segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Cozinhei feijão pela primeira vez

As pessoas com talento para cozinhar dizem com frequência que cozinhar não tem segredo. No rigor da expressão, não tem mesmo, pois nada tem segredo. Há algumas coisas que não sabemos decifrar, mas isso não significa que são absolutamente indecifráveis. Podem ser indecifráveis para nós, podem ser indecifráveis por enquanto. 

Quando os talentosos dizem que cozinhar não tem segredo, querem dizer, com boa intenção, que cozinhar é fácil, que bastariam alguns macetes e truques para que a alquimia de produzir sabor  e alimento seja alcançada. Em tese, desde que não haja nível de exigência nem mediano, qualquer um pode cozinhar. No meu caso, cozinhar significa não produzir sabor, significa não ter a capacidade de dar aos alimentos a condição que eu desejar.

O Nivaldo, um dos meus irmãos, que infelizmente morreu em 2019, era um grande cozinheiro. Transitava bem na comida tradicional, era capaz de reinventá-la e era capaz de criar pratos, de recriar receitas. Não é o meu caso. Só comecei a fazer algumas gororobas para mim com o advento das panelas que podem ser ligadas na tomada. Nelas, insiro arroz (com ou sem legumes) e carne. Também aprendi a refogar vagem, o que faço nos dias em que não estou com preguiça. Como geralmente estou, na maioria das vezes, a vagem vai para a mesma panela do arroz.

Gosto demais do feijão quando ele acabou de ficar pronto. Com uma colher furada, é bom demais pegá-lo feito na hora, jogá-lo sobre o arroz, temperar o feijão com sal e, sobre eles, jogar um ovo com a gema mole. O problema é que não tenho as manhas para fritar ovo. Hoje, pela primeira vez, cozinhei feijão.

Não foi fácil tomar essa decisão. Sempre ouvi dizer que é preciso cuidado ao lidar com panelas de pressão. Ora, se pessoas experientes dizem isso, eu, que não sei nada sobre cozinhar, ficava muito temeroso de explodir a panela, o telhado, a casa. Depois de décadas criando coragem e depois de conversar com algumas pessoas, hoje, pela vez primeira, cozinhei feijão.

A primeira dificuldade foi colocar a tampa na panela. De jeito nenhum aquela se encaixava nesta. Custou-me deixá-las em sintonia. Mesmo assim, foi um encaixe que não me convenceu. Todavia, melhor eu não consegui. Liguei a chama do fogão e comecei a torcer — de longe, sempre no temor de a panela explodir a Via Láctea. O tempo foi passando e nada de a panela começar a fazer aquele chiado típico.

Comecei a ficar muito preocupado. Além do mais, em dois pontos da panela, borbulhas começaram a escapar pela tampa, em que há a inscrição “3 sistemas de segurança”. Esses dizeres, em vez de me acalmarem, mais alarmados me deixaram, pois se não houvesse um grande perigo, não haveria três sistemas de segurança. Entre supor que a inscrição seja apenas mais uma barata jogada de “marketing” e acreditar que de fato há perigo, considerei somente a segunda hipótese.

Por via das dúvidas, saí da cozinha e fiquei observando, de uma “esquina” da casa, noutro cômodo, o que ocorria com a panela de pressão. Fiz com que o Tito, meu cachorro, fosse para o quintal, a fim de protegê-lo de uma possível explosão, mesmo ciente de que esse cuidado com o Tito seria inútil caso a Via Láctea fosse dizimada.

Os minutos foram de apreensão, de agonia. Enquanto as borbulhas saíam tampa afora, eu não sabia se aguardava mais um pouco ou se me arriscava a ir correndo até o fogão para desligar a chama, fugindo logo a seguir. Por fim, timidamente, o chiado começou; depois, um dispositivo sobre a tampa da panela começou a girar. Eu nem me lembrava da última vez em que havia escutado esse saudoso chiado aqui em casa.

Acalmado então, chamei o Tito de volta e disse a ele que o Universo, em tese, não estava mais em risco. Ele ficou aliviado com a notícia. Minutos depois, apaguei a chama, esperei algum tempo, destampei a panela. Um inebriante cheiro de feijão tomou conta da cozinha. Peguei uma colher furada, joguei o feijão sobre o arroz. A aventura foi muito exigente. Daqui a algumas décadas, reflito sobre fritar ou não um ovo. 

domingo, 30 de janeiro de 2022

A história por trás da(s) foto(s) (109)





Nas fotos, Mateus Dias (contrabaixo, vocal), Vithor Psycho (bateria, vocal), Junnyn Martins (guitarra, vocal) e Lucas Rabelo (teclado), integrantes da banda Cena de Cinema. Quando me pediram que eu fizesse alguns registros de uma das apresentações deles, eu já sabia, de antemão, que o lugar em que tocariam é iluminado por um tipo e uma cor de luz. Comecei a pensar então num tipo de iluminação que eu poderia levar na intenção de tornar os registros coloridos, em vez de deixá-los praticamente monocromáticos.

Com isso em mente, decidi que duas luzes seriam o bastante para o visual que eu vislumbrava. O passo seguinte foi escolher as cores dessas luzes. Optei pelo vermelho e pelo azul. Levei, pois, dois flashes e os tecidos azul e vermelho, já fabricados com o propósito de conferirem à luz a cor que cada um dos tecidos tem. 
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Abaixo, rede social da banda e dos integrantes dela:

@bandacenadecinema
@mateusdias.bto
@vithorpsycho.bto
@junnynmartins
@uscal
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Abaixo, ficha técnica das fotos:

1/160
f/5.6
ISO 400

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Ecléticos

Quando a pessoa tem talentos, tudo o que ela realiza fica, no mínimo, muito bem feito. Uma das razões disso é que a inteligência dessas pessoas confere a elas o senso de não tentarem fazer aquilo para o que não levam jeito. 

Aos pobres o que é dos pobres

Assisti a Robin Hood (2018) (em português, o filme recebeu o título de Robin Hood: a origem), do diretor Otto Bathurst, no cinema. Saí da sala escura com a intenção de escrever sobre a produção. O tempo foi passando, a intenção cedeu espaço à preguiça. Ainda assim, de tempos em tempos, uma voz em minha cabeça ficava sussurrando: “Preciso escrever sobre Robin Hood, preciso escrever sobre Robin Hood”. Só que, passando o tempo, os detalhes a que eu havia assistido iam se perdendo, até que na memória restasse somente a essência. Passei então a procurar o filme para assistir a ele novamente. Ontem, por fim, isso ocorreu.

Os roteiristas são Ben Chandler e David James Kelly; os créditos dão conta de que o roteiro é baseado numa história daquele; não consegui descobrir a que gênero pertence essa história. No filme de Otto Bathurst, Robin of Loxley [Taron Egerton] é um nobre inglês que volta para casa depois de participar durante quatro anos de guerra contra muçulmanos. Enquanto esteve na guerra, foi dado como morto por autoridade corrupta. De volta à sua casa, descobre que Marian [Eve Hewson], com quem ele mantinha um relacionamento, está com Will Tillman [Jamie Dornan].

Por demais conhecida, a história de Robin Hood, no roteiro do filme, serve para que problemas contemporâneos sejam exibidos. As ações de um personagem que roubava ou furtava dos ricos para dar aos pobres o dinheiro conseguido é pano de fundo para prementes questões de hoje. Não que os problemas exibidos no filme não existissem durante as Cruzadas. A questão é a abordagem, pois os personagens têm comportamento e mentalidade de século XXI. O roteiro deixa de lado acuidade histórica e abarca anacronismos. Isso acaba dando ao trabalho uma falta verossimilhança que, em certos momentos, chega a incomodar, mas que não chega a superar os méritos que tem.

Logo de cara, há embate de etnias, em que ingleses estão lutando contra árabes. Também estão presentes religiosos corruptos e cidadãos desonestos ocupando cargos legais. No universo de Robin Hood, podres estão os religiosos, podres estão os representantes da lei. Em conjunto, tramam a favor de si e contra o povo. 

Não há elementos novos no filme, o que, em si, não é um problema. Está presente, por parte de religiosos e de autoridades, a invenção de um inimigo do povo, quando, na verdade, o inimigo é o que se disfarça de amigo; está presente a invenção do inferno para plantar o medo na população; está presente a desigualdade de distribuição de renda. Embora essas questões já fossem problemas na Idade Média, são tratadas no filme como se os personagens estivessem no século XXI. Por outro lado, são questões atuais, assim como atuais (e antigos) são os mecanismos pelos quais ricos religiosos e ricas autoridades saqueiam o povo. 

A crítica brasileira não deu bola para o filme; colocaram as mãos no bolso e saíram assoviando, fingindo nada ter a ver com invenções de inimigos, demonizações de personagens ou elaboração de infernos. Muitas autoridades religiosas e laicas, canalhas e imprestáveis, continuam se valendo de velhos estratagemas para manterem o povo domesticado. Os problemas que Robin Hood tem, que estão longe de anulá-lo como criação artística, são bem menores do que a gigantesca relevância da produção. 

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Outra vez, sobre a inspiração

Volto ao tema da inspiração. Não para jogar sobre ele uma luz diferente das que joguei no passado. Reli há pouco o que já escrevi sobre a inspiração. Este texto é mais do mesmo. Se, ainda assim, vai sendo escrito, é porque tenho vontade de escrevê-lo e porque não tenho, por ora, outra coisa para dizer.

Há escritores que descreem da inspiração, há escritores que acreditam nela. De todo modo, tanto estes quando aqueles dependem, é claro, da materialização das palavras. Eu acredito na inspiração, mas não em algumas das causas que podem atribuir a ela.

É que o romantismo inventou o mito do poeta inspirado, iluminado, ao passo que eles mesmos, os românticos, ralavam muito para escrever; qualquer um que leve a sério o ato de escrever sabe que escrever um bilhete é difícil. Creio, como dito, na existência da inspiração. Contudo, mesmo quando ela ocorre, ela não é tudo. Ela pode ajudar, pode ser um começo, uma bússola, uma dica, uma possibilidade, um fio a ser desenrolado, mas não muito mais do que isso.

É possível escrever sem inspiração? É, não importa o gênero textual, mas qualquer gênero pode ser escrito com inspiração. As pessoas associam a inspiração à poesia, não levando em conta que a poesia é um gênero como qualquer outro. Não estou desprezando a inspiração nem a poesia; o que digo é que a inspiração é um ingrediente. Se esse ingrediente faltar, nem por isso, desde que assim deseje o criador, vai faltar a criação.

O que escrevo pode ou não nascer da inspiração. Há momentos em que há inspiração; há momentos em que há intenção. Esta não vale nem mais nem menos do que aquela. A diferença é que aquela é involuntária; esta, voluntária. Além do mais, esta pode ser auxiliar daquela, pois há a inspiração que é consequência da intenção. De tanto o sujeito escrever, de tanto matutar em sua área, seja qual for, num dia é visitado pela inspiração, que pode ser, depois de fermentação no inconsciente, resultado de esforço repetido. 

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

A Outra Terra


Uma obra-prima não tem de necessariamente lidar com um grande tema. Trivialidades podem ser o substrato de um monumental trabalho. Não é, pois, a temática que define o que é ou o que não é uma obra de arte. O que define isso é o modo como o artista desenvolve a temática de que decide se ocupar. Todavia, o grande artista não tem medo de enfrentar uma grande temática. A Outra Terra (2011), é uma obra-prima com uma grande temática. 

Dirigido por Mike Cahill e roteirizado por ele e por Brit Marling, que é a atriz principal da produção, A Outra Terra é um filme de ficção científica. Como todo grande filme de ficção científica, está preocupado nem tanto ou não exclusivamente com os desígnios do Universo, embora isso possa perpassar em filmes de ficção científica, mas com o que é essa coisa que chamamos de ser humano. Tanto é assim que o roteiro, ao mencionar biólogos, afirmando que cada vez mais estudam coisas cada vez menores, e astrônomos, afirmando que cada vez mais estudam coisas cada vez maiores, cogita a ideia de que talvez o grande mistério seja o bicho homem visto de perto, o que, sim, acaba remetendo a Caetano, com o famoso verso “de perto, ninguém é normal. 

Diante do Universo, a simples sugestão de que talvez sejamos o que há de mais complicado que há nele soa arrogante; ainda assim, nada mais humano do que a arrogância. Se não arrogância, nada mais humano do que a constatação de que medimos tudo quanto há a partir dessa coisa que somos, como já preconizava o sofista Protágoras: “O homem á a medida de todas as coisas”. A preocupação de A Outra Terra somos nós (dessa linhagem, A Chegada (2016), de Denis Villeneuve, e Love (2011), de William Eubank, são outros belos exemplos).

Nos primeiros oito minutos de A Outra Terra já sabemos que Rhoda Williams [Brit Marling] carregará consigo o peso da culpa. Dirigindo bêbada após sair de uma festa em que celebrava a aprovação no MIT (Massachusetts Institute of Technology), Rhoda bate num carro e mata quase todos os integrantes de uma família. O sobrevivente é John Burroughs [William Mapother], compositor prestigioso que entrou em coma depois do acidente. Tendo “acordado”, leva, sem a esposa e sem o filho, mortos na colisão, uma vida deseixada. Já Rhoda, saindo da prisão após quatro anos, procura John na intenção de dizer a ele que ela é a motorista que causou a morte da família de John (quando do acidente, Rhoda era menor de idade — tinha dezessete anos —, e, pela lei então vigente em Connecticut, embora com autorização legal para dirigir, o nome dela, por ela ser menor, não foi divulgado para a sociedade nem revelado a John).

Só que Rhoda fraqueja, vacila, desconversa. Uma carreira brilhante na astronomia havia sido interrompida depois que ela matou a família de John. Agora, lutando para se desculpar diante dele, ela carrega consigo o peso da culpa, ao mesmo tempo em que deseja a redenção. Tem-se na culpa a grande temática de A Outra Terra (outro filme que aborda essa temática é o também brilhante O Operário (2004), de Brad Anderson). Os encontros com John vão se amiudando, Rhoda vai seguindo sem coragem de contar a ele que ela estava dirigindo o carro na noite do fatal acidente. John, por sua vez, vai recobrando o ânimo, passa a se envolver novamente com a música; a casa dele, que no começo do filme era escura, passa a ter janelas abertas, a luz solar vai dourando o ambiente, conferindo a ele ideia de calidez, de aconchego. Numa cena plena de significados, John pega um telescópio para observar a outra Terra: as janelas da casa de John estão abertas para enxergar o exterior e para receber o que o lado de fora tem a oferecer. O lado de fora trouxe o Sol, trouxe Rhoda.

(A despeito da poeticidade da cena, vale dizer, não em nome do preciosismo, mas da verossimilhança mesmo, que John, com um telescópio caseiro, viu consideráveis detalhes da outra Terra. O filme se passa numa época em que poderosos telescópios já eram feitos pelo homem. Assim, seria possível ter uma visão muito mais precisa da superfície do planeta. Isso poderia ter sido considerado, ainda que levasse, consequentemente, a um enredo diferente do que se tem, mas com as mesmas implicações caso fizessem questão delas.)

Enquanto trabalha na limpeza de uma escola de ensino médio e realiza gestos da mais tocante ternura, quando, por exemplo, vai visitar, no hospital, Purdeep [Kumar Pallana], seu colega de trabalho, Rhoda é pressionada por si mesma a contar para John o que ela causou à família dele. Ela quer se redimir, está mesmo arrependida; sabe que para ter paz na consciência, precisa escancarar para John que ela era a motorista do carro no dia em que a família dele morreu.

Os desdobramentos filosóficos de A Outra Terra são instigantes: o que seríamos não fossem nossas culpas? e se houvesse um lugar em que uma versão de nós sem nossos erros existisse? o que é, de fato, encontrar-se consigo mesmo? o que é se achar? o que faríamos se nos achássemos?... Como seria cada um sem o seu “inferno” pessoal?... Na falta de respostas, olhemos para nós, abramos portas e janelas, observemos o céu. Que não haja um cometa se aproximando da Terra em rota de colisão. 

sábado, 15 de janeiro de 2022

Decisão

Toninho Pedregulho acordou desejoso de mudar a rotina. Agindo em consonância com o desejo, entrou em um supermercado a que nunca tido a fim de comprar uma garrafa de pinga. Caminhando por entre as fileiras embotadas de produtos inúteis, ele viu, sem que se dessem conta dele, sua esposa beijando um homem. Resoluto, Toninho Pedregulho nunca mais mudou a rotina. 

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Ponte sob o rio Paranaíba

Fotos da enchente do Rio Paranaíba, em Patos de Minas. Registros feitos hoje.









 

domingo, 9 de janeiro de 2022

Apontamentos dominicais pós-terceira dose da vacina contra covid

1.
Vacinas não são garantia absoluta. Pouca coisa na medicina tem garantia absoluta. A extirpação de um câncer não quer dizer que ele jamais voltará; um remédio contra a gripe não dá a certeza de que a gripe cederá. Vacinas são armadura para o corpo. A armadura não assegura àquele que a usa sair vivo do combate, mas é melhor combater dentro de uma. 

2.
No Brasil, o segundo semestre do ano passado teve queda no número de mortes por covid. A razão disso é a vacina. Tivesse o país um governo que não sabotasse a vacinação, o fim do ano teria sido auspicioso. Dados internacionais divulgados no fim de 2021 revelaram que 95% dos internados por covid eram não vacinados. 

3.
Teorias da conspiração são coisas de quem fala, dentre outros assuntos, de ameaça comunista sem sequer ter uma ideia do que foi o comunismo ou do que tenha sido ou do é um regime político, não importa qual. Não bastasse a falácia ou o desvario da apregoada, há décadas, ameaça comunista, o teórico da conspiração não se dá conta de que insumos chineses estão presentes em dezenas de remédios. No mundo tal como configurado hoje, é difícil ingerir ou consumir algo que não venha da China. Mas, então, um apoucado presidente arrota descalabros que acham guarida em quem já tem, há muito tempo, na corrente sanguínea, substâncias fabricadas na China. 

4.
Apesar do presidente que o Brasil tem, um presidente que, a princípio, indicou remédios ineficazes contra a covid e que faz de tudo para sabotar a vacina, tomei a terceira dose. No contexto brasileiro, isso é uma gigantesca vitória da ciência e do atendimento público, tudo o que Bolsonaro tem destruído. 

5.
Nos três momentos em que eu estava saindo dos locais de vacinação, senti um vigor que não era corporal, mas anímico. É claro que imunidade implica vigor físico; todavia, o vigor que comento agora diz respeito ao estado de ânimo com que saí do local de vacinação depois de cada uma das três doses da vacina. Além da questão política, pois cada dose da vacina que é aplicada em cada cidadão é uma vitória contra Bolsonaro, há a questão de eu sair mais preparado para a vida. Não iludido com inexistentes garantias absolutas, mas esperançoso.

6.
Eu não quero passar para o outro nada que possa ser fatal para ele. O Artur da Távola, pródigo em neologismos, criou o vocábulo “eutro”, junção de “eu” e de “outro”. O Kiss, em “We are one”, canta “you are me, I am you”. O outro é a minha comunidade. Se o outro está bem, a possibilidade de eu ficar bem aumenta. Se eu estou mal, a possibilidade de o outro estar mal aumenta. Viver é interagir. Se eu estiver gripado, não vou sair por aí espirrando na cara do outro. Se eu não tenho covid, não vou passar para o outro algo que pode ser fatal para o que ele é. Se o outro não tem covid, não vai passar para mim algo que pode ser fatal para o que sou. O mínimo que devo fazer em nome do senso de comunidade ou de coletividade é me vacinar. 

7.
Acredito mesmo que mais cedo ou mais tarde a humanidade vai sucumbir, seja diante de um vírus, de uma praga, de uma catástrofe natural, de uma guerra. Só que isso não é pretexto para que nada façamos na intenção de seguirmos vivos. É preciso teimar a favor da vida, não a favor de um babaca presidente que já se declarou a favor da tortura, da morte. Não há na história um governante insano que tenha promovido a vida. Todos os governos insanos levaram a tragédias, a mortes, a guerras, a fomes, a pobrezas. A insanidade não gosta da vida.

8.
Minha manhã de domingo começou com uma vitória contra a ignorância, uma vitória daquilo que o espírito humano pode ter de nobre, elevado. Qualquer nobreza ou elevação é uma vitória contra o bolsonarismo. 

sábado, 8 de janeiro de 2022

Natural

A natureza é indiferente a nossas vidas. De nada adiantam mandingas, rezas, preces, orações, pedidos, apelos, superstições, rogos, prédicas, simpatias, súplicas. Diante das forças da natureza, pouco ou nada podemos fazer quando ela age com vigor. Ela não sabe se somos pios ou se somos ímpios. A natureza não sabe que deus (não) existe. O fervoroso morreu soterrado ao lado do ateu, que, vivo, seguiu; o ímpio foi levado pelas águas enquanto o religioso conseguiu se agarrar a um galho de árvore e sobreviver. Ela, mãe e esposa dedicada, chegou a tempo, embarcou, mas aves causaram a queda do avião; ele, negligente com a família, se atrasou para o voo fatal porque estava com a amante. Não importa para a natureza se somos éticos ou antiéticos, corruptos ou honestos, trabalhadores ou preguiçosos, sensatos ou antivacinas, burgueses ou andarilhos. Nossos códigos, convenções, moedas ou divisas não são levados em conta pela natureza, que segue, age, reage, com ou sem nós. Nosso controle sobre nossas vidas é uma ilusão, um fiapo. Não sabemos os desígnios, os mecanismos — se é que os há. 

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Aos que perguntaram, aos que perguntam, aos que por ventura vierem a perguntar

Vou salvar o link desta postagem e, no futuro, quando alguém me perguntar, via internet, por que desprezo Bolsonaro, pedirei à pessoa que leia o que agora digito. É que desde 2018, tenho escrito sobre as inúmeras razões pelas quais sou contra Bolsonaro e as coisas que ele defende, coisas essas já esmiuçadas em postagens anteriores. Para eu não ter de ficar digitando a mesma resposta quando a mesma pergunta for feita, fica ou ficará esta postagem como resposta.

Desde, pelo menos, 2018, tenho deixado claros os motivos pelos quais considero Bolsonaro um vitupério. É claro que quem me pergunta por que não aprovo o presidente nunca leu nada do que escrevo; não há o menor problema nisso. Eu também não leio nada do que escrevem ou do que postam as pessoas que me fazem essa pergunta, o que não é um problema; além do mais, as publicações delas não aparecem para mim. Assim como eu tenho outras coisas para ler, essas pessoas que me perguntam por que não aprovo Bolsonaro têm outras coisas para ler. Em arranjos que não sei decifrar, de vez em quando, uma dessas pessoas chega ao que publico.

Talvez as postagens delas não apareçam para mim em função dos algoritmos usados em redes sociais, mas não sei se o motivo é mesmo esse. Lembrando-me agora das pessoas que já me fizeram, via internet, perguntas sobre meus posicionamentos políticos, dou-me conta de que não sei o que essas pessoas têm em mente na atualidade, pois ou não convivo com elas ou nunca conferi o que escrevem ou o que postam, mesmo eu sabendo que me enviaram pedido de amizade virtual há tempos, mas se me perguntam por que sou contra Bolsonaro, elas também não sabem o que tenho em mente, por não conviverem comigo ou por não lerem o que escrevo. Se soubessem, não me perguntariam sobre algo que venho respondendo há anos. Eu as ignoro, no sentido de não saber o que pensam, elas me ignoram (nada disso, que fique claro, é problema), só que, de vez em quando, sem que eu saiba com precisão os motivos pelos quais isso ocorre, elas se deparam com algo que escrevi. 

Há dois caminhos para que se tenha acesso aos motivos pelos quais acho Bolsonaro desprezível. O primeiro, e um pouco mais longo do que o segundo, é ir conferindo minhas postagens de 2018 para cá, embora as anteriores a esse período já deixem claro que não faria o menor sentido eu dar crédito ao presidente. Ter escrito o que escrevi ao longo das décadas e depois concordar com o credo bolsonarista seria incongruência de minha parte; eu teria de ter mudado muito para me sentir em sintonia com quem diz de si mesmo “minha especialidade é matar”. Sendo assim, os que quiserem mais respostas para a pergunta sobre por que escrevo contra Bolsonaro podem conferir também as postagens escritas antes de 2018. Como não deleto o que publico, fiquem à vontade para a leitura. São textos curtos, simples, diretos.

O caminho mais curto, que apresenta um “resumão” dos motivos pelos quais desaprovo Bolsonaro, seria a leitura de O Fim do Brasil. Esse meu breve livro tem alguns textos (poemas em sua maioria) que deixam claro o que penso do país de 2013 para cá, mesmo não sendo o livro restrito unicamente a esse corte temporal. Se os que me perguntam por que não aprovo Bolsonaro não têm tempo para ler o que venho publicando em redes sociais, pode ser que queiram entender as razões de minha desaprovação a partir de uma leitura que demanda menos tempo do que ler o que venho publicando na internet. O link para se adquirir o livro é este: (se a pressa for muita, pode-se pedir a versão eletrônica, que, nesse formato, estará disponível para leitura imediatamente). 

sábado, 1 de janeiro de 2022

A Filha Perdida

Forçoso dizer logo de cara que nada li da Elena Ferrante a não ser os textos (crônicas?) que ela publicou no jornal The Guardian. Sim, isso significa conhecer parte minúscula da obra dela. Mesmo assim, esse quase nada é brilhante. É que o filme A Filha Perdida é baseado num dos livros de Elena Ferrante. A diretora e roteirista é Maggie Gyllenhaal (a atuação dela em Secretária, do diretor Steven Shainberg, a partir de um conto de Mary Gaitskill, é estupenda).
 
Em A Filha Perdida, Leda, interpretada por Olivia Colman, está em férias numa praia grega. Lá, ela tem contato com uma família que logo, logo faz com que ela, Leda, se lembre da família que teve. Em saltos temporais que ora mostram o desenrolar da vida de Leda enquanto ela curte as férias, ora colocam em cena o passado dela, o enredo vai se desenvolvendo.

Eu queria simpatizar com Leda. Ou, melhor dizendo, eu queria entendê-la. Terminado o filme, com ela não simpatizei, não a entendi. E isso é ótimo — a pior coisa que pode acontecer para quem cria um personagem é esse personagem ser insosso, esquecível. Não há como ser indiferente a Leda.

O filme de Maggie Gyllenhaal lida com a temática do casamento e os cansaços a que ele pode levar. Mas, há mais: a produção não tem medo de abordar as agruras da maternidade. Dito com outras simples palavras, a questão de que a pessoa pode não estar pronta para ou pode não querer ser mãe/pai. 

Leda não queria mesmo ser mãe ou não estava pronta para ser mãe? Não importa se isto ou aquilo. Independentemente da resposta, por que o passado tanto a atormenta? Por que ela tanto lamenta a mãe que foi? A pergunta nos leva, aparentemente, a deduzir a mãe que ela gostaria de ter sido. Mas será que ela gostaria mesmo de ter sido a mãe que deduzimos que ela gostaria de ter sido?... Não sei.

Do que sei, é que A Filha Perdida suscita questões demais. Sugere-se algo “apodrecido” em Leda (as frutas podres sobre a mesa, a minhoca (?) que sai de dentro da boneca). Por outro lado, leva-se em conta haver uma jovem com esplendor intelectual e com um potencial gigantesco tendo de cuidar das filhas pequenas e de conviver com um marido que não a satisfazia sexualmente.

Conhecendo a Leda do passado, queremos entender a Leda do presente. Ou, pelo menos, queremos, vá lá, justificar a Leda do presente. Nada disso se conclui (não bastasse, o filme de Maggie Gyllenhaal tem o mérito de evidenciar que Dakota Johnson não se resume à patuscada que é Cinquenta Tons de Cinza). À medida que A Filha Perdida ia se desdobrando, ora eu pensava “esse filme é ruim, mas é bom”, ora eu pensava “esse filme é bom, mas é ruim”. Iniciados os créditos, pensei: “Esse filme é uma obra-prima”.