terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Os bastidores de um texto

Sempre tive fascínio pela feitura das coisas. Por isso é que gosto tanto de conferir como filmes são rodados. Gosto de conhecer os bastidores de como as coisas são produzidas. Revelar como se faz o truque não tira o encanto da mágica. Algo similar vale para a literatura. É bom demais conferir fac-símiles com correções feitas pelos autores. É sempre revelador e instigante cotejar o rascunho com o original.

Eu sempre tive vontade de registrar toda a feitura de algum texto meu, desde quando a primeira letra é digitada; contudo, padeço de uma preguiça congênita, imensa e vergonhosa. Essa preguiça ou faz com que eu fique adiando as coisas ou com que eu nem as realize — o que é comum.

Ontem, escrevi um poema à mão, o que eu não fazia há muito tempo. Hoje em dia, ou escrevo o texto no bloco de notas do celular ou o digito no computador. O celular estava ao alcance das mãos, mas como havia um caderno e uma caneta à disposição, escrevi o poema usando uma caneta.

De antemão, costumo definir a temática. Parece meio óbvio, mas tenho de deixar bem claro para mim a temática do que ainda nem começou a ser escrito. No caso de ontem, a ideia era escrever um poema sobre o astral que há depois do amor feito. Ao começar a escrever o texto, escolhi o começo “o corpo, / há pouco lancinante, / descansa malemolente” (gosto do adjetivo “malemolente”, não somente pelo significado, mas também por achá-lo uma palavra gostosa de ser pronunciada).

Assim que terminei de escrever “malemolente”, ocorreu-me “sensação de amor cumprido”. Para não me esquecer do trecho, que acabaria não entrando na versão final, por eu achar que ele transmite a sensação de que o amor seria um dever, uma obrigação, eu o anotei à parte, linhas abaixo.

Terminado o verso “e no outro”, que também não entraria na versão final, por eu considerá-lo redundante, já que gozar para o outro pode implicar gozar no outro, tive vontade de reelaborar o trecho “o corpo, / há pouco lancinante, / descansa malemolente”. Em vez de mantê-lo na abertura do poema, eu o reescrevi no “meio” do texto. É claro que esse gozar no outro pode não valer no caso da masturbação, por exemplo, mas ainda assim, optei por não inserir o verso “e no outro” na versão definitiva. 

(Escrevi “versão definitiva”. Talvez seja válido lembrar que um texto poderia ser reescrito ou corrigido diversas vezes, até a ponto de ficar bem diferente do que era em seu esboço original. Todavia, nunca fui de modificar radicalmente os esboços que tenho. Não é exagero quando dizem que um texto nunca está terminado.)

A seguir, era minha intenção fazer referência ao nirvana. A princípio, escrevi “nirvanicamente”, que é a palavra sobre a qual há um rabisco, depois de “curtindo”. Só que o advérbio “nirvanicamente” rima com “malemolente”, o que não me agradou. Para fugir da rima, escolhi “íntimo do nirvana”.

Ao encerrar o rascunho, usei o trecho “sensação de amor cumprido”, que estava de molho, terminando assim uma versão preliminar do texto. Quando essa versão inicial é terminada, releio o que produzi. Caso essa releitura traga alguma insatisfação, tento consertar o já escrito. Se não consigo, eu geralmente deleto o trabalho. Na releitura, como o trecho “sensação de amor cumprido” não me agradou, pela razão já explicada, na hora de digitar o texto, eu o substituí pelo que está na versão definitiva.

Como escrevo textos curtos, esse meu trabalho de revisar e de corrigir é rápido, não demanda grandes esforços. Por fim, digo que minha caligrafia, embora nunca tenha sido das melhores, não é tão ruim quanto a que está no rascunho. As linhas foram rabiscadas enquanto eu estava em minha cama. Se o caderno estivesse sobre uma mesa, estando eu numa cadeira, a caligrafia estaria um pouco melhor.

Escrever é algo ligado a preferências, a idiossincrasias. Há deliberações, mas não se pode esquecer de que há muito de inconsciente na produção de um texto. Sempre encarei a produção literária como um ato, em sua conclusão, racional. Isso, vale lembrar, não significa dizer que eu não tenha ciência do papel do inconsciente, da intuição ou de quaisquer outras coisas não ligadas à razão. 

Só que de nada valeria a intuição, a imaginação ou o inconsciente por si mesmos. Razão e imaginação estão presentes no trabalho literário numa via de mão dupla, de modo que uma auxilia a outra, a ponto de ser difícil precisar o que é fruto da razão e o que é fruto da imaginação, o que, além do mais, seria inútil, seria fatiar o que deveria ser encarado como um todo, desde antes da feitura até o ponto em que o texto está pronto. 

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Inefável

Há instantes,
afeito a buscar 
os deslimites de si mesmo,
o corpo explodiu 
para si e
para o outro.

Há pouco, 
lancinante e selvagem;
agora, malemolente,
descansa,
curtindo, 
íntimo do nirvana,
o amor gozado. 

Causa mortis

Meu amor, 
não me seduz,
esse negócio de
morrer de amor.
O que vale mesmo a pena 
é morrer amando. 

Sobre fotografar animais silvestres

Eu já disse em outras ocasiões que o fotógrafo de natureza acaba se tornando uma espécie de etólogo amador (a etologia estuda o comportamento dos animais). Alguns exemplos: onde se avista um anu (não se importa se branco ou se preto), mais anus certamente estão na área, pois são aves gregárias, convivem em bandos; os tucanos têm hábitos mais ou menos definidos, o que quer dizer que se num dia são avistados em determinada hora e em determinado lugar, por certo serão avistados no mesmo lugar e na mesma hora no dia seguinte; a coruja-buraqueira pode ser facilmente achada em descampados; na região de Patos de Minas, tesourinhas podem ser avistadas em setembro...

Mas, é claro, há muito de imprevisível nessa história toda. Foram diversas as vezes em que saí para fotografar determinada espécie, mas acabei fotografando outra. Conhecer os hábitos dos animais ajuda muito, mas não garante os registros. Com relação à sorte, eu não saberia dizer até que ponto ela influencia a fotografia de animais ao ar livre. Seria inconsequente eu dizer que a sorte nunca interfere; todavia, asseguro que na maioria das vezes, uma foto que, para o leigo, parece questão de sorte, é, na verdade, fruto de centenas de cliques e de muita paciência, além de um olhar atento para a natureza. Quando se trata de registros profissionais de seres silvestres ao ar livre, não há sorte de principiante. Se houver sorte, é sorte de quem tem na bagagem milhares de cliques.

Registros profissionais não ocorrem sem paciência nem sem técnica. É preciso saber esperar. As horas de toda a manhã podem não propiciar foto alguma, mas quando volto para casa nem que seja com pelo menos uma boa foto, a saída fotográfica terá valido a pena. E mesmo que não haja sequer um registro satisfatório, o fotógrafo de animas silvestres sabe que esse tipo de fotografia quase nunca oferece condições de fazer registros em profusão. Por isso mesmo, quando a oportunidade surge, é preciso pensar e agir rápido, pois não se pode contar com a colaboração dos modelos. 

Por música


Passarinhedo



sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Regalo

Aceita este poema. 
Ele é teu porque graças a ti
cheguei a muitas palavras. 
Existiram porque existes.
Das coisas que me causas,
tu me causas textos.
Quando sou texto, sou.
Em nome das palavras 
que de ti vieram,
aceita este poema. 

Mais uma couve

Tunguska

O que vem do céu deixa marcas na pele.
Os corpos viajam no espaço.
Um dia se encontram.
Corpos de naturezas diferentes,
não sabem o que um causará no outro.
O que vem do espaço não sabe
o que nos causará.
Nossa casa voltará a ser atingida
(quase sempre é).
Se estivermos aqui,
poderemos não estar depois do impacto.
Olhamos para estrelas.
Não nos esqueçamos
de que do céu não recebemos 
nem bênçãos nem maldições. 

Doria, o mimado

Mimado pela grande mídia, Doria tem se mostrado uma contrafação, um showman populista e kitsch. Será um sucesso. 

Conto 90

No afã de transarem, Abigail e Lucas entraram correndo na casa dele. Mal acenderam a luz da sala, foram para o quarto, onde, a princípio, ficaram no escuro. Estavam loucos e prontos para estripulias. Foi quando Lucas perdeu por um segundo a noção espacial. Ao ajeitar o corpo, bateu a testa na afiada quina da cabeceira da cama. Proferiu imprecações, amaldiçoou deuses. O galo somente não ficou pior graças ao gelo que Abigail aplicou. Foi quando ela sentiu muita vontade de cuidar de Lucas. Quis abraçá-lo, fazer com que ele ficasse bem. Ao não fazer amor com Lucas pela primeira vez, Abigail começava a amá-lo. 

Campos de morango para sempre

“Viver é fácil com os olhos fechados” [Vivir es fácil con los ojos cerrados], de 2013, do diretor David Trueba (que também escreveu o roteiro), conta a história de um professor de inglês espanhol que parte em viagem para conhecer John Lennon, que, na trama do filme, estava como ator, na Espanha, participando de uma produção para o cinema. A película já cativa na primeira sequência, em que Antonio, o professor de inglês, interpretado por Javier Cámara, está debatendo com seus alunos a letra de “Help”, dos Beatles.

Em sua viagem para conhecer Lennon, Antonio dá carona para Belén (Natalia de Molina) e Juanjo (Francesc Colomer). A princípio, Antonio não sabe que eles, embora não se conhecessem antes de Antonio lhes oferecer carona, estão fugindo de suas famílias. Juanjo, por não mais aturar as arbitrariedades obtusas do pai; Belén, por estar grávida e querer esconder o fato da família.

A história se passa em 1966. Enquanto estão dentro do carro de Antonio, os três personagens vão se conhecendo. Quando chegam ao sítio de locação do filme de que John Lennon participa, Antonio, Belén e Juanjo já estão mais à vontade uns com os outros. Nesse ponto do enredo, enquanto ficamos nos perguntando se Antonio vai mesmo ter a oportunidade de se encontrar com Lennon, ao mesmo tempo vamos acompanhando as emoções que vão aflorando com a convivência dos três na pequena localidade que fica próxima ao local onde estão ocorrendo as filmagens da produção de que John Lennon participa.

“Viver é fácil com os olhos fechados” faz parte daquela linhagem de filmes sem grandes pretensões. Não tem a intenção de mudar o mundo nem de deixar uma grande mensagem, seja lá o que isso for. É um filme simples, um tributo à música (em especial a dos Beatles) e à amizade, sem deixar de roçar as agruras da adolescência. E em caso de conferir o filme, não deixe de assistir à cena final, que somente surge após os créditos. Atente-se também para os morangos, sejam os que são consumidos, sejam os que estão plantados. 

sábado, 21 de janeiro de 2017

Raduan Nassar na revista The New Yorker

A sempre imprescindível revista The New Yorker publicou em seu site matéria sobre Raduan Nassar, autor de “Lavoura arcaica”, “Um copo de cólera” e “Menina a caminho”. Quando se fala no escritor, é inevitável que se fale sobre as curtas e geniais obras-primas “Lavoura arcaica” e “Um copo de cólera”, bem como é inevitável que se fale da decisão de Nassar de não mais escrever.

A New Yorker não é exceção. Ao mesmo tempo em que Alejandro Chacoff, autor da matéria, elogia o texto denso e enxuto do escritor, o artigo joga luz sobre o que Nassar tem feito depois de abandonar a carreira literária — vem se dedicando a atividades agrárias, cuidando de fazenda que tem no interior de São Paulo.

A questão política também é abordada no texto da New Yorker. Mencionam o fato de Raduan Nassar ser contra o golpe de Temer e o fato de ele recentemente ter doado terreno para a Universidade de São Carlos. Esse episódio levou a uma rara aparição pública do escritor. A matéria da revista pode ser conferida neste link

Conto 89

Há dois anos, Jana estava se prometendo iniciar uma fase de leituras sobre filosofias do oriente. Enquanto seguia sem abrir página alguma, frequentava as aulas de Josué, que era dado a práticas que dizia serem orientais. Ele atraía vários pupilos. Jana, por sua vez, quase achou estranho ao ficar sabendo que seu guru era desonesto com os funcionários que tinha e que não dava a menor atenção para a mãe dele, que morava num asilo. 

Entrevista para livro sobre fotografia

Em 2015, os estudantes do então quinto período de letras do Unipam, sob a coordenação do professor Geovane Fernandes Caixeta, fizeram um projeto voltado para a fotografia. Dessa ideia, nasceu o livro “Patos de Minas retratada: seu espaço, seu povo, sua cultura”.

O livro contém entrevistas com fotógrafos locais. Camila Andrade, que na época era aluna do curso de letras, entrou em contato comigo para que eu fosse um dos entrevistados. Abaixo, o que respondi. As perguntas me haviam sido enviadas por e-mail. 
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1) Para você, qual é a importância da fotografia?

Penso, a princípio, numa importância individual, no sentido de o sujeito supor que tem o talento para fotografar — e, a partir daí, investir, seja em conhecimento, seja em equipamentos. Dito de outro modo: a fotografia pode ser a felicidade de uma pessoa. Contudo, há a importância social da fotografia, não importa a temática registrada. A fotografia é um outro modo de se contar uma história. Como possibilidade de registro histórico, ela, a fotografia, não vale nem mais nem menos do que outros registros, do que outras mídias. A fotografia é um jeito de contarmos que estivemos aqui e que fizemos algo. É um jeito de contar para o outro um pouco das complexidades do mundo.

2) O que não pode faltar em uma fotografia?

Não pode faltar (ou não deveria faltar) a vontade real de se ter uma boa fotografia, não importa o equipamento que se use. Com as facilidades tecnológicas e com as redes sociais, a fotografia se popularizou, o que é bom. Contudo, a fotografia é algo maior do que registros do que pessoas fizeram num fim de semana; ela é isso também, mas é mais. Nesse sentido, o que não pode faltar numa fotografia, reitero, é o desejo genuíno de se ter um bom registro. No caso de o fotógrafo ser profissional, a técnica ajuda na realização desse desejo.

3) Quais os requisitos para um ingressante se tornar um profissional reconhecido?

Eu não saberia dizer que requisitos são necessários para se tornar um profissional reconhecido. Há muita gente muito talentosa que não é reconhecida. À parte isso, eu poderia arriscar alguns requisitos para que a pessoa seja profissional: dedicação, estudo, teoria e prática; dito assim, parece fácil, mas a linguagem fotográfica é por demais plena de possibilidades. Vejo o fotógrafo profissional como alguém que domina a técnica, mas cujas fotos não são “frias”, destituídas de um elemento que pode ser chamado de espontâneo, de natural ou de algo similar.

4) Que momento(s) na vida de uma pessoa não pode(m) passar sem ser fotografado(s)?

Sem a menor intenção de querer soar exagerado, digo: todos os momentos da vida de uma pessoa mereceriam um registro fotográfico. Obviamente, é impossível haver isso na prática. Desse modo, cabe a cada um decidir o que merece ser fotografado. Não há uma “receita” universal sobre quais momentos não podem deixar de ser registrados.

5) Que fotografia ainda não fez e que gostaria de fazer?

Eu gostaria de fotografar uma mulher adulta, madura, produzida como se fosse receber o Prêmio Nobel. Só que o ambiente em que eu a fotografaria nada teria de sofisticado: eu gostaria de fazer os registros nos bares dos bairros da cidade — de preferência aqueles bares que têm mesa de sinuca e garrafas de pinga na prateleira de madeira.

6) Que tipo de fotografia desafia um profissional?

Novamente, penso não haver uma resposta universal. Penso haver dois tipos de desafio quando o assunto é fotografia: um deles é a foto que ainda não foi feita, mas que o fotógrafo suspeita de que conseguiria fazer; o outro é fotografar algo que fuja da temática geralmente feita pelo profissional. Em meu caso, fotografar animais selvagens nas savanas da África seria o primeiro tipo de desafio; já fotografar modelos em estúdio pertenceria ao segundo tipo.

7) Como você vê a influência da tecnologia na área da fotografia?

Não é raro escutar que a tecnologia, em especial o celular, teria banalizado a fotografia. O que às vezes chamam de banalização, prefiro, sem eufemismo, chamar de popularização. Não encaro a popularização da fotografia como algo ruim. O sujeito que leva a fotografia a sério, se tem em mãos, digamos, um celular qualquer, ainda assim tentará fazer o melhor registro, caprichando, por exemplo, na composição. E se o sujeito tem um equipamento digital que tenha recursos, é preciso lembrar que a essência da fotografia não mudou. Dito de outro modo: as técnicas relativas à abertura e à velocidade são as mesmas desde sempre. A tecnologia influencia ao facilitar, ao tornar mais prático, mas ela, em si, não substitui o talento.

8) Qual a sua opinião sobre fotografia em Patos de Minas?

Levando-se em conta o tamanho da cidade, que é pequena, há um belo número de excelentes fotógrafos, dos quais alguns são jovens. Isso é ótimo. Além do mais, há muita gente que não vive da fotografia mas que tem feito excelentes trabalhos.

9) Você gosta de se fotografar e de ser fotografado?

Não gosto de me fotografar, não gosto de ser fotografado. Sou feio para essas coisas.

10) Conte uma história que o marcou relacionada a uma de suas fotografias.

São várias; muitas delas estão em meu blogue. Neste momento, lembrei-me de uma foto que tirei certa vez de um porco-espinho; a rigor, pude tirar várias fotos dele. Os registros foram feitos no Bairro Copacabana, aqui em Patos de Minas. Na época, houve uma enchente, não sei se do Rio Paranaíba ou se de um córrego que há nas proximidades do Copacabana. O que importa é que, devido à enchente, animais que ficavam mais afastados da cidade acabaram sendo trazidos para perto da área urbana. Estando de moto, reparando no ambiente, olhei para uma árvore e pensei avistar um ninho ou algo assim; chegando mais perto, dei-me conta de que se tratava de um porco-espinho. Enquanto eu o fotograva, fui abordado por uma patrulha da Polícia Militar. Quando desceram, ameaçaram-me; quando perceberam que eu estava fotografando, acalmaram-se — de longe, haviam pensado que minha câmera, com uma longa lente nela acoplada, fosse uma arma; de longe, supuseram que eu estava atirando no porco-espinho. 

Apontamento 360

Não basta queimar incenso para ser místico. 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Apontamento 359

Há belezas que são óbvias. Mesmo assim, folhas no chão ou uma cachoeira têm a mesma importância para as artes plásticas; a vida de um vendedor de pipoca se presta à literatura tanto quanto a de um presidente de alguma república. Não há hierarquias na arte, não há um assunto melhor do que o outro, não há uma temática superior à outra. Tanto a bondade quanto a maldade podem ser materiais para o artista. Não há desimportâncias para a arte. 

Matemática de nós

Eu + você = nós.
Nó + nó = nós.

Que o segundo verso se desate. 
Que sejamos o primeiro verso. 

O peregrino

O destino: Romaria.
A pé, a fé. 

Jogo de palavras

Sempre quis fazer
um trocadilho decente 
com a palavra "deleite".
Não tendo conseguido,
eu a tomei com café. 

Despertar

Estou bem.
Não há 
nova leitura,
nova canção,
nova comida,
nova amizade.

Há um novo dia.
Bem assim. 

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Processo

Não há mecanismo 
lógico nem industrial 
para se chegar à poesia.
Não sei se há engrenagem 
para que ela se achegue.
Mas sei de muita coisa
que a faz ir embora. 

A cabeça de um neurocirurgião

Relatos médicos, quando não técnicos demais, sempre me interessaram. Que eu me lembre, o primeiro livro que li supostamente escrito por um médico foi o “Confissões de um ginecologista”, que consegui, na década de 80, numa biblioteca pública local. Uma pesquisa rápida na internet me revela que o livro é de 1972; foi publicado, sem o nome do autor na capa, pela Record.

Sempre interessado na questão médica, e em especial na relação médico-paciente, acabei chegando aos livros do Oliver Sacks (1933-2015), os quais sempre recomendo com entusiasmo. Também já escrevi alguns textos sobre a falta de humanidade de alguns médicos, que tratam os pacientes como se fossem somente números.

Seguindo meu interesse nessa área, terminei de ler “Sem causar mal” [Do no harm], do neurocirurgião inglês Henry Marsh. A tradução é de Ivar Panazzolo Júnior; o livro foi publicado pela nVersos. Num estilo direto, sem delongas, Marsh narra casos com que teve de lidar como médico.

É espantosa a coragem com que o autor conta os fracassos que teve ao longo de sua profissão. Não nos esqueçamos de que fracassar, no caso de um neurocirurgião, pode implicar danos sérios para o resto da vida de um paciente. Há erros retumbantes. Num deles, o caso de um paciente que ficou em estado vegetativo depois de ter sido submetido a uma cirurgia realizada por Marsh.

Como todo grande livro, terminada a leitura, o que há um retrato multiforme e difícil da condição humana. Um médico se desnuda, confessa seus erros; o que surge é a complexidade que é essa coisa de ser gente. Os relatos são secos, duros. Marsh não pede ao leitor que tenha comiseração dele nem se vale de autopiedade. Ele conta os casos.

Não bastasse, relata os problemas pelos quais passou nas vezes em que foi paciente e quando teve de assistir à morte da mãe, a qual não resistiu a um câncer que teve. Sem se meter a análises transcendentais acerca da condição humana, o livro, nem por isso, deixa de apresentar o quanto ser gente é complicado. E ser gente quando se está doente, mais ainda. Este é um dos pontos altos da obra: sem cogitar teorias sobre o pós-morte, leva-nos a uma reflexão sobre o que é viver, sem conclusões definitivas e sem receitas fáceis.

Enquanto acompanhamos as ruminações feitas pelo médico, não raro enquanto ele está pedalando sua bicicleta, meio de que muito se vale ao ir para o trabalho, realizamos nós a reflexão do que estamos fazendo de nossas vidas e do que é nosso cérebro. Ao mesmo tempo, Marsh não deixa de apresentar a funesta burocracia de sempre, que contaminou também o sistema de saúde.

O livro é um monumento. A sinceridade com que Henry Marsh narra seus fracassos é espantosa. Não há eufemismos, não há delongas, o que ainda faz com que “Sem causar mal” seja uma aula de estilística, ao contar, indo direto ao ponto, sem truques manjados, a difícil tarefa de ser um neurocirurgião. Mesmo não sendo intenção dele, o livro é uma aula de como narrar. “Sem causar mal”, embora trate muito de morte ou de pesadas sequelas de que ficaram padecendo vários dos pacientes do autor, é sobre a força da vida. 

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Antirrugas

Havia lido que
rir demais causa rugas.
Desde então, 
vestiu seriedade forjada.
A pele ficou lisinha, lisinha,
mas sem graça. 

Polímata

Das 7h às 17h,
emprego burocrático.
Ninguém sabe que
ele começa a viver é 
depois que sai do trabalho.
Em casa, pode estar
pintando um quadro, 
revolucionando a física 
ou compondo uma canção. 

Pensamento

Enquanto estiveres passando batom, 
estarei pensando em ti.
O mesmo enquanto estiveres
no horizonte.

Estarei pensando em ti
no desembarque e enquanto
estiveres acima das nuvens.

Estarei pensando em ti
enquanto estiveres descansando
e enquanto estiveres na academia.

Enquanto sonhas,
estarei pensando em ti.
Enquanto lês este texto,
não importa se 
pela vez primeira
ou se pela terceira vez,
estarei pensando em ti.

Enquanto 
brincas com um cão,
preparas uma salada,
escreves um poema,
tiras um cochilo,
diriges teu carro,
atravessas as ruas,
apanhas a caneta no chão,
sonhas em vão,
devaneias em sim,
vais ao açougue,
tomas café,
estarei pensando em ti.

O sonho que tenho contigo
é meu jeito de pensar em ti
enquanto durmo.
Somente não estaria
pensando em ti 
se houvesse como
não pensar em ti. 

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Tenho algo em comum com Mick Jagger!

A editora Abril, depois de, por intermédio da Veja, apontar Marcela Temer como a salvadora da combalida popularidade de Temer, mais uma vez, dá provas de que seu não jornalismo somente não é risível porque é cruel, perverso. Desta vez, não foi a Veja, mas a Exame.

A mais recente edição da revista tem Mick Jagger na capa. Acima da manchete, tem-se: “A nova aposentadoria”. A manchete: “O que você e ele têm em comum”. O pronome “ele” se refere a Mick Jagger. Abaixo da manchete: “Talvez não seja a fortuna, nem o rebolado, nem os oito filhos. Mas, assim como Mick Jagger, você terá de trabalhar velhice adentro. A boa notícia: preparando-se para isso, vai ser ótimo”.

Mick Jagger, de acordo com a lei britânica, tem, desde 2008, direito a uma aposentadoria do governo. O texto da cínica capa diz que “assim como Mick Jagger, você terá de trabalhar velhice adentro”. Dizem que Jagger tem de trabalhar. Não tem. Trabalha porque quer. Ele tem a opção de não trabalhar.

Mas a revista nos compara a Mick Jagger. O que teríamos em comum com ele? Tanto nós quanto ele teremos de trabalhar na velhice. É assim: eu terei de trabalhar quando ficar velho. Mick Jagger é velho e tem, segundo a Exame, de trabalhar. Logo, se eu ficar velho e estiver trabalhando, terei algo em comum com Mick Jagger, que é justamente estar trabalhando.

Desse modo, caso eu chegue a ter no futuro a idade que Jagger tem hoje, e caso eu esteja trabalhando, poderei dizer: “Uau, pessoas, eu sou mesmo incrível, pois tenho algo em comum com o Mick Jagger. Tenho hoje a idade que ele tinha em janeiro de 2017, e estou trabalhando”.

Esse é um ponto em comum irrelevante, superficial. De modo análogo é como se eu dissesse: “Eu, Lívio, vesti roupa toda branca um dia desses; vi uma foto em que o Gabriel García Márquez usava uma roupa toda branca. Logo, tenho algo em comum com García Márquez”.

A desfaçatez da publicação se completa com o uso do adjetivo “ótimo” ao defender as regras de aposentadoria do atual governo. Só faltou inserirem na capa o verso da canção do Maroon 5: “I’ve got the moves like Jagger”. I don’t have such moves. 

Geometria

Engano

O que faz lembrar o amor
pode ser engano.
Se engano é, amor não é.
Nossa história
se parece com 
uma de amor.
Fomos longe
em nome
do que não é, 
do que nunca foi.
Não faltou
desejo de história,
de amor.
Onde faltou
amor de verdade,
sobrou engano verdadeiro. 

Sob o signo do espanto

Meus amigos sabem do amor que tenho por Wisława Szymborska (1923-2012), poeta da Polônia. Minha convivência com ela se iniciou quando li uma versão em inglês do poema “Vietnã”. Abaixo, tradução dele feita por Regina Przybycien:

Mulher, como você se chama? — Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? — Não sei.
Para que cavou uma toca na terra? — Não sei.
Desde quando está aqui escondida? — Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? — Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? — Não sei.
De que lado você está? — Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. — Não sei.
Tua aldeia ainda existe? — Não sei.
Esses são teus filhos? — São. (1)

Diante de texto tão poderoso, só me restava ir atrás de tudo o que eu achasse da autora, o que passei a fazer. Nessa época, ela ainda não havia sido publicada no Brasil. A solução foi procurar edições em inglês. Li “Sounds, Feelings, Thoughts”, uma coletânea. Posteriormente, a Companhia das Letras publicaria “Poemas”, também coletânea; recentemente, a mesma editora lançou “Um amor feliz”, outra coletânea de Szymborska. Foi o livro que recebi ontem. (A tradução dos dois livros de Szymborska publicados pela Companhia das Letras é de Regina Przybycien.)

Terminei a leitura de “Um amor feliz” há pouco. Nos textos, a delicadeza, a inteligência, o humor, a metafísica, o espanto. Aliás, o espanto é moeda corrente dentre os poetas quando falam de poesia. Esse espanto é um maravilhamento diante do mundo, um estranhamento quanto ao que somos e ao que nos rodeia, um olhar que descortina riquezas escondidas atrás de lugares-comuns, uma atitude não saturada pelo cotidiano.

O último texto de “Um amor feliz” é o discurso proferido por Wisława Szymborska durante cerimônia na qual recebeu o Nobel, em 1996. Diz a autora: 

“O que quer que ainda pensemos sobre este mundo — ele é espantoso (...). Na linguagem da poesia, na qual se pesa cada palavra, nada é comum ou normal. Nenhuma pedra e sobre ela nenhuma nuvem. Nenhum dia e depois dele nenhuma noite. E acima de tudo nenhuma existência do que quer que seja neste mundo.

“Pelo visto os poetas sempre vão ter muito que fazer” (2).

A partir desse espanto, a poeta construiu uma poesia espirituosa, cheia de engenho. No poema “Desatenção”, tem-se: “Ontem me comportei mal no universo. / Vivi o dia inteiro sem indagar nada, / sem estranhar nada” (3). Das delicadezas do cotidiano (há poema sobre seres que só podem ser enxergados graças a microscópios) aos grandes eventos históricos (há poema a partir de uma fotografia tirada no 11 de Setembro), Szymborska nos delicia com a força da ternura, a perspicácia do humor fino e a argúcia de uma poderosa inteligência.
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(1) SZYMBORSKA, Wisława. Poemas. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien. São Paulo. Companhia das Letras. 2011. Pág. 39.
(2) SZYMBORSKA, Wisława. Um amor feliz. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien. 1ª ed. São Paulo. Companhia das Letras. 2016. Pág. 327.
(3) Idem. Pág. 255. 

domingo, 8 de janeiro de 2017

Apontamento 358

A não ser que o outro nos conte, não sabemos o que podemos involuntariamente ensinar. 

Capacidade

A ciência me diz haver muita coisa bela por aí 
que meus olhos não conseguem enxergar,
que meus ouvidos não conseguem escutar,
que minhas mãos não conseguem reter.
É claro que habitam meus devaneios,
enchem de fogo minha imaginação.
Meu corpo humano me impõe limites.
Enquanto isso, namoro belezas acessíveis.
Eu te olho, eu te escuto, eu te toco. 

Folharada

Acabamento

Este mundo doido está acabando.
Nós não estamos juntos.
Chega de perder tempo.
Vem, fica, vai ficando
até o dia em que o mundo acabar.
Se ele não acabar,
a gente se acaba
de tanto amor. 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

É logo ali

Recentemente, divulguei notícia que dá conta do seguinte: segundo estimativa científica, há dois trilhões de galáxias. O número é exorbitante demais. Mas isso não é tudo. Hoje, li matéria sobre as chamadas Rajadas Rápidas de Rádio. Segundo o El País Brasil, essas rajadas, em frações de segundo, liberam tanta energia quanto o Sol em vários. Até aí, tudo bem. Detectaram a origem de uma delas. Ela está a três bilhões de anos-luz da Terra. Na prática, é o seguinte: para se chegar à origem do sinal captado aqui na Terra, teríamos de viajar, à velocidade da luz (que é de 299.792.458 metros por segundo) durante três bilhões de anos. Não consigo não ter assombro. 

A história por trás da foto (100)

Ontem à tarde, choveu em Lagoa Formosa. Chuva de verão, chuva rápida. Antes de chover, ventou. Enquanto isso, peguei a câmera na tentativa de registrar o movimento das folhas das árvores sendo levadas pela ventania, dando, assim, a ideia de movimento. Essa é uma das fotos.
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F/22.0
1/6
ISO 100
Eram 16h29 

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Silêncio vermelho

É que meu coração segue o mesmo.
Quer te dizer o que comi no almoço, 
o poema que li ontem pela manhã, 
a canção que escutei no fim do dia.

Eu tirei foto do horizonte: não a viste.
Tomei um vinho: nós não brindamos.
Estou pensando em visitar a África:
queria te contar, mas não em verso.

Artérias carregam silêncio pesado,
veias transportam mudez artificial.
Corre pelo corpo o que não se diz.
Tudo o que calo grita para dentro. 

Haicai da varredura (2)

A vassoura serve tal corpete.
Nem por isso vai Doria tirar
a sujeira de sob o carpete. 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Haicai da varredura

Enquanto Doria posa de gari,
embaixo do tapete, a sujeira,
não importa se lá, acolá ou aqui. 

Apontamento 357

Chegar às grandes ações juntando pequenas. 

Apontamento 356

O grande escritor sempre ensina, seja sobre a vida seja sobre o ato de escrever. Com frequência, ensina sobre os dois. Com o escritor ruim, no que diz respeito à escrita, aprende-se o que não se deve fazer. 

Alice

Nesta foto, estou com a Alice, que é filha dos amigos Dell Luiz e Maysa. Eu os visitei ontem. A Alice tem uma irmã gêmea, a Júlia. A vontade era de pegar as duas, mas isso requer preparo. Numa próxima, eu me arrisco.