Recentemente, foi realizado o VI Festival de Teatro Universitário de Patos de Minas. Um dos espetáculos foi “Caravela da Ilusão”. Abaixo, resenha sobre o espetáculo escrita pelo professor, escritor e ensaísta Luís André Nepomuceno.
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O mundo sob as asas de um anjo
“Caravela da ilusão” mistura linguagens cênicas e põe à vista a prostituição do sagrado
Luís André Nepomuceno (*)
Em sua página no Facebook, a Companhia de Teatro Espaço Núcleo, de Limeira-SP, antecipa que “Caravela da Ilusão” é um espetáculo que tem a morte como sua protagonista. Ainda que seja verdade, isso diz pouco para a riqueza e a complexidade do espetáculo que venceu seis prêmios no VI Festival de Teatro Universitário de Patos de Minas, promovido pelo UNIPAM entre os dias 9 e 14 de outubro, com apoio da Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal. Na sinopse da grade de programação do Festival, a Companhia ainda nos informa que o espetáculo aborda a vida de uma família que se vê perdida numa ilha após um naufrágio.
Mas “Caravela da ilusão”, no entanto, também é mais que tudo isso. Com texto e concepção cênica de Jonatas Noguel, contando com Matheus Gonçalvez, Felipe Santos e Pablo Abritta no elenco, o espetáculo, bastante premiado em festivais pelo país, é uma visão sombria, mística, mas ao mesmo tempo cômica da existência humana. A família a que se refere a sinopse é metáfora de todos nós: depois de um naufrágio numa ilha que não remete a nenhuma geografia ou a nenhum local específico, num tempo que igualmente não remete a nenhum tempo histórico, a família se vê como sobrevivente numa terra que fora amaldiçoada por guerras. Pelayo tem um filho pequeno que não para de chorar, e a avó anseia por ficar surda para não ouvir o choro.
A rotina dessa gente é interrompida pela enigmática chegada de um anjo, que parece dar vida à ilha e curar a criança. Misto de encantamento e prosaísmo, não é um anjo representado na sua concepção convencionalmente cristã, mas uma figura ambígua, de asas negras, que fala língua estranha, que muda o cenário a seu redor, que é decadente e tem vestes em frangalhos. Sua presença, mais que sua chegada, é o retrato vivo das contradições que se impõem ao entendimento humano.
Mas frente a esse mesmo entendimento, não deixa de ser em essência um anjo. E cura. E de tal maneira cura, que a família, tomada de ambição, sujeita esse mesmo anjo a seu capricho materialista: expõe sua imagem à peregrinação dos necessitados, prostitui sua divindade, vende seu corpo. Desse comércio do sublime, a família herda senão aquilo que a caracteriza: a mundanidade, a total incompreensão dos segredos mais fundos da vida. Vem novo naufrágio, e todos deverão submeter-se uma vez mais à roda da vida e da morte, como quem nada entendeu da visita que recebera. Apenas uma criança, um “menino que viveu sozinho por anos nesta ilha”, restará como a imagem intocada pela prostituição do sagrado.
“Caravela da ilusão”, misturando cantigas folclóricas com cenários e figurinos arquetípicos, é um espetáculo necessário num país que anda corrompendo e degradando até a última gota o seu projeto de nação e a lenta construção de seus anseios mais profundamente humanos. Aliás, terá sido este o recado do VI Festival de Teatro Universitário de Patos de Minas, com sua mostra de 15 espetáculos competitivos e dois convidados internacionais: o de que os ideais humanos, ainda que aviltados pelo rebaixamento das verdades, podem superar a prostituição daquilo que, para muitos, ainda é sagrado.
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(*) Luís André Nepomuceno é doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, e professor de Literatura no Centro Universitário de Patos de Minas.