De algum tempo para cá, a redução da maioridade penal de dezoito para dezesseis anos (Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93) entrou na pauta das discussões. É mais um dos temas delicados que têm habitado o debate político no Brasil, em função da violência que envolve o adolescente, seja essa violência cometida por ele, seja ele a ser a vítima em um contexto violento.
Não é raro os defensores da redução da maioridade penal se valerem do seguinte argumento: “E se um menor com dezesseis anos matar sua mãe? Você acha justo que ele continue livre?”. O questionamento apela para a emoção, tem cara de infalibilidade. No entanto, parte do pressuposto de que a violência sempre virá do outro, de que ela nunca virá de um dos nossos.
Eu poderia perguntar, dentre outras coisas o seguinte: “E se seu filho menor matasse alguém?”. Não faria sentido descartar a possibilidade de que um dos nossos pode ser violento. Não tenho filhos, mas não faria sentido, caso tivesse, eu afirmar que um filho meu jamais seria capaz de matar alguém. Afirmar isso é argumento que apela para a emoção, bem como é apelar para a emoção perguntar o que eu faria se um menor matasse algum ente meu.
Obviamente, se há a proposta de se reduzir a maioridade penal, leva-se em conta que o adolescente, nesse caso, não é a vítima, mas, sim, aquele que a perpetra. Sentindo-se insegura e acuada, a sociedade reage, propondo que o jovem que tenha dezesseis ou dezessete anos passe a responder, como maior de idade, pelos delitos que vier a praticar.
Entidades sociais e de direitos humanos já se posicionaram contra a redução da maioridade penal. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) se disseram contra a redução. O Unicef argumenta que ela fere o que está posto no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Dada a violência que assusta a população, a proteção a que tem direito os jovens de até dezessete anos é vista por uma grande parcela da sociedade como conivência do Estado diante da violência que pode vir a ser causada pelos adolescentes. A redução da maioridade penal, ainda que tenha de passar por trâmites legais, é a solução mais fácil para se enfrentar o problema. Nem toda solução fácil é necessariamente ilusória, mas é preciso ter desconfiança quanto às soluções fáceis.
Suponho que aqueles que advogam a redução da maioridade penal não creem que isso resolveria o problema da violência no Brasil. Penso que acreditam que isso diminuiria essa violência. Todavia, é preciso ter em mente os pressupostos que sustentariam a redução. Dependendo de quais sejam esses pressupostos, ter-se-á um paliativo, não uma proposta sólida, que leve em conta o longo prazo.
Um dos modos de se defender a redução da maioridade penal é considerar o indivíduo em si, como que apartado do meio em que ele está inserido. Nessa ótica, levar-se-ia em conta o suposto caráter do delinquente, deixando de lado o quadro social que o gerou. Numa análise assim, o sujeito é mau por não ter caráter, por não prestar, por não ter compaixão; exclusivamente sobre tal indivíduo recairia a responsabilidade pelas contravenções que ele praticou ou pratica.
Vítimas da violência praticada por adolescentes argumentam que é contra a redução da maioridade penal aquele que nunca foi vítima de tal violência. Nesse caso, o argumento é novamente de ordem pessoal: “Sou a favor da redução porque fui vítima. Você defende bandido por nunca terem apontado uma arma em sua cabeça”.
Embora ninguém nunca tenha apontado uma arma em minha cabeça, isso não quer dizer que eu não seja, diariamente, vítima da violência. Sou do tipo noturno. Sempre que estou chegando em casa, de madrugada, fico apreensivo no momento em que tenho de abrir o portão. Se estou nas proximidades de onde moro e percebo que há gente por perto, procuro adiar o momento de abrir o portão, dando mais algumas voltas pelas ruas — o que é, devido à hora avançada, também perigoso. Mesmo durante o dia, não deixo o portão aberto em momento algum. Tenho plena consciência do que é viver numa sociedade violenta, sei o que é sentir-se desprotegido.
À parte o que penso sobre a redução da maioridade penal, sou cidadão; como tal, sou vítima da violência. Em minha família, sabemos bem da truculência que pode acometer qualquer um. Tenho um irmão que hoje é paraplégico por ter levado um tiro, depois de uma discussão no trânsito, aqui em Patos de Minas. Dois sujeitos o perseguiram numa moto (meu irmão também estava de moto). Quando chegaram perto dele, deram dois tiros; um dos disparos acertou a medula.
Como os dois que foram atrás de meu irmão nunca foram identificados nem capturados, não há como saber se eram menores; se tomo a liberdade de contar esse episódio, é para ilustrar que sei do que a violência é capaz. Perguntei a meu irmão; ele me disse ser contra a redução da maioridade penal.
Segundos dados publicados pelo Pragmatismo Político, “dos 21 milhões de adolescentes brasileiros, apenas 0,013% cometeu atos contra a vida. Na verdade, são eles, os adolescentes, que estão sendo assassinados sistematicamente. O Brasil é o segundo país no mundo em número absoluto de homicídios de adolescentes, atrás da Nigéria. Hoje, os homicídios já representam 36,5% das causas de morte, por fatores externos, de adolescentes no País” [1].
Os números acima revelam que a minoria dos adolescentes são infratores. Todavia, as propostas de redução da maioridade penal levam em conta essa minoria. Um debate tão importante não pode ser pautado pela exceção, mas, sim, levar em conta o contexto que produz a violência. Exatamente por isso o debate não é fácil; exatamente por isso ele dever ser realizado.
O Estado não pode se furtar à obrigação de investir na educação, na inserção, na inclusão. Investir na educação não é o mesmo que relegar a segundo plano a punição contra os delitos. Ainda que se alegue que a redução da maioridade penal tenha sido adotada em outros países (e ela foi), a prática não teve como consequência a diminuição da criminalidade nos cinquenta e quatro países em que houve a redução, ainda de acordo com o Pragmatismo Político (ver nota 1). Ainda em consonância com o sítio pesquisado, Alemanha e Espanha voltaram atrás na decisão quanto à redução da maioridade.
Não professo nenhuma religião; independentemente disso, declaração da Pastoral da Juventude, organização ligada à igreja católica, cavouca uma ferida: “Mesmo com a diversidade étnica e social da população brasileira, as pessoas submetidas ao sistema prisional têm quase sempre a mesma cor e provêm da mesma classe social e territórios geográficos historicamente deixados às margens do processo do desenvolvimento brasileiro: são pessoas jovens, pobres, periféricas e negras” [2].
É preciso ainda dizer que há a ideia de se lucrar com a redução da maioridade penal. Ariel de Castro Alves, em entrevista para o Le Monde Diplomatique Brasil deste mês de julho, comenta: “Por trás do movimento pela redução da idade penal temos muitos parlamentares ligados às empresas de segurança privada ou às indústrias de armamentos. Muitos dos que trabalham nessas empresas de segurança privada são policiais; na verdade, são agentes da segurança pública que investem na insegurança pública para vender seus serviços particulares de segurança privada. Essas empresas querem pegar o filão dos presídios a serem privatizados. Para elas, quanto mais insegurança pública e mais presos, maiores os lucros!” [3].
A sociedade brasileira segrega, o que só aumenta a complexidade do debate que envolve a redução da maioridade penal. Qualquer solução para o problema da violência não pode deixar de levar em conta que parte dessa violência surge precisamente por causa da segregação. Penso que nenhum cidadão defenderia bandidos (a não ser que ele seja um). É claro que sou a favor de punições. Todavia, a violência é multifacetada e tem inúmeras causas. O debate que temos pela frente é longo, a tarefa é difícil. Nem por isso deveria deixar de ser realizada.
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[1] http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/03/jovens-negros-e-pobres-as-principais-vitimas-da-reducao-da-maioridade-penal.html. Acesso em 28/03/2015.
[2] Idem.
[3] Le Monde Diplomatique Brasil, edição de julho de 2015, página 8.
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