ter nem um fio branco, embora já estivesse se aproximando dos cinquenta. Pegou escova e pasta dental. Antes de começar a escovação, de dentro do banheiro, dirigiu-se a Maria do Morro:

— Levanta. Quero que você me ajude a fazer umas contas do matadouro.

Zé Alazão escovou ligeiro os dentes. Saiu do banheiro, saiu do quarto, fazendo seus passos rápidos, pesados e intempestivos ressoarem pela casa. Chegando à cozinha, enquanto observava, por uma janela que ficava na lateral, o vasto terreno em que ficava o matadouro, tragou um gole de café. Engoliu, jogou o resto pela janela e disse para Dalva, a empregada:

— O café tá horrível. Tá frio e sem graça. Faz outro.

O terreno que pertencia a Zé Alazão tinha 100 hectares. Dentro desse espaço, ficavam o matadouro e a casa em que ele e Maria do Morro viviam; os três filhos do casal haviam se mudado para os EUA. Embora não fosse o maior matadouro que tinha, era o preferido de Zé Alazão, por ter sido o primeiro. No passado, ele dera ao estabelecimento o nome de Horizonte de Minas. No primeiro dia de janeiro de 2019, Zé Alazão mudou o nome da empresa para Novo Brazil.

Enquanto Dalva preparava outro café, Zé Alazão apoiou as mãos na ampla janela. Alheou-se, ora pousando os olhos sobre o gado, ora sobre as montanhas ao longe, ora sobre os empregados do matadouro. A equipe de trabalho, já às voltas com o gado, procurava, na medida do possível, guardar distância uns dos outros, devido a um vírus que estava se espalhando pelo mundo. Zé Alazão voltou a si quando Maria do Morro entrou na cozinha, cambaleante, modorrenta. Ele foi até o canto da cozinha, pegou um dos megafones, comprados havia poucos dias. Estando outra vez apoiado na janela, aproximou o aparelho da boca; berrou:

— Andem rápido! Comecem a levar o gado para o matadouro. O Brasil não pode parar. 

domingo, 22 de março de 2020

O pedido do amigo

Por estes dias, qualquer um que abra as redes sociais vai se deparar com postagens afirmando que a humanidade será melhor depois da covid-19. Eu havia pensado em escrever algo sobre essa questão, mas como tenho visão negativa quanto à melhora dos humanos, decidi não abordar o assunto. Estava isso definido. Contudo, ontem, um amigo entrou em contato comigo, sugerindo que eu escrevesse precisamente sobre possíveis desdobramentos depois de a epidemia passar. O amigo me fez mudar de ideia; decidi escrever sobre o tema, não como quem profetiza, mas como quem tem olhos voltados para o redor e curiosidade voltada para o passado. 

Estou relendo A Montanha Mágica, do Thomas Mann. Na obra, Hans Castorp visita o primo Joachim Ziemssen, que está num sanatório, tentando ser curado de tuberculose. O plano de Castorp era ficar alguns dias. Na edição que tenho, a história termina na página 827. No começo, o narrador, de modo detalhado, vai contando como é a rotina no sanatório. A última frase da página 99 é uma fala de Ziemssen, que indaga o primo (a tradução é de Herbert Caro): 

“— Como quer formar uma opinião logo no primeiro dia?”.

Na primeira frase da página 100, Castorp comenta:

“— Meus Deus! É ainda o primeiro dia? Já me parece que estou aqui há muito, muito tempo...”.

Um dia, pormenorizado em cem páginas, dá clara ideia de como era a vida no sanatório que Hans Castorp fora visitar.

No livro Jane Eyre, da Charlotte Brontë, a personagem principal, que dá título à obra, vai embarcar numa carruagem. Antes de partir, ela perguntara para o condutor se o destino dela ficava longe do lugar em que estavam no momento do embarque. O condutor respondeu (tradução de Anna Duarte e Carlos Duarte):

“— Pouco menos de dez quilômetros”.

Jane Eyre diz a seguir:

“— Em quanto tempo chegaremos lá?”.

A resposta do condutor:

“— Em uma hora e meia”.

Acima, os dois trechos dos livros ilustram que houve uma época em que a humanidade lidava com o tempo tendo uma subjetividade diferente da nossa. Havia menos correria, dentre outros fatores, porque havia menos tecnologia. Com a popularização dos dispositivos eletrônicos e da internete, além da mudança nos meios de locomoção, houve quem dissesse, em meados da década de 90 do século XX, que a tecnologia e todo o seu aparato fariam com que passaríamos a ter mais tempo livre, mais tempo para nos dedicarmos a projetos pessoais.

Décadas depois, sabemos que não é nada disso. O entusiasmo inicial logo seria extinto. A realidade tornar-se-ia bem diversa daquela ingenuidade de meados da década de 90. Não é pequeno o número de pessoas que levam o trabalho para casa, dentro do bolso ou da bolsa, embutido num celular.

Em nosso modo de lidar com o tempo, é comum as pessoas se impacientarem quando a velocidade de navegação na internete não está como é usualmente, um texto de uma página é chamado de “textão”, um caminho de dez quilômetros levar uma hora e meia para ser percorrido é uma aberração, um livro usar quase mil páginas para contar o dia 16 de junho de 1904 na vida de um sujeito é contraproducente. O modo subjetivo como tratamos o tempo neste século XXI não será o mesmo dos séculos que se foram, estando a covid-19 no ar ou não estando. Não sei como nossa subjetividade vai lidar com o tempo no porvir. O que afirmo é que não lidaremos com ele como um dia já lidamos.

Outra possibilidade que as redes sociais têm apontado é a de que haverá novos afetos, ou, melhor dizendo, haverá (mais) afeto, terminada a pandemia. Nesse mundo vindouro, pós-covid-19, relações familiares, amistosas e amorosas teriam se dado conta de que o que realmente importa não são nossa correria nem nosso consumismo. Essa nova era traria um ser humano mais consciente de seu papel no trato para com a Terra e para com o próximo, não importando se o próximo será um vizinho, um parente ou um colega de trabalho. Não consigo vislumbrar essa nova “era”. O único “prognóstico” que faço é o de que os afetos vão continuar como estão agora. Não creio numa humanidade mais consciente depois da passagem da covid-19. Um ou outro pode rever sua existência, mas, no todo, seguiremos basicamente os mesmos.

Alguns otimistas têm ainda divulgado que haverá, depois que o vírus não for mais ameaça, um novo modelo econômico, que também seria mais preocupado com o bem-estar coletivo, em vez de centrado no próprio umbigo. Nesse novo modelo, haveria a possibilidade de todos terem maior dignidade quando em atendimentos de emergência, não importando a condição financeira da pessoa. Haveria menos neoliberalismo e mais cuidado humanitário, o que implicaria menos sanha na defesa de que tudo — tudo mesmo — seja privatizado. Esse modelo não ocorrerá. Para ficar no nosso caso, levando-se em conta que estou em Patos de Minas: governos federal e estadual defendem privatizações. Não é uma pandemia que fará esse pessoal mudar de ideia. Os planos privatizadores seguirão curso passada a pandemia, a qual, de resto, não os impede de prosseguirem. Além do mais, não é somente parte da classe política a querer a privatização de tudo; em meio à população, há grande parcela a defender que todos os serviços públicos estejam em mãos particulares, não importa a natureza do serviço público, mesmo com empresas recorrendo ao governo quando lhes convém, e não é preciso uma pandemia para que governos socorram empresas. 

A utopia é válida, mas utopia que não consegue enxergar, de antemão, as coisas tais quais estão postas corre o risco de se tornar ingenuidade ou desvario. Negar o sonho é perigoso; negar a realidade também é. Não há clima de mudança sendo sugerido, não há um novo modelo de vida sendo edificado pela maioria. O que há é medo e muita ignorância. Leve-se ainda em conta de que é comum as pessoas romantizarem o passado, mormente as que não o pesquisam.

Nesse estado de coisas, há ainda a crença, tida por muitos, de que a natureza se importa conosco ou de que bastaria a fé numa deidade qualquer para que nossas vidas fossem protegidas. Um furacão não pensa algo do tipo “hum, aquele ali é o Zé das Couves [nome fictício]. Vou poupar a casa dele de minha força avassaladora, pois ele é trabalhador, tem bom caráter, é justo”. Quem está na rota de um furacão é engolido por ele, não importam as crenças ou o caráter dessa pessoa. A natureza não sabe de nossos dramas; por mais que alguns insistam, não são preces que pouparão uma pessoa de ter covid-19, ainda que muito se acredite nisso. Não é preciso ser especialista em alguma coisa para saber que, terminada a passagem desse vírus, o número de mortos terá sido maior entre os pobres, os desassistidos, o que nada tem a ver com fé.

Eis, pois, o texto pedido pelo amigo. Em função da amizade, ele me dirá se gostou ou não. Pode ser que discorde de um tópico ou de outro, pode ser que concorde com outro. O amigo é do tipo, não somente quando se dirige a mim, que sabe discordar sem xingamentos, que sabe opor-se sem preconceitos e com inteligência. Eu e ele sabemos que importa a amizade, essa coisa velha que não deixa de fazer sentido.

Por que sou contra os panelaços

O João Doria foi mais um que disse ter se arrependido de seu voto para presidente na última eleição presidencial, como se ele, Doria, fosse um gamo inocente que não sabia o tipo de político que o presidente tem sido ao longo das décadas. Há a história dos ratos, os quais, segundo a alegoria, abandonam o navio ao pressentirem o afundamento. Em breve, Doria vai estar noutro barco, que também vai abandonar.

A cara de pau do Doria é a mesma da Janaina Paschoal, é a mesma do Lobão, é a mesma da Folha de S.Paulo no editorial “Sob ataque, aos 99”, é a mesma dos que bateram panela defendendo golpe, é a mesma dos que votaram no atual presidente por ele defender ditadura, por ele defender milicianos, por ele defender torturadores... Enfim, gente que votou no atual presidente exatamente por ele ser quem é. 

Agora, não me venham com conversinha mole de que estão decepcionados. Conversei com algumas libélulas, aqueles delgados e graciosos insetos. As libélulas me disseram saber há tempos: alguém que não é capaz de se portar como estadista em águas brandas não se comportaria como estadista num mundo povoado por covid-19. Boa parte dos que bateram panela ontem e boa parte dos que estão agendando via internet bater panela hoje à noite, com seu disfarce de cidadania, são uns desavergonhados. 

O presidente está sendo o político que ele sempre foi. Ele pode e deve ser acusado de centenas de atrocidades, mas não pode ser acusado de estar sendo quem ele não era. Os “paneleiros” se fingem surpresos, indignados. Ora, isso é cinismo. O mais expressivo e estrondoso dos atos seria defender a democracia, seria defender a civilidade. Prefiro fazer isso a meu modo a me juntar, seja batendo panela, seja compartilhando chamamentos para outros “paneleiros”, com quem se afina com a ideia de que o erro da ditadura foi não ter matado mais.

Quero dizer com isso que ninguém está sendo genuíno ao bater panela ou ao se dizer arrependido de seu voto para presidente? Não, não quero dizer isso. Em nenhum trecho de meu texto, generalizo. O que quero dizer, é que boa parte dos “paneleiros”, na primeira oportunidade, vai eleger um novo Collor, um novo Bolsonaro. Boa parte dos “paneleiros” é como o dono do posto de gasolina que agora esbraveja contra o valor cobrado pelo álcool em gel, fingindo que não aumentou o valor do combustível quando da greve dos caminhoneiros. Entrementes, vou ali preparar um guisado.
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(Esse texto deveria ter sido publicado no dia 18 de março. Eu o deixei como rascunho e me esqueci de postá-lo aqui. Ainda assim, ei-lo.) 

segunda-feira, 16 de março de 2020

Um domingo e duas frases weberianas

É muito comum as pessoas se valerem do direito de expressão. Sim, ele (ainda) existe, resiste. Há casos em que, ao falar de direito de expressão, as pessoas não estão interessadas em arcar com esses direitos. Direitos podem ter consequências. Tenho o direito de dizer, por exemplo, “o Zé das Couves [nome fictício] é um ladrão”. Se isso digo, tenho de ter clara noção de que há a possibilidade de eu responder judicialmente por essa declaração. Reiteremos: o exercício de um direito pode ter consequências legais.

É direito de qualquer um fazer de seu corpo o que bem entender. Se, digamos, o presidente de um país quiser chupar um picolé de limão, suicidar-se, ir a uma manifestação ou dormir com meias de cores diferentes, isso é direito dele. Todavia, o exercício de um direito, em público, pode interferir de modo negativo na sociedade, pode incorrer em crime. Se um cidadão está com os documentos do carro em dia e se está com sua carteira de motorista devidamente legalizada, ele tem o direito de sair com o carro dele. Mesmo assim, se ele atropela alguém no trajeto, ele poderá, depois de analisado o caso, ser penalizado judicialmente. O fato de os documentos do carro estarem em dia e o fato de não haver problemas com a carteira de motorista dele não o exime da possibilidade de ser responsabilizado caso ele atropele alguém.

Muito se tem falado na irresponsabilidade do presidente da república ao convocar manifestações contra a democracia em vias públicas e em logradouros, e da irresponsabilidade dele ao participar ontem de uma dessas manifestações, ainda mais levando-se em conta o cenário em que o mundo convive com o coronavírus. Pode-se e deve-se falar sobre a irresponsabilidade do presidente.

De sua presença em manifestação, o presidente disse: “Se eu me contaminei, isso é responsabilidade minha”. O cidadão tem o direito de se contaminar; ele tem o direito de inocular em si o vírus que ele bem entender. Mas, como escrito acima, o exercício de um direito pode ter implicações legais. Ele pode ou poderia ter chegado à manifestação já com a covid-19; ele pode ou poderia ter se contaminado com o vírus durante a manifestação. Neste caso, ele se encontrou com outras pessoas depois da manifestação; naquele caso, pode ou poderia ter levado à manifestação o vírus que carregava. Em qualquer um dos casos, foi irresponsável, pois ele teve contato físico com os manifestantes.

O Reinaldo Azevedo, em texto publicado ontem, prestou mais um belo serviço ao jornalismo e ao país, indicando as leis que o presidente infringiu recentemente. Azevedo chega a usar a expressão “criminoso múltiplo” para se referir à conduta do mandatário. Na seção de comentários, abaixo, após este texto, há link para o texto de Azevedo. No parágrafo a seguir, as leis que o presidente infringiu em sua irresponsabilidade. Detalhes podem ser lidos no texto de Reinaldo Azevedo.

O presidente incidiu nos Artigos 6o e 8o da Lei 1.079, que trata dos crimes de responsabilidade. Ele cometeu crime comum ao contribuir para espalhar o vírus; a pena é prevista no Artigo 268 do Código Penal; ele transgrediu os Artigos 17, 18 e 23 da Lei de Segurança Nacional. Houve crime previsto no Inciso II do Artigo 85 da Constituição, com disciplinamento nos itens 1 e 5 do Artigo 6o da Lei 1.079. Também salutar conferir o Artigo 2o dessa Lei. Reinaldo Azevedo o cita, bem como discorre ainda sobre o Parágrafo 4o do Artigo 86 da Constituição. Até a Janaina Paschoal pediu o afastamento do presidente (sic).

É curioso: muita gente por aí se declara defensora de legalidades, de leis e de direitos, mesmo quando faz apologia à tortura (o que é crime), por exemplo. Muita gente por aí fala em legalidades, mesmo sem se valer das leis que compõem o arcabouço jurídico do país em que vive. Num momento tão sério e que demanda maturidade e firmeza, um presidente diz que ele ter se contaminado é responsabilidade dele, como se não estivéssemos num momento em que um vírus pode ser transmitido para o próximo de modo tão fácil. O mandatário não tem empatia nem senso da gravidade do momento. Quanto às leis, mudam com o tempo, mas não é propondo o banimento de instituições democráticas que se busca defender o aparato jurídico de um país.

Mas nega-se não somente o direito, a democracia. O “Zeitgeist” tem levado à negação da biologia, da física, da química, da matemática, da medicina. Milênios de conhecimento são tolamente descartados. O sujeito é incapaz de entender que se ele toma remédio para dor de cabeça, há contribuições de muitos, durante séculos, para que o remédio esteja ao alcance. Sem estudar, sem procurar aprender, nega-se a ciência, o conhecimento. O sujeito cria um canal no Youtube e nega o que a humanidade já sabe há milênios. Há ainda a negação da arte. Estamos na era da negação. O que, em tese, poderia ser algo bom, já que questionar ou duvidar é algo, em princípio, saudável, tem sido praticado de forma tola, desumana e inconsequente. Na era em que estamos, nega-se, sobretudo, o fato. Lembremo-nos da declaração do presidente quando o exército matou, dando centenas de tiros, integrante de uma família que estava indo a uma festa: “O exército não matou ninguém”.

O advogado e professor Weber Abrahão Júnior escreveu em seu Facebook duas frases, as quais pinço: “Os idiotas estão vencendo” e “o ódio está vencendo”. Caro Weber, sem querer soar fatalista nem pessimista, digo que a idiotice e o ódio vencem desde que há pessoas neste planeta, e vão continuar vencendo. Eles sempre foram vencedores. Eles são vencedores. Eles serão vencedores. Tudo isso, entretanto, não é motivo para que se deixe de apontar idiotices e ódios, não é motivo para que não se escancare o fato, a evidência. Idiotice e ódio venceram, vencem, vencerão. Nem por isso terão sossego. Acho que foi o Darcy Ribeiro quem disse ou escreveu algo sobre estar do lado de quem perdeu. Estamos, Weber. Ainda bem. 

domingo, 15 de março de 2020

O vírus invisível

Já comentei que o problema pode não estar na fé, mas, sim, na má-fé e na burrice. Sobre o coronavírus, Edir Macedo disse que a epidemia é “tática de Satanás”. Macedo fala ainda em “pavor que a mídia tem usado”, tática essa que, aliás, já foi usada por outros políticos.

Que há inconsequentes imbecis que preferem ignorar a ciência (muitos deles, enquanto não estão doentes), disso, já sabemos. Ou o sujeito ignora a ciência por interesse próprio ou por burrice (ou pelas duas coisas). Curiosamente, a própria Igreja Universal publicou lista de cuidados contra a covid-19, a despeito da fala de Macedo.

É óbvio que há pessoas de fé que não são burras nem interesseiras; é claro que há pessoas religiosas que querem o bem, o bem do outro ou algo similar. Todavia, há muita coisa por aí chamada de fé que não passa de canalhice de líderes “religiosos” (não importa o dogma que dizem defender) e de burrice de seguidores.

A fé e o vírus

O prefeito de Goiânia havia dito que a cidade não seria atingida pela covid-19 porque, na visão do político, é protegida por Deus. Há casos da covid-19 confirmados em Goiânia; a prefeitura já está agindo na tentativa de coibir o alastramento dos contágios. O prefeito ainda havia dito que “o Brasil não será atingido por isso”, em referência ao vírus. A exemplo do presidente da república, o prefeito alegou que estaria havendo estardalhaço quanto à covid-19. O problema nesses casos não é a fé. O problema são a má-fé e a burrice; esta pode estar junto daquela na mesma pessoa. 

domingo, 8 de março de 2020

Quase castos

É o flerte por si, em si. 
Não vão para a cama 
nem daqui a dois minutos 
nem no ano que vem.  

Olhares que muito sugerem 
mas que nada prometem. 
Dois desconhecidos que se olham 
furtivamente à meia luz. 
Não estão se despindo no futuro; 
estão se criando no presente.  

Ela se levanta, olha pela última vez, vai embora.  
Ele a observa se afastar, chama o garçom.  
Contente, pede mais uma.

domingo, 1 de março de 2020

Enquanto Eu Respirar

Uma colega de trabalho me emprestou o livro Enquanto Eu Respirar, de Ana Michelle Soares, publicado pela Sextante. É sobre a convivência da autora com o câncer.

Quando comecei a ler, logo gostei de como Ana Michelle Soares, ou AnaMi, como ela gosta de ser chamada, não quis soar profunda nem quis soar literária em sua escrita. Justamente por assim escrever, o livro, em sua “simplicidade”, torna-se denso, bonito, triste, comovente. Outro grande mérito de Ana Michelle Soares é não cair num mequetrefe discurso de autoajuda nem cair em pobre pieguice.

O livro é triste e é bonito. Na vida, tristeza e boniteza não se excluem. A autora narra, com uma pitada de humor aqui e outra ali, que ter câncer não é o mesmo que assinar uma sentença de morte, ainda que se tenha plena consciência de que ela, a morte, possa vir antes do que se imaginava. O belo paradoxo narrado em Enquanto Eu Respirar é o de que a real consciência da finitude é libertadora.

Sempre digo que escrever um livro é um ato a favor da vida, um ato de crença na vida. Nesse sentido, a mera existência de Enquanto Eu Respirar é um atestado de fé; valho-me da palavra “fé” não no sentido religioso, cristão, mas uma fé que se faz no dia a dia porque a pessoa se dá conta de que a vida, apesar de todos os pesares, é um troço que vale a pena ser vivido.

A autora dedica grande parte do livro a relatar a amizade com Renata, carinhosamente chamada de Rê, que também tinha câncer. É emocionante acompanhar a convivência entre as duas, o amor de uma pela outra, ambas frequentemente às voltas com sessões de quimioterapia ou com outros procedimentos relacionados ao tratamento.

Por isso de que já falei, o livro já valeria a pena. Mas, há mais. Enquanto Eu Respirar, sem cair em conselhos bobos ou cheios de pseudossabedoria, alerta-nos para o quanto perdemos tempo com coisas que não têm importância alguma. Num sentido amplo, em seu jeitão simples e despojado, o livro nos conclama a amar, a mergulhar na vida, a não adiar sentimentos e a dar valor nas coisas ditas simples. Para quem está doente, uma brisa pode ser uma dádiva, mas por que precisamos ficar doentes para percebermos que a brisa é uma dádiva?

Outra questão mencionada no livro é o quanto alguns médicos ainda vacilam por não enxergarem no doente não uma estatística, não um número, não um entrave para o plano de saúde. Por um lado, há doentes que não facilitam tratamentos; por outro, há médicos que não entendem que no corpo com câncer ou com qualquer outra doença, mora um ser humano. Uma sintonia entre médico e paciente é possível. 

Os trechos em que a relação médico-paciente é desenvolvida pela autora remeteram-me às obras de Oliver Sacks (um de seus livros é inspiração para o filme Tempo de Despertar) e ao livro Sem Causar Mal, escrito por Henry Marsh, médico inglês. Tanto Sacks quanto Marsh entenderam que um corpo doente é tão belo quanto qualquer outro corpo. 

Essa atmosfera paira em Enquanto Eu Respirar. Os que se interessarem pelo livro podem também conferir o perfil @paliativas, mantido por Ana Michelle Soares, no Instagram. Ela escreveu em seu livro: “É triste não poder falar sobre amor”. Por isso mesmo, Enquanto Eu Respirar é um livro feliz, pois é um livro que exala amor.