Por estes dias, qualquer um que abra as redes sociais vai se deparar com postagens afirmando que a humanidade será melhor depois da covid-19. Eu havia pensado em escrever algo sobre essa questão, mas como tenho visão negativa quanto à melhora dos humanos, decidi não abordar o assunto. Estava isso definido. Contudo, ontem, um amigo entrou em contato comigo, sugerindo que eu escrevesse precisamente sobre possíveis desdobramentos depois de a epidemia passar. O amigo me fez mudar de ideia; decidi escrever sobre o tema, não como quem profetiza, mas como quem tem olhos voltados para o redor e curiosidade voltada para o passado.
Estou relendo A Montanha Mágica, do Thomas Mann. Na obra, Hans Castorp visita o primo Joachim Ziemssen, que está num sanatório, tentando ser curado de tuberculose. O plano de Castorp era ficar alguns dias. Na edição que tenho, a história termina na página 827. No começo, o narrador, de modo detalhado, vai contando como é a rotina no sanatório. A última frase da página 99 é uma fala de Ziemssen, que indaga o primo (a tradução é de Herbert Caro):
“— Como quer formar uma opinião logo no primeiro dia?”.
Na primeira frase da página 100, Castorp comenta:
“— Meus Deus! É ainda o primeiro dia? Já me parece que estou aqui há muito, muito tempo...”.
Um dia, pormenorizado em cem páginas, dá clara ideia de como era a vida no sanatório que Hans Castorp fora visitar.
No livro Jane Eyre, da Charlotte Brontë, a personagem principal, que dá título à obra, vai embarcar numa carruagem. Antes de partir, ela perguntara para o condutor se o destino dela ficava longe do lugar em que estavam no momento do embarque. O condutor respondeu (tradução de Anna Duarte e Carlos Duarte):
“— Pouco menos de dez quilômetros”.
Jane Eyre diz a seguir:
“— Em quanto tempo chegaremos lá?”.
A resposta do condutor:
“— Em uma hora e meia”.
Acima, os dois trechos dos livros ilustram que houve uma época em que a humanidade lidava com o tempo tendo uma subjetividade diferente da nossa. Havia menos correria, dentre outros fatores, porque havia menos tecnologia. Com a popularização dos dispositivos eletrônicos e da internete, além da mudança nos meios de locomoção, houve quem dissesse, em meados da década de 90 do século XX, que a tecnologia e todo o seu aparato fariam com que passaríamos a ter mais tempo livre, mais tempo para nos dedicarmos a projetos pessoais.
Décadas depois, sabemos que não é nada disso. O entusiasmo inicial logo seria extinto. A realidade tornar-se-ia bem diversa daquela ingenuidade de meados da década de 90. Não é pequeno o número de pessoas que levam o trabalho para casa, dentro do bolso ou da bolsa, embutido num celular.
Em nosso modo de lidar com o tempo, é comum as pessoas se impacientarem quando a velocidade de navegação na internete não está como é usualmente, um texto de uma página é chamado de “textão”, um caminho de dez quilômetros levar uma hora e meia para ser percorrido é uma aberração, um livro usar quase mil páginas para contar o dia 16 de junho de 1904 na vida de um sujeito é contraproducente. O modo subjetivo como tratamos o tempo neste século XXI não será o mesmo dos séculos que se foram, estando a covid-19 no ar ou não estando. Não sei como nossa subjetividade vai lidar com o tempo no porvir. O que afirmo é que não lidaremos com ele como um dia já lidamos.
Outra possibilidade que as redes sociais têm apontado é a de que haverá novos afetos, ou, melhor dizendo, haverá (mais) afeto, terminada a pandemia. Nesse mundo vindouro, pós-covid-19, relações familiares, amistosas e amorosas teriam se dado conta de que o que realmente importa não são nossa correria nem nosso consumismo. Essa nova era traria um ser humano mais consciente de seu papel no trato para com a Terra e para com o próximo, não importando se o próximo será um vizinho, um parente ou um colega de trabalho. Não consigo vislumbrar essa nova “era”. O único “prognóstico” que faço é o de que os afetos vão continuar como estão agora. Não creio numa humanidade mais consciente depois da passagem da covid-19. Um ou outro pode rever sua existência, mas, no todo, seguiremos basicamente os mesmos.
Alguns otimistas têm ainda divulgado que haverá, depois que o vírus não for mais ameaça, um novo modelo econômico, que também seria mais preocupado com o bem-estar coletivo, em vez de centrado no próprio umbigo. Nesse novo modelo, haveria a possibilidade de todos terem maior dignidade quando em atendimentos de emergência, não importando a condição financeira da pessoa. Haveria menos neoliberalismo e mais cuidado humanitário, o que implicaria menos sanha na defesa de que tudo — tudo mesmo — seja privatizado. Esse modelo não ocorrerá. Para ficar no nosso caso, levando-se em conta que estou em Patos de Minas: governos federal e estadual defendem privatizações. Não é uma pandemia que fará esse pessoal mudar de ideia. Os planos privatizadores seguirão curso passada a pandemia, a qual, de resto, não os impede de prosseguirem. Além do mais, não é somente parte da classe política a querer a privatização de tudo; em meio à população, há grande parcela a defender que todos os serviços públicos estejam em mãos particulares, não importa a natureza do serviço público, mesmo com empresas recorrendo ao governo quando lhes convém, e não é preciso uma pandemia para que governos socorram empresas.
A utopia é válida, mas utopia que não consegue enxergar, de antemão, as coisas tais quais estão postas corre o risco de se tornar ingenuidade ou desvario. Negar o sonho é perigoso; negar a realidade também é. Não há clima de mudança sendo sugerido, não há um novo modelo de vida sendo edificado pela maioria. O que há é medo e muita ignorância. Leve-se ainda em conta de que é comum as pessoas romantizarem o passado, mormente as que não o pesquisam.
Nesse estado de coisas, há ainda a crença, tida por muitos, de que a natureza se importa conosco ou de que bastaria a fé numa deidade qualquer para que nossas vidas fossem protegidas. Um furacão não pensa algo do tipo “hum, aquele ali é o Zé das Couves [nome fictício]. Vou poupar a casa dele de minha força avassaladora, pois ele é trabalhador, tem bom caráter, é justo”. Quem está na rota de um furacão é engolido por ele, não importam as crenças ou o caráter dessa pessoa. A natureza não sabe de nossos dramas; por mais que alguns insistam, não são preces que pouparão uma pessoa de ter covid-19, ainda que muito se acredite nisso. Não é preciso ser especialista em alguma coisa para saber que, terminada a passagem desse vírus, o número de mortos terá sido maior entre os pobres, os desassistidos, o que nada tem a ver com fé.
Eis, pois, o texto pedido pelo amigo. Em função da amizade, ele me dirá se gostou ou não. Pode ser que discorde de um tópico ou de outro, pode ser que concorde com outro. O amigo é do tipo, não somente quando se dirige a mim, que sabe discordar sem xingamentos, que sabe opor-se sem preconceitos e com inteligência. Eu e ele sabemos que importa a amizade, essa coisa velha que não deixa de fazer sentido.
Estou relendo A Montanha Mágica, do Thomas Mann. Na obra, Hans Castorp visita o primo Joachim Ziemssen, que está num sanatório, tentando ser curado de tuberculose. O plano de Castorp era ficar alguns dias. Na edição que tenho, a história termina na página 827. No começo, o narrador, de modo detalhado, vai contando como é a rotina no sanatório. A última frase da página 99 é uma fala de Ziemssen, que indaga o primo (a tradução é de Herbert Caro):
“— Como quer formar uma opinião logo no primeiro dia?”.
Na primeira frase da página 100, Castorp comenta:
“— Meus Deus! É ainda o primeiro dia? Já me parece que estou aqui há muito, muito tempo...”.
Um dia, pormenorizado em cem páginas, dá clara ideia de como era a vida no sanatório que Hans Castorp fora visitar.
No livro Jane Eyre, da Charlotte Brontë, a personagem principal, que dá título à obra, vai embarcar numa carruagem. Antes de partir, ela perguntara para o condutor se o destino dela ficava longe do lugar em que estavam no momento do embarque. O condutor respondeu (tradução de Anna Duarte e Carlos Duarte):
“— Pouco menos de dez quilômetros”.
Jane Eyre diz a seguir:
“— Em quanto tempo chegaremos lá?”.
A resposta do condutor:
“— Em uma hora e meia”.
Acima, os dois trechos dos livros ilustram que houve uma época em que a humanidade lidava com o tempo tendo uma subjetividade diferente da nossa. Havia menos correria, dentre outros fatores, porque havia menos tecnologia. Com a popularização dos dispositivos eletrônicos e da internete, além da mudança nos meios de locomoção, houve quem dissesse, em meados da década de 90 do século XX, que a tecnologia e todo o seu aparato fariam com que passaríamos a ter mais tempo livre, mais tempo para nos dedicarmos a projetos pessoais.
Décadas depois, sabemos que não é nada disso. O entusiasmo inicial logo seria extinto. A realidade tornar-se-ia bem diversa daquela ingenuidade de meados da década de 90. Não é pequeno o número de pessoas que levam o trabalho para casa, dentro do bolso ou da bolsa, embutido num celular.
Em nosso modo de lidar com o tempo, é comum as pessoas se impacientarem quando a velocidade de navegação na internete não está como é usualmente, um texto de uma página é chamado de “textão”, um caminho de dez quilômetros levar uma hora e meia para ser percorrido é uma aberração, um livro usar quase mil páginas para contar o dia 16 de junho de 1904 na vida de um sujeito é contraproducente. O modo subjetivo como tratamos o tempo neste século XXI não será o mesmo dos séculos que se foram, estando a covid-19 no ar ou não estando. Não sei como nossa subjetividade vai lidar com o tempo no porvir. O que afirmo é que não lidaremos com ele como um dia já lidamos.
Outra possibilidade que as redes sociais têm apontado é a de que haverá novos afetos, ou, melhor dizendo, haverá (mais) afeto, terminada a pandemia. Nesse mundo vindouro, pós-covid-19, relações familiares, amistosas e amorosas teriam se dado conta de que o que realmente importa não são nossa correria nem nosso consumismo. Essa nova era traria um ser humano mais consciente de seu papel no trato para com a Terra e para com o próximo, não importando se o próximo será um vizinho, um parente ou um colega de trabalho. Não consigo vislumbrar essa nova “era”. O único “prognóstico” que faço é o de que os afetos vão continuar como estão agora. Não creio numa humanidade mais consciente depois da passagem da covid-19. Um ou outro pode rever sua existência, mas, no todo, seguiremos basicamente os mesmos.
Alguns otimistas têm ainda divulgado que haverá, depois que o vírus não for mais ameaça, um novo modelo econômico, que também seria mais preocupado com o bem-estar coletivo, em vez de centrado no próprio umbigo. Nesse novo modelo, haveria a possibilidade de todos terem maior dignidade quando em atendimentos de emergência, não importando a condição financeira da pessoa. Haveria menos neoliberalismo e mais cuidado humanitário, o que implicaria menos sanha na defesa de que tudo — tudo mesmo — seja privatizado. Esse modelo não ocorrerá. Para ficar no nosso caso, levando-se em conta que estou em Patos de Minas: governos federal e estadual defendem privatizações. Não é uma pandemia que fará esse pessoal mudar de ideia. Os planos privatizadores seguirão curso passada a pandemia, a qual, de resto, não os impede de prosseguirem. Além do mais, não é somente parte da classe política a querer a privatização de tudo; em meio à população, há grande parcela a defender que todos os serviços públicos estejam em mãos particulares, não importa a natureza do serviço público, mesmo com empresas recorrendo ao governo quando lhes convém, e não é preciso uma pandemia para que governos socorram empresas.
A utopia é válida, mas utopia que não consegue enxergar, de antemão, as coisas tais quais estão postas corre o risco de se tornar ingenuidade ou desvario. Negar o sonho é perigoso; negar a realidade também é. Não há clima de mudança sendo sugerido, não há um novo modelo de vida sendo edificado pela maioria. O que há é medo e muita ignorância. Leve-se ainda em conta de que é comum as pessoas romantizarem o passado, mormente as que não o pesquisam.
Nesse estado de coisas, há ainda a crença, tida por muitos, de que a natureza se importa conosco ou de que bastaria a fé numa deidade qualquer para que nossas vidas fossem protegidas. Um furacão não pensa algo do tipo “hum, aquele ali é o Zé das Couves [nome fictício]. Vou poupar a casa dele de minha força avassaladora, pois ele é trabalhador, tem bom caráter, é justo”. Quem está na rota de um furacão é engolido por ele, não importam as crenças ou o caráter dessa pessoa. A natureza não sabe de nossos dramas; por mais que alguns insistam, não são preces que pouparão uma pessoa de ter covid-19, ainda que muito se acredite nisso. Não é preciso ser especialista em alguma coisa para saber que, terminada a passagem desse vírus, o número de mortos terá sido maior entre os pobres, os desassistidos, o que nada tem a ver com fé.
Eis, pois, o texto pedido pelo amigo. Em função da amizade, ele me dirá se gostou ou não. Pode ser que discorde de um tópico ou de outro, pode ser que concorde com outro. O amigo é do tipo, não somente quando se dirige a mim, que sabe discordar sem xingamentos, que sabe opor-se sem preconceitos e com inteligência. Eu e ele sabemos que importa a amizade, essa coisa velha que não deixa de fazer sentido.
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