Ninguém Sabe que Estou aqui [Nadie sabe que estoy aquí] (2020), realização da Netflix, com direção de Gaspar Antillo e roteiro dele, de Enrique Videla e de Josefina Fernandez, é um filme que lida com a questão de que a pessoa pode abandonar o talento, mas o talento não abandona a pessoa. Isso, por si, já seria instigante. Todavia, o filme lida também com o acerto de contas que, mais cedo ou mais tarde, tem-se de fazer com o passado.
Primeiro longa-metragem do diretor, a produção conta a história de Memo Garrido [Jorge Garcia], que vive recluso em lugarejo ao sul do Chile. Morando com um tio, Memo leva os dias criando e tosquiando ovelhas, comercializando a carne delas. Ensimesmado e aparentemente rude, ele tem sobre os ombros o peso de um dom não exercido e a lembrança amarga de evento ocorrido na meninice.
Memo nasceu para cantar. Quando ainda era criança, foi vítima de negociata entre o pai dele e os executivos de uma gravadora. A princípio, o que era para ser uma chance de Memo ser o que é, ou seja, o que era para ser uma chance de ele exercer o talento que tem, torna-se expressão do como funcionam as engrenagens do entretenimento, as quais são reflexo do “sistema de erros” (expressão do Drummond) que é o mundo, e de como elas podem abalar o edifício da psique.
A vida de Memo é pesada — metafórica e literalmente. Angustiado, dá vazão, de modo consciente e inconsciente, ao artista que ele é e que precisa vir à tona, seja como for. Ele pinta as unhas, costura roupas para si, devaneia, sonha. Tem vida repetitiva, fazendo um trabalho que não quer, concebendo na imaginação um mundo para o qual ele tem talento, mas cujas portas lhe foram fechadas em função de preconceitos quanto à aparência dele.
Talento não exercido e passado mal resolvido curvam o grande corpo de Memo, corpanzil que só não é maior do que o talento que tem para cantar. É como se o corpo tivesse mesmo de ser grande para abarcar tudo o que Memo é, toda a habilidade dele para o canto e tudo o que ele cala, tudo o que ele sofre. Tanto é assim, que numa simbólica cena que rende homenagem ao realismo mágico, quando Memo não mais está conseguindo guardar em si o que está pedindo passagem em cada poro, a câmera mostra um ser humano que não tem outra saída a não ser deixar jorrar o que ele vinha reprimindo. Repressão hiperbólica requer saída hiperbólica.
Por trás da expressão casmurra dele, há uma delicadeza que somente pode ser percebida por aqueles com sensibilidade o bastante para entenderem ou perceberem que ele é a pessoa certa no lugar errado, um homem maior do que as circunstâncias que ele não consegue mudar. Mesmo não sendo quixotesco, pois os devaneios que tem são a partir de habilidade existente, Memo vive a angústia de não cantar e o peso de quase ninguém saber com exatidão a história por que passou.
O Artur da Távola, na crônica, “Os diferentes”, escreveu: “A alma dos diferentes é feita de uma luz além. Sua estrela tem moradas deslumbrantes que eles guardam para os poucos capazes de os sentir e entender. Nessas moradas estão tesouros da ternura humana. De que só os diferentes são capazes”. Memo é uma pessoa diferente. Marta [María Paz Grandjean], sobrinha de um comerciante com quem Memo tem contato, deu-se conta disso.
Primeiro longa-metragem do diretor, a produção conta a história de Memo Garrido [Jorge Garcia], que vive recluso em lugarejo ao sul do Chile. Morando com um tio, Memo leva os dias criando e tosquiando ovelhas, comercializando a carne delas. Ensimesmado e aparentemente rude, ele tem sobre os ombros o peso de um dom não exercido e a lembrança amarga de evento ocorrido na meninice.
Memo nasceu para cantar. Quando ainda era criança, foi vítima de negociata entre o pai dele e os executivos de uma gravadora. A princípio, o que era para ser uma chance de Memo ser o que é, ou seja, o que era para ser uma chance de ele exercer o talento que tem, torna-se expressão do como funcionam as engrenagens do entretenimento, as quais são reflexo do “sistema de erros” (expressão do Drummond) que é o mundo, e de como elas podem abalar o edifício da psique.
A vida de Memo é pesada — metafórica e literalmente. Angustiado, dá vazão, de modo consciente e inconsciente, ao artista que ele é e que precisa vir à tona, seja como for. Ele pinta as unhas, costura roupas para si, devaneia, sonha. Tem vida repetitiva, fazendo um trabalho que não quer, concebendo na imaginação um mundo para o qual ele tem talento, mas cujas portas lhe foram fechadas em função de preconceitos quanto à aparência dele.
Talento não exercido e passado mal resolvido curvam o grande corpo de Memo, corpanzil que só não é maior do que o talento que tem para cantar. É como se o corpo tivesse mesmo de ser grande para abarcar tudo o que Memo é, toda a habilidade dele para o canto e tudo o que ele cala, tudo o que ele sofre. Tanto é assim, que numa simbólica cena que rende homenagem ao realismo mágico, quando Memo não mais está conseguindo guardar em si o que está pedindo passagem em cada poro, a câmera mostra um ser humano que não tem outra saída a não ser deixar jorrar o que ele vinha reprimindo. Repressão hiperbólica requer saída hiperbólica.
Por trás da expressão casmurra dele, há uma delicadeza que somente pode ser percebida por aqueles com sensibilidade o bastante para entenderem ou perceberem que ele é a pessoa certa no lugar errado, um homem maior do que as circunstâncias que ele não consegue mudar. Mesmo não sendo quixotesco, pois os devaneios que tem são a partir de habilidade existente, Memo vive a angústia de não cantar e o peso de quase ninguém saber com exatidão a história por que passou.
O Artur da Távola, na crônica, “Os diferentes”, escreveu: “A alma dos diferentes é feita de uma luz além. Sua estrela tem moradas deslumbrantes que eles guardam para os poucos capazes de os sentir e entender. Nessas moradas estão tesouros da ternura humana. De que só os diferentes são capazes”. Memo é uma pessoa diferente. Marta [María Paz Grandjean], sobrinha de um comerciante com quem Memo tem contato, deu-se conta disso.