segunda-feira, 10 de junho de 2019

Terêncio e o juiz

Não raro, eu me esqueço das coisas que escrevi. O assunto de que vou tratar neste texto, suspeito, já foi abordado por mim. O problema da repetição não me incomoda, mas sei que pode incomodar um leitor ou outro. Releve, pois, a repetição, você que com ela se incomodar.

Eu tinha uns sete ou oito anos. Estava aqui em casa um cantor ensaiando algumas canções com meu pai, que tocava violão; não me lembro do nome dele (o do meu pai, eu me lembro). Esse cantor se dizia muito religioso. O papa da época era o João Paulo II. Num momento em que não estava havendo ensaio, o interlocutor de meu pai disse que o papa era “um homem santo”.

Meu pai começou então um longo discurso contra essa ideia, alegando que, antes de ser papa, Wojtyła era homem, e, como tal, estava sujeito às intempéries, fraquezas e nobrezas que podem ocorrer com qualquer um. O cantor não concordou; voltaram, ele e meu pai, ao ensaio, este ficando com o elemento humano do papa; aquele, com o suposto caráter divino do representante católico.

Não raro, meu pai tecia duros comentários contra padres, categoria que para ele era desprezível. Sempre que ele ficava sabendo de alguma ação danosa realizada por alguém da igreja católica, ele vinha sempre com o discurso de que “a pior classe de gente que existe são os padres”. Nunca entendi essa aversão dele contra religiosos católicos. Eu deveria ter conversado com meu pai sobre essa questão; como isso nunca ocorreu, fiquei sem saber por que os delitos de outros profissionais eram mais tolerados do que os delitos do clero. Claro que se espera que um padre, em teoria, seja virtuoso, mas, como meu pai sempre dizia, antes de alguém ser padre, esse alguém é um homem, e meu pai era capaz de nomear a hipocrisia quando diante dela. Ele morreu; fiquei sem saber a razão de tanta ojeriza dele contra padres. Há canalhas em qualquer profissão.

O que restou disso em mim foram a resignação e a ciência de que o ser humano é capaz dos atos mais vis, não importa quem ele seja. Felizmente, não ficou em mim apenas o ranço contra a espécie. Meu pai tinha bem desenvolvido e definido o senso de que podemos ser imprestáveis; todavia, ele não conseguiu desenvolver com a mesma acuidade o senso de que podemos valer alguma coisa. O resultado em mim de ter convivido com uma pessoa como meu pai foi que logo, logo eu já sabia que não valemos grande coisa. Disso, graças ao modo como meu pai encarava a vida, eu soube desde cedo; em contrapartida, ainda bem jovem aprendi que pode haver beleza em nós.

A convivência com a literatura solidificou o pensamento de que podemos ser uns trastes, bem como intensificou a ideia de que temos capacidade de nobreza, o que a vida acabaria me mostrando e ainda me mostra. Uma das consequências naturais da criação que recebi por intermédio de meu pai e das leituras que fui realizando foi a de não edificar ídolos, pois já estava arraigada em mim a constatação de nossos humanos limites; outra consequência foi não ter me tornado um ingênuo. Dos seres humanos, espero o pior, ciente de que somos capazes do melhor.

Na juventude, eu ainda não conhecia a máxima do Terêncio: “Sou humano; nada do que é humano me é estranho”. Mesmo sem conhecer a sentença, já corria em mim o remédio que me fazia entender que marmanjos que estupram uma garotinha ou filha que mata a mãe se valendo de um machado são expressões de capacidades humanas. Isso não significa ser inabalável, isso não significa que crimes não merecem punição; significa tão somente não encarar o pior de nós como se não fôssemos capazes de atrocidades.

Obviamente, esse pensamento é estendido às esferas da vida como um todo. Não importa se o delito venha de um pedreiro, de um médico ou de um professor, há em mim a resignação ou a compreensão de que estamos sendo nada mais do que humanos quando incorremos em erros, sejam eles pequenos, sejam grandes. Convivo com o outro na profunda certeza de que ele tem o pior e o melhor da espécie, na certeza de que tenho o pior e o melhor da espécie.

Mesmo assim, por muito tempo, tive dificuldade em entender a credulidade que é sintoma de tola ou de perigosa ingenuidade. O que leva alguém a acreditar, por exemplo, num pastor que alega fazer milagres ou num juiz politiqueiro que se arvora como representante da justiça? Todavia, quando eu me fazia esse tipo de pergunta, eu não estava me dando conta do óbvio: a credulidade ingênua ou a ingenuidade crédula são também expressões do que significa ser gente. “Nada do que é humano me é estranho”. 

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