A contextualização é algo que me instiga. Em meu caso isso equivale a dizer que tirar do contexto também me atrai. Na década de 1980, a Martin Claret publicou a coleção “O pensamento vivo”. Eu me lembrei, hoje pela manhã, do volume dedicado ao Jorge Luis Borges.
Na diagramação que faziam, havia máximas destacadas em algumas das páginas. No volume da coleção dedicado ao argentino, havia a seguinte: “Minha sepultura será o ar insondável”. Era algo que eu gostava de ler pela sonoridade (ainda que se trate de uma tradução), pela sensação que as palavras despertavam. Era um prazer que não passava por processos analíticos.
Em meus catorze ou quinze anos, eu achava a frase bonita, sonora; ainda acho. Eu não me preocupava em entendê-la; ainda não me preocupo. Bastavam-me os sons, a beleza etérea do que a frase me passava; compreender não era necessário. Mesmo hoje, existe essa não preocupação em analisar o trecho.
Anos depois, lendo a obra de Borges, eu me deparo com “minha sepultura será o ar insondável”. O trecho está no conto “A biblioteca de Babel”, do livro “Ficções”. Retiro o trecho de seu contexto e o cito abaixo, valendo-me de parte do parágrafo em que ele está. A tradução é de Carlos Nejar; a revisão da tradução, de Maria Carolina de Araujo:
“Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, talvez do catálogo de catálogos; agora que meus olhos quase não podem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer, a poucas léguas do hexágono em que nasci. Morto, não faltarão mãos piedosas que me joguem pela balaustrada; minha sepultura será o ar insondável; meu corpo cairá demoradamente e se corromperá e dissolverá no vento gerado pela queda, que é infinita”.
Quando lia o “minha sepultura será o ar insondável” na edição da Marin Claret, eu pensava se tratar de um ensaio ou de um apontamento. Trata-se de ficção, de um conto; logo, há um narrador, que pode, ou não, concordar com Borges. Eu atribuía o trecho ao pensamento do poeta e contista, não ao pensamento de um narrador, mesmo ciente, é claro, de que o trecho pode ser um pensamento do Borges enunciado por um narrador inventado pelo contista.
Ter descoberto que o trecho é de um conto, de um narrador, e não de um apontamento ou de um ensaio, fez com que a citação se tornasse ainda mais magnética. No livro da Martin Claret, o trecho não estava no contexto original; saber que ele vem de uma ficção, e não de um texto referencial, torna atraente a decisão de atribuir ao Borges um enunciado que é de um de seus narradores.
Tiro do contexto mais um trecho borgiano, do conto “O jardim de veredas que se bifurcam”, também do livro “Ficções”. O trecho, retirado de seu contexto, passaria por opinião de articulista de algum jornal; tradutor e revisora são os profissionais mencionados acima: “Prevejo que o homem se resignará a cada dia a tarefas mais atrozes; breve só haverá guerreiros e bandidos”.
Saber do contexto pode fazer com que algo seja empobrecido ou enriquecido. Salvo engano foi durante o conflito em Kosovo (sinto que já contei essa história em algum outro texto; mas não estou certo disso): um superior disse a um soldado: “Deixa pra lá”. O soldado, momentos antes, encostando uma arma na cabeça de um prisioneiro, perguntara algo assim: “Posso atirar, comandante?”.
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