A edição da revista Quatro cinco um deste julho tem texto de Ramin Bahrani; ele fez refilmagem e roteiro de Fahrenheit 451, que já havia sido adaptado para o cinema por François Truffaut, em 1966. Tanto a versão de Truffaut quanto a de Bahrani têm como base o indispensável livro de mesmo título, publicado em 1953 por Ray Bradbury.
Admiro a coragem de diretores que ousam adaptar para o cinema um grande livro, pois existe a conhecida brincadeira a afirmar que, em geral, livros ruins dão filmes bons e livros bons dão filmes ruins. Tanto o filme de Truffaut quanto o de Bahrani não confirmam a “tese” da brincadeira.
A refilmagem de 2018 incorporou a internete como elemento. Aliás, na distopia do filme, essa internete (ou o desdobramento dela), embora tenha preservado comportamentos bizarros fáceis de serem conferidos em postagens ou comentários de redes sociais ou em sítios de notícias, é a detentora absoluta das mentes dos que nela navegam, algo que já ocorre e que se agiganta mais do que a capacidade de armazenamento dos dispositivos eletrônicos. A distopia no filme de Bahrani tem elementos facilmente identificáveis em qualquer regime totalitário, de modo que não há como o espectador não se remeter, por exemplo, a outra poderosa e eloquente distopia do século XX, 1984, do George Orwell, publicado em 1949.
O Fahrenheit 451 não deixa de tocar a ferida: se a sociedade que exibe é regida por opressores que não querem ter acesso a livros, a conhecimento, a liberdade, assim é por elas, as pessoas, terem permitido que as coisas tomassem o rumo que tomaram. Sem cair em discursos longos ou em libelos juvenis contra a publicidade e contra o controle absoluto nas mãos de poucos, Bahrani não deixa de evidenciar o perigo que há quando a tecnologia, para o cidadão, torna-se um fim em si mesma e não um instrumento para que a pessoa seja alguém melhor, enquanto, para o governo, torna-se ferramenta de esmagamento de individualidades. Essa mesma tecnologia, no filme, faz com que a queima de livros ou de pessoas seja espetáculo curtido e compartilhado, enquanto as imagens ardentes aparecem nas paredes dos edifícios. Mesmerizadas pelo show, as pessoas não têm acesso às palavras que poderiam esclarecer o que ocorre na abafadora atmosfera de Fahrenheit 451.
Em determinado momento do filme, uma personagem diz: “O Ministério tem apagado línguas a fim de apagar o pensamento”. Volto a Orwell; em 1984, há o mesmo procedimento, o de se eliminar a linguagem para se manipular o outro. Aliás, a perda da palavra, do verbo, é o mesmo que acomete os humanos no magnífico O Planeta dos Macacos, publicado em 1963, do Pierre Boulle.
Claro que não é coincidência 1984, Fahrenheit 451 e O Planeta dos Macacos lidarem com a perda da capacidade de verbalização. Reflexos de seu tempo, essas obras têm o cerne das distopias, ou seja, não são exercícios de adivinhação nem são deduções do porvir. Elas são hipérboles ou recrudescimentos de tendências que já estavam presentes na época em que foram escritas. O filme de Ramin Baharani manteve a essência da distopia de Bradbury no universo sufocante que exibe e no amor pelos livros que teima em existir.
O amor pela palavra vai permanecer porque ele é o amor pela humanidade. Podem queimar livros, podem queimar pessoas, podem tentar impedir a rebeldia, podem matar, incinerar, deletar, prender. Não conseguirão impedir o voo das palavras. Vocês passarão, elas passarinho.
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