Ontem, durante lançamento de meu livro, eu leria um discurso. Na hora, eu o achei longo para a ocasião; acabei não o lendo. Ei-lo.
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Nos últimos dias, fiquei pensando sobre se eu faria ou não um discurso aqui, nesta noite. A princípio, minha intenção era agradecer às várias pessoas que me ajudaram. Só que, com o passar dos dias, senti a necessidade de não somente agradecer, mas também de dizer algumas outras palavras. Este primeiro parágrafo evidencia que a vontade de dizer mais palavras além dos agradecimentos prevaleceu.
Recentemente, tenho pensado no óbvio e em como lidamos com ele. Calar o óbvio é um modo de lidar com ele, mas não é esse o modo que tenho escolhido quanto ao que sinto, ao que penso, ao que me ocorre, às impressões que me visitam. A partir do momento em que decido não me calar, há algo sobre o que não posso deixar de refletir: na maioria das vezes, o problema não está no óbvio em si, mas no modo como o expressamos.
Existem óbvios que não enxergamos. Esse paradoxo precisa ser levado em conta, e penso que a literatura tem o potencial de se sair bem ao se deter no óbvio, seja nos fazendo enxergá-lo a partir de ângulo inédito, seja fazendo com que enxerguemos algo que é óbvio mas que não era percebido por nós. Todavia, minha intenção neste momento não é tentar fazer literatura. Quero dizer coisas óbvias, mas sem fazer com que soem como se eu estivesse com a intenção de soar como literato.
Sempre digo que somos maus leitores do outro. Há desvantagens em não sabermos ler o outro, pois isso, não raro, leva à incompreensão. Contudo, há também algumas vantagens em não sabermos compreender o outro em totalidade, mesmo ele se denunciando o tempo todo (todo mundo se denuncia o tempo todo). Afinal, seria constrangedor se o outro pudesse deduzir tudo o que somos, não importa o grau de convivência que esse outro tivesse com a gente.
Por um lado, houvesse alguém capaz de ler a plenitude do que somos, isso poderia gerar situações embaraçosas; por outro, é preciso que saibamos ler o outro quando não há obviedade nas ações dele. Uma pessoa que rega plantas diz muito de si; alguém que chuta um vira-lata desnutrido diz muito de si.
Essas questões acabam me levando a esta pergunta: o que alguém que se dedica a escrever diz de si? É claro que não posso dar uma resposta que valha para todas as pessoas que se dedicam à escrita. Vou oferecer uma resposta profundamente parcial e individual para o questionamento do que quero dizer ao me dedicar ao ato de escrever. Esse ato, por si, não precisa de justificativa nem de explicação, bem sei. A literatura não precisa se justificar nem se explicar. Ela precisa ser... escrita. O resto é com os leitores.
Mesmo assim, permitam-me algumas coisas que podem soar muito óbvias. Tenho consciência disso. Se as digo, não é por considerar vocês péssimos leitores do outro, que, neste momento, sou eu, mas por acreditar que o óbvio precisa ser dito. Eu o digo agora, em forma de discurso. Relevem se eu soar muito... óbvio.
Escrevo por acreditar na rebeldia. Escrevo por acreditar na beleza e na inteligência. Por acreditar que o espírito humano tem potencial para ser nobre. Não tenho ingenuidade; sei que somos capazes de atrocidades (a própria literatura mostra isso), que somos fracos, mesquinhos, mentirosos, preguiçosos, interesseiros, ingratos, bobos, maldosos. Em contrapartida, a literatura é uma possibilidade de acessarmos algo em nós que é elevado e bonito.
Escrevo por acreditar que o ser humano tem o dom de aprender, de melhorar, de se lapidar, de se redimir. Podemos seguir vida afora sendo os mesmos seres limitados de sempre, mas a profunda e dedicada convivência com a literatura, seja como leitor, seja como escritor, pode fazer nascer um denso e sólido senso de humanidade. Ao escrever, quero me humanizar, ao mesmo tempo em que, não nego, quero humanizar o outro.
Escrevo por acreditar no encontro. Distantes no tempo e no espaço, escritor e leitor realizam encontro por intermédio da palavra. Ninguém quer ir mulambento ao encontro do bem-querer. O escritor que leva a sério seu ofício se prepara para o leitor, embeleza-se para ele. As palavras de alguém que se entrega ao ato da escrita são o melhor que esse alguém pode oferecer ao outro, nesse encontro bonito entre escritor e leitor, a despeito do que o leitor possa pensar das palavras que lhe estão sendo ofertadas. Sim, escrever é uma oferta. Seria hipocrisia minha eu dizer que me é indiferente se o leitor está embelezado ou não para receber a oferenda.
Escrevo porque é preciso ter esperança, é preciso fugir da barbárie. Escrevo para tentar me disciplinar. Num rasgo de honestidade, é forçoso que eu diga: escrevo porque quero ser amado. Quero ser amado porque sei o que é amar as palavras de tantos que tenho lido durante minha vida. Sei de minha pretensão, mas avisei há pouco haver aqui um momento de honestidade.
Por fim, no que pode muito bem ser delírio quixotesco, escrevo na esperança de deixar um legado. Reconheço haver um quê de vaidade boba nesse desejo de haver algo meu entre vocês. Em contrapartida, asseguro que há algo maior nessa vontade. É que eu sou melhor diante da beleza. Se me sinto com alguma capacidade de produzi-la, não posso deixar de tentar melhorar supostos leitores. Não ao modo de quem oferta sabedoria ou conselhos, mas à maneira de quem, tocado pelo belo, quer que outros o sintam.
Muito obrigado.