domingo, 24 de março de 2019

O legado de Araújo

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.
Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas

O Guimarães Rosa, que foi médico, escritor e diplomata, disse certa vez, numa entrevista, que o trabalho dos diplomatas é consertar os estragos dos políticos. Só que no caso do Brasil, a diplomacia não vai consertar os estragos do governo federal, cuja avaliação positiva, aliás, caiu 15 pontos, segundo o Ibope. Ernesto Araújo, ministro das relações exteriores, defende ideias como a de que o aquecimento global é trama marxista (sic). Não é de se esperar que alguém com um pensamento assim conserte trapalhadas diplomáticas.

A congressista norte-americana Alexandria Ocasio-Cortez tem consciência plena de que o aquecimento global não é trama marxista. Ela afirma que é legítimo não querer ter filhos por causa do aquecimento global, alegando que as vidas das crianças serão muito difíceis por causa das mudanças climáticas no planeta. Em nome da consciência, Ocasio-Cortez acha digno não trazer novas vidas à tona; em nome de anacronismo patológico, Araújo se alinha com aqueles para quem não há aquecimento global, o que, em consequência, dá passe livre para destruição ainda mais intensa da natureza.

Ocasio-Cortez não propõe método deliberado para que não haja mais pessoas, o que é a proposta de David Benatar, autor do livro Better never to have been (algo como Melhor nunca ter nascido); na obra, o pensamento de que a saída mais digna para a humanidade é a extinção, defendendo que nascer é sempre um mal e que a procriação deveria parar. Benatar não defende nem assassinato nem suicídio.

A revista Jacobin foi incisiva em matéria que é retrato acurado do Brasil recente, chamando Ernesto Araújo de “o pior diplomata do mundo”. A diplomacia brasileira, que já teve intelectuais como o já citado Guimarães Rosa e inteligências como a de Celso Amorim, tem agora de lidar com Araújo.

Pode-se não concordar com Ocasio-Cortez nem com David Benatar. Todavia, não se pode acusá-los de não estarem preocupados com a condição humana; nenhum deles pode ser acusado de ignorar a complexidade da existência. Suspeito eu de que seremos extintos não por ideias similares às de David Benatar e às de Ocasio-Cortez, mas por mentes distorcidas como as daqueles que atribuem aquecimento global a inexistentes complôs ideológicos. O que mata é a ignorância.

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