segunda-feira, 14 de março de 2011

A DURAS PENAS

Havia na floresta dona Centopeia, que fazia o maior sucesso entre os bichos porque sabia dançar muito bem. Todos ficavam impressionados com a habilidade que ela tinha ao conferir graciosidade às suas cem pernas quando dançava. Enquanto dona Centopeia se deixava conduzir com leveza pela música, muitos bípedes e quadrúpedes eram duros e desengonçados.

Certo dia, um dos animas (dizem por aí que, no fundo, foi para sacanear a exímia dançarina), perguntou para a dona Centopeia:

 – Como a senhora faz para dançar tão bem, mesmo tendo cem pernas para coordenar? Como a senhora consegue?  Primeiro a senhora move a septuagésima sexta e depois a trigésima oitava? Ou a senhora mexe primeiro a vigésima terceira, para, em seguida, mover a nonagésima nona? Tenho muita curiosidade... Que ordem a senhora segue?

Dona Centopeia, que também era encantadora quando falava, respondeu:

– Meu caro senhor Macaco, nunca prestei atenção... É... Nunca reparei... Mas façamos o seguinte: na próxima vez em que eu for dançar, vou prestar atenção. Depois, digo para o senhor como faço. Mas acho que não sigo uma ordem definida. De qualquer modo, a gente volta a falar sobre isso.

Chegado o dia do baile, todos estavam muito curiosos para saber como funcionavam os mecanismos da dança em meio àquela profusão de pernas. A música, então, inicia-se. Todo mundo olha para dona Centopeia, que tem o cenho concentrado.

Segundos vão se passando e ela está olhando para suas pernas. Nunca havia reparado em como os movimentos eram executados. O relógio prossegue. Ela permanece estática, enquanto o olhar de boa parte da bicharada é estarrecido. A música prossegue. Quase um minuto já se foi. O silêncio constrange, pesa. Há alguns cuja expressão parece dizer “dança, dona Centopeia, dança”. Outros parecem transmitir indiferença. No meio da plateia, um chega bem pertinho do ouvido de outro e cochicha: “Bem feito”.

Dona Centopeia tem a cabeça baixa. Não sabe o que fazer, não sabe dar o primeiro passo. Está acorrentada.

Ela jamais voltaria a dançar.
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Sempre gostei da historieta acima. Não sei mais quem ma contou. Ela tem uma relação especular com “Cisne negro” (Black swan, EUA, 2010). Nina (Natalie Portman) se preocupa demais com a técnica, a ponto de não se soltar, não se libertar. Devido ao excesso de técnica e à sua vida atribulada, ela não consegue ser em totalidade a dançarina que efetivamente é.

Temática muito instigante, bem conduzida pelo diretor Darren Aronofsky.

2 comentários:

Gabriela Maria disse...

O filme é maravilhoso. Como realidade quase metafórica, ele consegue traduzir tanta coisa, que me fez chorar por dias seguidos. Identifico-me muito com a dona centopéia e com a Nina, em quase todos os aspectos. Cisne Livre é o nome do meu post a respeito, se você quiser ler.

Abraços.

Gabi.

Lívio Soares de Medeiros disse...

Valeu pelo comentário, Gabriela.