domingo, 28 de junho de 2020

Ninguém sabe que estou aqui

Ninguém Sabe que Estou aqui [Nadie sabe que estoy aquí] (2020), realização da Netflix, com direção de Gaspar Antillo e roteiro dele, de Enrique Videla e de Josefina Fernandez, é um filme que lida com a questão de que a pessoa pode abandonar o talento, mas o talento não abandona a pessoa. Isso, por si, já seria instigante. Todavia, o filme lida também com o acerto de contas que, mais cedo ou mais tarde, tem-se de fazer com o passado.

Primeiro longa-metragem do diretor, a produção conta a história de Memo Garrido [Jorge Garcia], que vive recluso em lugarejo ao sul do Chile. Morando com um tio, Memo leva os dias criando e tosquiando ovelhas, comercializando a carne delas. Ensimesmado e aparentemente rude, ele tem sobre os ombros o peso de um dom não exercido e a lembrança amarga de evento ocorrido na meninice.

Memo nasceu para cantar. Quando ainda era criança, foi vítima de negociata entre o pai dele e os executivos de uma gravadora. A princípio, o que era para ser uma chance de Memo ser o que é, ou seja, o que era para ser uma chance de ele exercer o talento que tem, torna-se expressão do como funcionam as engrenagens do entretenimento, as quais são reflexo do “sistema de erros” (expressão do Drummond) que é o mundo, e de como elas podem abalar o edifício da psique.

A vida de Memo é pesada — metafórica e literalmente. Angustiado, dá vazão, de modo consciente e inconsciente, ao artista que ele é e que precisa vir à tona, seja como for. Ele pinta as unhas, costura roupas para si, devaneia, sonha. Tem vida repetitiva, fazendo um trabalho que não quer, concebendo na imaginação um mundo para o qual ele tem talento, mas cujas portas lhe foram fechadas em função de preconceitos quanto à aparência dele.

Talento não exercido e passado mal resolvido curvam o grande corpo de Memo, corpanzil que só não é maior do que o talento que tem para cantar. É como se o corpo tivesse mesmo de ser grande para abarcar tudo o que Memo é, toda a habilidade dele para o canto e tudo o que ele cala, tudo o que ele sofre. Tanto é assim, que numa simbólica cena que rende homenagem ao realismo mágico, quando Memo não mais está conseguindo guardar em si o que está pedindo passagem em cada poro, a câmera mostra um ser humano que não tem outra saída a não ser deixar jorrar o que ele vinha reprimindo. Repressão hiperbólica requer saída hiperbólica.

Por trás da expressão casmurra dele, há uma delicadeza que somente pode ser percebida por aqueles com sensibilidade o bastante para entenderem ou perceberem que ele é a pessoa certa no lugar errado, um homem maior do que as circunstâncias que ele não consegue mudar. Mesmo não sendo quixotesco, pois os devaneios que tem são a partir de habilidade existente, Memo vive a angústia de não cantar e o peso de quase ninguém saber com exatidão a história por que passou.

O Artur da Távola, na crônica, “Os diferentes”, escreveu: “A alma dos diferentes é feita de uma luz além. Sua estrela tem moradas deslumbrantes que eles guardam para os poucos capazes de os sentir e entender. Nessas moradas estão tesouros da ternura humana. De que só os diferentes são capazes”. Memo é uma pessoa diferente. Marta [María Paz Grandjean], sobrinha de um comerciante com quem Memo tem contato, deu-se conta disso. 

domingo, 21 de junho de 2020

Mergulho

Eu não me lembrava de quando tinha me visto amar.
Não me lembrava da última vez em que tinha visto amor.
Eu te vi, eu te conheci, eu te senti, eu mergulhei: é mar. 

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Haicai 76

Ministro da saúde?!
O mandatário quer é
pobre em ataúde. 

O enfiamento da condecoração

O Olavo de Carvalho já enviou recado para o Bolsonaro, dizendo em que orifício anatômico ele pode enfiar a tal condecoração a ele, Carvalho, concedida. Se ela foi enfiada ou se ainda será (afinal, é ordem advinda de um guru), não se sabe. Carvalho, sobre o qual pesam acusações judiciais, queixou-se de não ter sido ajudado por Bolsonaro quanto a elas, como se o presidente tivesse de ajudar Olavo de Carvalho nos processos que há contra ele. O tom da “revolta” do escritor é movido mais por questões pessoais do que cívicas.

O “filósofo” disse ainda que Bolsonaro “vê bandidos cometendo crimes em flagrante mas não faz nada contra”. Volto à minha tese: até os gambás sabiam que o governo Bolsonaro seria o que está sendo; só um gamo ingênuo e saltitante flanando em verdejantes bosques engoliria a balela da luta contra a corrupção e o engodo de que haveria um modo inovador de fazer política. Olavo de Carvalho, a exemplo de outros, vem agora se dizer decepcionado.

Insisto, volto à questão, reitero, escrevo novamente: é cinismo, seja de quem for, seja de que meio de comunicação for, dizer que era esperado um governo que fosse diferente do que está havendo. Insisto, volto à questão, reitero, escrevo novamente: Bolsonaro não pode ser acusado de estar sendo diferente do que ele sempre deixou claro que já era. Ninguém é ingênuo a ponto de supor que um sujeito como ele faria um governo com teor diverso do que tem havido. O que já existia não deixou de existir. A essência de alguém não se dissolve em função de uma roupa que se veste ou de um cargo que se assume.

Olavo de Carvalho “avisou” Bolsonaro: “Continue inativo, continue covarde e eu derrubo essa merda desse seu governo”. Não sei se haveria nessa fala uma estratégia de Carvalho para que Bolsonaro seja ainda mais truculento (adjetivo brando) do que tem sido ou se, de fato, o “guru” acredita ter o poder de derrubar o presidente. Se for o caso de ele realmente crer que tem o poder de fazer Bolsonaro cair, caso isso ocorra (no que não acredito), não terá sido por causa da atuação de Olavo de Carvalho, que, nesse hipotético cenário, não deixaria de se vangloriar de sua suposta atuação em caso de queda do mandatário.

Moro já foi chamado de comunista. Olavo de Carvalho, pelo menos momentaneamente, está no rol em que está o ex-juiz desde que ele rompeu com Bolsonaro. No futuro, seja por que razão for, Carvalho e Bolsonaro podem voltar a ser amiguinhos se isso for de interesse de ambos. Enquanto isso não ocorre (se é que vai ocorrer), não se sabe do paradeiro da condecoração, que já pode estar nos... anais da política brasileira.