sábado, 31 de março de 2018

Para que serve a água?

De antemão, digo que sou contra o proselitismo, seja qual for. Não sou seguidor de nenhuma religião. Nem por isso deixo de me informar sobre o que as crenças são capazes de fazer, seja de ruim, seja de bom.

Na quinta-feira, dia vinte e nove de março, o papa Francisco lavou pés de detentos numa penitenciária em Roma. O chefe da igreja católica alegou ser tão pecador quanto os que estão presos.

Assim que li a notícia, eu me lembrei do Doria, em São Paulo, que contrata caminhão com mangueira para jogar água em mendigos, a fim de que saiam do centro da cidade. A água do papa foi para lavar os pés dos presos, em gesto pleno de simbolismo; a água de Doria foi para “limpar” São Paulo, em gesto pleno de desumanidade. 

terça-feira, 27 de março de 2018

Elisa, a polivalente

Fui “censurado” (ou vetado) duas vezes. Este texto é sobre a primeira dessas vezes; a segunda fica para outro apontamento. Na primeira, eu ainda era estudante. Frequentava o Polivalente, onde cursei edificações. Na ocasião, haveria a inauguração de um laboratório que seria útil não lembro mais para qual dos cursos técnicos que havia por lá. Houve toda uma pompa: a banda do 15º BPM esteve presente (lembro-me de que executaram uma canção do Skank), políticos conferiram o evento.

A diretora da escola era Elisa Guedes Duarte. Ela disse que era para um aluno discursar quando da inauguração do laboratório. Como nós, estudantes, havíamos sido informados de que haveria políticos na solenidade, eu, rebelde de corpo inteiro (atitude que tão bem faria — e faz — para mim como adulto), fui cara de pau e sugeri meu próprio nome para o discurso, já pensando no “sermão” que eu daria nos políticos que lá estivessem, não importava quem fossem (eu ainda não sabia quais deles estariam lá).

Feliz da vida, escrevi o discurso. Chegado o dia da inauguração oficial dos laboratórios, a Elisa me pediu para ler o texto que eu havia preparado. Não me opus. Terminada a leitura, ela me pediu que retirasse um trecho, que dizia algo mais ou menos assim: “Se a educação está ruim como está, a culpa, evidentemente, não é dos professores”. Ela argumentou que o momento era de festa e que a ocasião não era ideal para aquela provocação diante dos políticos que estariam no Polivalente. Acatei a ordem dela. Li o discurso, eliminando a crítica.

Houve dicotomia em mim. Por um lado, se minhas palavras haviam sido vetadas, sinal de que minha rebeldia poderia incomodar ou colocar em situação melindrosa os políticos que lá estivessem; isso me deixou muito contente, com a sensação de que eu estava no caminho certo. Por outro lado, ocorreu em mim a impressão de que a Elisa era uma pessoa careta. Na época, não fiz o salutar exercício de me colocar no lugar dela.

Muitos anos depois, eu e ela fomos colegas de trabalho no Unipam. Não lembro mais que cargo ela ocupava (ocupa?) lá. Eu era professor. Saí do Unipam. Mesmo quando eu trabalhava lá, meu contato com ela era raro, profissional; havia breves conversas. Não havia ranço algum de minha parte; nem sei se ela se lembrava de um dia ter me “censurado”. Quando saí do Unipam, os bate-papos entre mim e ela, que já eram poucos, deixaram de existir.

Vieram as redes sociais. Não sei por que paragens anda a Elisa, mas tenho lido as crônicas de autoria dela publicadas no Facebook. Eu não sabia que ela escreve (bem). Há um olhar atento, uma fina ironia, um texto revelador de uma pessoa inteligente, que tem domínio da palavra e que sabe dizer com elegância o que tem para dizer. O adulto em mim, mesmo antes de saber que a Elisa tem talento para escrever, já havia abandonado o vaticínio impetuoso e juvenil de que ela fosse careta; depois de ter me tornado leitor do que ela tem escrito, fico torcendo para que ela mergulhe na arte da crônica. Asseguro que serei leitor. 

O respeito não voltou

O Thiago Silva disse que a camisa da seleção brasileira “merece um pouco mais de respeito”. Sim, mas não por causa da geração dele. 

domingo, 25 de março de 2018

Engodo maquiado

Chamada, a que assisti na sexta-feira (23/03), do SporTV para o amistoso do Brasil contra a Alemanha, na terça, apela para o ufanismo, dando um tom épico ao comercial, com trilha marcante, hino nacional e cenas do 7 a 1. O problema é que o que vem da Globo não é ufanista; o que se vê na Globo e em seus satélites é patriotada interesseira, careta e demagógica.

No comercial, passam a ideia de que o jogo da semana que vem é uma espécie de revanche depois do fiasco do Brasil na Copa aqui realizada. Bobagem. Ainda que o Brasil faça sete ou mais gols na Alemanha, é um amistoso, há muito menos em jogo.

A Alemanha eliminou o Brasil num jogo de Copa do Mundo, jogando em Belo Horizonte. De quebra, Klose se tornou o maior artilheiro das Copas, diante de Ronaldo, que até então detinha esse recorde. Ronaldo comentou a partida na Globo, ao lado do bobo, chato e prejudicial Galvão Bueno.

Camuflando interesses cruéis, dá o SporTV ares de grandeza para o jogo de terça, mas nada do que façam esconde a pequenez do que são os ideais da Globo. O que fazem é demagogo, falso e brega. Por isso mesmo, sucesso. 

Apontamento 373

O Brasil tem boa parte da classe média que se acha elite e uma elite que acha que o país é só dela. Essa elite faz do país e da classe média o que bem entende. 

quinta-feira, 15 de março de 2018

Não voto

Em conversa que mantenho com amigos, tenho me deparado com aqueles que têm a opinião de que quando os debates políticos na corrida presidencial se iniciarem, Bolsonaro vai se “queimar”; alguns internautas têm manifestado pensamento similar em redes sociais. Os que afirmam isso levam em conta que o total despreparo e a ignorância dele são o que, por fim, farão com que os apoiadores dele de agora se deem conta no futuro do que já é patente — a... obtusidade (é um eufemismo) de Bolsonaro.

Muito infelizmente, temo que o “diagnóstico” dos amigos e de alguns em redes sociais não esteja correto. Ainda que Bolsonaro confirme, reconfirme e dê inúmeras provas do quanto é um bufão retrógrado e simplista, isso não vai afugentar os apoiadores dele. Acredito mesmo que quanto mais bobo e truculento ele for, não somente não vai perder os apoiadores que tem, como vai arregimentar outros.

Há os que defendem ditadura militar; os ingênuos que acreditam que Bolsonaro é paradigma de honestidade se exultam ao apoiá-lo; preconceituosos de todos os matizes veem nele o candidato ideal. Quanto mais bronco, anacronicamente conservador e beligerante Bolsonaro for, mais haverá exultação entre ingênuos, machistas, homofóbicos, armamentistas, misóginos, eugenistas, racistas, xenófobos, belicistas...

Até a data das eleições, vislumbro alguma muito remota possibilidade de mudança entre o grupo dos ingênuos; os demais, que, lamentavelmente, são muitos, estão com Bolsonaro não apesar das declarações toscas dele, mas por causa delas. Pode ser que os marqueteiros da campanha dele sugiram “burilar” ou “suavizar” a imagem pública dele. Mas abandonar pautas intolerantes, ele não vai. Isso seria perder boa parte dos eleitores que ele tem.

Recentemente, assisti a uma entrevista com Malala Yousafzai no programa O Próximo Convidado com David Letterman, exibido pela Netflix. Num determinado momento, ele pergunta para Malala a opinião dela sobre Donald Trump. Ela devolve a pergunta para ele, que responde: “Eu sinto que, pessoalmente — não politicamente, mas pessoalmente —, ele não está apto a me representar”. Letterman conclui: “Não acredito que ele esteja apto a representar ninguém neste espaço” (o programa é gravado no que parece ser um teatro; há plateia).

A resposta do apresentador acabou me remetendo a Bolsonaro, por ser algo que eu responderia se alguém me perguntasse o que acho do pré-candidato à presidência. Politicamente, estou longe do espectro ditatorial defendido por ele; no plano pessoal, ele é o tipo de gente que eu não chamaria para tomar uma cerveja aqui em casa. Se em algum dia nos conhecêssemos (sei que isso não vai ocorrer), estou ciente de que a recíproca valeria. Sou o tipo de pessoa de que ele não faria a menor questão. Além do mais, ele não precisa de mim, em nenhum aspecto.

É comum os defensores alegarem a honestidade dele, sem nem saberem se ela existe de fato. As notícias de nebuloso enriquecimento dele e dos filhos dele, veiculadas em janeiro deste ano, não se desdobraram (o que já era esperado). “Historicamente, apenas o tema da corrupção, no Brasil, propicia a manipulação perfeita do público cativo: aquela que não toca nem de perto no acordo das elites nem nos seus privilégios e permite focar todo o fogo no inimigo de classe da ocasião. Trata-se de um tema que não oferece nenhuma reflexão e compreensão real do mundo, mas que possibilita todo tipo de distorção, seletividade e manipulação emotiva de um público cativo” [1]. Muitos dos “paladinos” da honestidade não passam de cativos.

É muita ingenuidade acreditar que basta a truculência de alguém para se acabar com a corrupção no Brasil, que é institucional e praticada em todas as esferas. No mais, alegar que um simpatizante de torturadores dizimaria a corrupção por ter sido militar é supor que não houve corrupção durante a ditadura. Pensar assim é revelar ignorância histórica.
_____

[1] SOUZA, Jessé. A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado. Rio de Janeiro. Leya. 2016. Pp. 88 e 89. 

O que a escola faz

Muito se fala sobre o papel da escola, sobre o que ela deve fazer, o que não deve fazer, a quem deve prestar contas... Quem muito fala sobre a função da escola geralmente prefere deixar de lado a importante noção de que a escola tem limites e de que nem tudo é obrigação dela. Querem exigir cada vez mais do ensino, no mais das vezes não dando a ele aquilo de que ele necessita para realizar o trabalho que a ele compete, sem levar em conta que não é obrigação dele preparar para tudo nem ser responsável pelo que o cidadão vai fazer depois de não mais frequentar uma escola — ou pelo que ele vai fazer quando o horário de aula termina e ele toma as ruas.

Quando alguém incorre em erro de português, é lugar-comum culparem as escolas por a pessoa não escrever corretamente segundo a gramática; se alguém não sabe fazer uma simples regra de três, a culpa é da escola. Já afirmei anteriormente haver professores que se jactaram de nunca terem lido um livro depois de terminarem a faculdade: a escola tem imperfeições porque é feita por imperfeitos. Mesmo assim, não é justo culpá-la pelas mazelas intelectuais do país.

Sou testemunha de que a escola tem ensinado. Se o ensino não é eficaz enquanto a pessoa ainda está em sala de aula, os menos responsáveis por essa ineficácia são os professores. Não bastasse, boa parte das pessoas, depois de terminarem o período em que tiveram de ficar em salas de aula, entregam-se a uma preocupante indolência intelectual. Na expressão mais visível dessa apatia mental, qualquer texto que tenha cinco linhas é textão, qualquer frase que comece a exigir um pouco de concentração é abandonada. Há muitos não interessados em alguma atividade intelectual.

Não há como a escola reger em totalidade nem as vidas dos que ainda frequentam salas de aulas; exigir dela que o cidadão adulto domine um conhecimento de que ele pode nem ter feito questão enquanto estava em sala de aula e de que não faz questão agora que não tem de se sentar e assistir a alguém lecionando é exigir desonestamente da escola. Eu citaria miríadas de professores que ensinaram e ensinam a diferença entre “mas” e “mais” ou que ensinaram a calcular porcentagens ou que ensinaram como se dá a fotossíntese. Contudo, se o cidadão que não mais frequenta um ambiente escolar está mais preocupado em postar fotos exibindo armas de fogo, não há nada que a escola possa fazer. Por ele, o que ela podia fazer, ela já fez. 

Marielle Franco

O mais recente capítulo da invasão no Rio de Janeiro foi escrito ontem. A morte de Marielle Franco escancara a inutilidade do que as autoridades estão fazendo lá. A truculência contra o cidadão “anônimo” já tem sido denunciada. Ontem, a fim de radicalizar o modo como lidam com quem se opõe contra a sacanagem que estão fazendo na cidade, mataram a vereadora.

Alguns dos que são a favor da invasão ou dos que não estão a fim de entender que ela é uma tacada populista e cruel contra as vítimas de sempre celebraram o assassinato de Marielle. Tristemente, isso não surpreende, pois tem sido assim em redes sociais. Também tristemente, a morte de civis num país que já sofreu tanto com intervenção militar não é novidade.

O que está claro é o que já se sabia de Marielle, ou seja, que ela era contra a presença do exército no Rio. Posso estar enganado quanto ao que vou escrever, mas sei como é o Brasil. Não acredito que os assassinos serão descobertos; e ainda que sejam, não serão punidos. Na hora de os invasores coagirem favelados e distribuírem gibis hipócritas e imbecis em ônibus, há empenho. Não haverá esse empenho nem por parte deles nem por parte de burocratas inúteis que estão em gabinetes em achar os assassinos da vereadora. Que eu esteja enganado. 

domingo, 11 de março de 2018

Árvore

Epitelial

Carregarás em tua pele
a lembrança do que sou.
Mais precisamente,
do que sou quando 
estou contigo.
Só contigo sou marcante. 

Na gráfica e no estádio

Embora eu não concorde com o modo como os torcedores protestaram contra a Globo, recentemente, em jogo entre Santos e Corinthians, entoando "Globo, vai tomar no c*", claro que partilho do sentimento contra a emissora, mesmo sem saber até que ponto esse sentimento era genuíno nos quase quarenta mil torcedores que xingaram o canal em partida que ele estava transmitindo; mesmo assim, suponho que o "cântico" era genuíno em alguns. Não concordo com a maneira (mandar tomar no c*), mas concordo com a essência.

De modo análogo, não concordo com a invasão realizada hoje pela manhã no parque gráfico do jornal O Globo, no Rio. Uma das razões alegadas para a invasão foi a defesa da democracia, mais uma vez atacada pela Globo e seus sinistros tentáculos no golpe de 2016. Vale lembrar que, sintomaticamente, a Globo surgiu no ano de 1965, um ano depois do golpe da década de 60. Nesse golpe, nem jornal O Globo nem militares nem demais partidários do saque contra o Brasil se preocuparam em espargir nele ares de legalidade, o que fizeram em 2016.

Mesmo eu não concordando com o modus operandi de hoje no jornal O Globo nem com o de dias atrás no Pacaembu, no jogo entre Santos e Corinthians, ambas as manifestações deixam claro que o rebanho subjugado pela Globo, mesmo ainda sendo gigantesco, tem oponentes que sabem do quanto o canal asfixia e mata o Brasil. Havendo conscientização e não havendo canalhice, o caminho natural é ser contra a Globo, seja de que modo for.

A nota surreal do dia de hoje ficou por conta da Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), da Aner (Associação Nacional de Editores de Revistas) e da ANJ (Associação Nacional de Jornais), que divulgaram texto condenando os que, segundo as associações, "são incapazes de conviver em ambiente democrático". Esse pessoal não é imbecil. Defender o grupo Globo, alegando princípios democráticos a favor de um conglomerado que vive sacaneando os brasileiros é ser hipócrita e partidário dessa sacanagem. 

O que a escola faz

Muito se fala sobre o papel da escola, sobre o que ela deve fazer, o que não deve fazer, a quem deve prestar contas... Quem muito fala sobre a função da escola geralmente prefere deixar de lado a importante noção de que a escola tem limites e de que nem tudo é obrigação dela. Querem exigir cada vez mais do ensino, no mais das vezes não dando a ele aquilo de que ele necessita para realizar o trabalho que a ele compete, sem levar em conta que não é obrigação dele preparar para tudo nem ser responsável pelo que o cidadão vai fazer depois de não mais frequentar uma escola — ou pelo que ele vai fazer quando o horário de aula termina e ele toma as ruas.

Quando alguém incorre em erro de português, é lugar-comum culparem as escolas por a pessoa não escrever corretamente segundo a gramática; se alguém não sabe fazer uma simples regra de três, a culpa é da escola. Já afirmei anteriormente haver professores que se jactaram de nunca terem lido um livro depois de terminarem a faculdade: a escola tem imperfeições porque é feita por imperfeitos. Mesmo assim, não é justo culpá-la pelas mazelas intelectuais do país.

Sou testemunha de que a escola tem ensinado. Se o ensino não é eficaz enquanto a pessoa ainda está em sala de aula, os menos responsáveis por essa ineficácia são os professores. Não bastasse, boa parte das pessoas, depois de terminarem o período em que tiveram de ficar em salas de aula, entregam-se a uma preocupante indolência intelectual. Na expressão mais visível dessa apatia mental, qualquer texto que tenha cinco linhas é textão, qualquer frase que comece a exigir um pouco de concentração é abandonada. Há muitos não interessados em alguma atividade intelectual.

Não há como a escola reger em totalidade nem as vidas dos que ainda frequentam salas de aulas; exigir dela que o cidadão adulto domine um conhecimento de que ele pode nem ter feito questão enquanto estava em sala de aula e de que não faz questão agora que não tem de se sentar e assistir a alguém lecionando é exigir desonestamente da escola. Eu citaria miríadas de professores que ensinaram e ensinam a diferença entre “mas” e “mais” ou que ensinaram a calcular porcentagens ou que ensinaram como se dá a fotossíntese. Contudo, se o cidadão que não mais frequenta um ambiente escolar está mais preocupado em postar fotos exibindo armas de fogo, não há nada que a escola possa fazer. Por ele, o que ela podia fazer, ela já fez. 

domingo, 4 de março de 2018

Fotopoema 413

Céus


Curicacas




Os invasores estão de volta

Uma das coisas tristes sobre a invasão do exército no Rio de Janeiro é que isso não resolve nada. Estão lá, coagindo os de sempre, fichando-os, enquanto quem está em gabinetes ou em carros luxuosos seguem incólumes e felizes, cientes de que nem exércitos nem polícia vão mexer com eles.

A balela dos invasores é a de que a presença deles no Rio quer a segurança pública, mas já deixaram claro que não estão a fim de conversar (a pseudocoletiva em que as perguntas tiveram de ser lidas e tiveram de passar pelo crivo deles prova isso), o que não surpreende, pois o forte desse pessoal não é a arte do diálogo, mas apontar contra os próprios brasileiros aparatos de repressão, de tortura e de morte.

Alegam que é pela segurança, que é pela ordem, que é para zelar pelo "cidadão de bem" (adoram essa expressão). Muitas pessoas, por ingenuidade ou por burrice, defendem intervenção militar. O golpe de 64 mostrou o que ditadores e exército são capazes de fazer quando alegam que é para defender o país, o que são capazes de realizar quando se voltam contra os compatriotas. 

quinta-feira, 1 de março de 2018

O traje do poder e da subserviência

A inutilidade e a sacanagem da invasão do exército no Rio acabaram fazendo com que eu voltasse a pensar no comportamento de instituições que valorizam demais o que chamam de disciplina, de amor à pátria ou de senso ordeiro. São ambientes em que a aparência conta mais do que o que é de fato disciplina ou amor ao país. Quem ama o país não tortura, não mata, não confabula golpes políticos. Em termos históricos, o golpe de 64 foi ontem. Agora, há outro em curso. Os tempos são outros, as estratégias são outras, mas o desejo de saquear, mais uma vez, o país para uns poucos é o mesmo.

A subserviência de alguns ante os poderosos ou o fervor que têm quanto a hierarquias caretas e tolamente mandonas mais se parecem com o mais desbragado masoquismo. Há algo de infantil no encanto que sentem ante um fardão, uma farda, um sinal de distinção qualquer, ou quando se entregam a pompas afetadas.

Mesmo os que detêm cargos de comando assumem discurso típico de vassalos quando diante de alguém em hierarquia superior. Eles e seus pares têm vocabulário que, dependendo da situação, pode ser típico de ditadores ou típico de servos. Quem berra brandindo um cassetete tem a capacidade de se ajoelhar em submissão. Isso não é digno de chacota porque pode ser perigoso, quando agem em consonância com o pensamento de que são donos do povo e melhores do que ele.

Quando se sentem superiores pelo que ostentam, pelo que vestem, não têm noção de que “o hábito não faz o monge”, a farda não faz o soldado, a condecoração não faz o doutor. Nem hábitos nem fardas nem condecorações fazem o homem. Enquanto isso, quem não tem insígnias se incha vestindo toga ou terno. 

"Rio quarenta graus"

Exército no Rio não é solução.
Solução seria prender quem
transporta drogas em avião.

Sem argumentos na epopeia:
o exército exibe suas armas;
tem o aval de tosca plateia.

Fizeram do Rio o seu quintal.
Peixes grandes nadam em paz.
Nos pequenos, descem o pau.

Para os engravatados, carreiras.
Para os pobres, intimidação.
Dos ricos, cocaína nas esteiras.

Metidos em fardas, nada novo:
querem para si e para os deles
o que não é deles e é do povo.