Há quem não suporte a arte. Esse alguém pode ser um intelectual, um presidente, um professor, um gari. Há quem não suporte a arte por ter medo dela. Ou por ter inveja dela. Ou porque é imbecil. A arte incomoda certas pessoas porque elas têm medo de olharem para si no espelho; elas têm medo de olhar para quem se olha no espelho e têm medo de serem olhadas por quem se encara no espelho e as encara.
Há quem tenha medo da arte porque ela inquieta, rebela-se, pergunta, analisa, maravilha-se, denuncia, zomba. Já queimaram livros, já queimaram pessoas, mas a arte, teimosa e bela, aí está, encarando e deixando sem chão criaturas destituídas de senso artístico. Sem saber o que fazer com a arte, essas pessoas ora matam, ora xingam, ora torturam...
Os que não suportam a arte sabem destruir, desfazer, desmanchar, gritar, prender, matar; incapazes de edificar, o verbo, neles, é somente fúria, demolição e ausência de pensamento. Há analfabetos que não suportam a arte; há pessoas cultas que não suportam a arte. Os que se esqueceram de que foram crianças não suportam a arte.
Não suporta a arte quem não entende que somos mais obscuros do que gostaríamos e quem supõe que as questões da vida estão demarcadas rigidamente, como num tabuleiro de damas. Não suporta a arte quem é incapaz de sentir o belo ou quem é incapaz de produzi-lo. Quem não vislumbra no outro homem todos os outros homens não suporta a arte.
Não suporta a arte quem se fecha no próprio corpo, quem não o entende, quem tem medo do próprio corpo, quem demoniza o que ele quer e quem tem medo do corpo do outro, do querer do corpo do outro. Não suporta a arte quem não é capaz do refinamento da inteligência ou da grandeza de ações. Não suporta a arte quem não percebeu que somos, ao mesmo tempo, ricos deuses e pobres diabos.
Os maniqueístas não suportam a arte. Os machões que berram forte a fim de esconder a criançona chorona que há neles não suportam a arte. Não suportam a arte os que não admitem diversidades. Não suporta a arte quem não quer se conhecer e quem não quer conhecer o outro.
Não suporta a arte quem não aguenta três acordes de lucidez. Não suporta a arte quem não sabe o que fazer com uma mulher sedenta ou com uma que procura aconchego. Não suportam a arte os que dependem de um revólver para se sentirem homens. Não suportam a arte os vassalos das fardas, os que cantam com fingida pungência o hino nacional e lesam os cofres públicos.
Não suportam a arte os que erguem muros. Não suportam a arte os que não têm a menor ideia do que sejam sutilezas, do que sejam detalhes, do que sejam pequenas, frequentes e frutíferas transformações. Quem não planta não suporta a arte; não suporta a arte quem destrói a plantação.
Quem só sabe ser barulhento não suporta a arte, bem como quem não sabe se calar. Quem não é capaz de amar não suporta a arte. Os que não gostam de gente não suportam a arte; os destituídos do senso do espanto não a suportam. Os que esquartejam, torturam e assassinam não a suportam. Os que defendem esquartejamentos e torturas não a suportam. Os que defendem ditadores não a suportam. Os ditadores não a suportam. Os que confundem patriotada com patriotismo não suportam a arte. Pode-se esquartejar ou torturar ao som de Mozart. Quem assim age não entendeu a essência da arte, que é comunhão, elevação.
O terreno da arte não são engessadas e superficiais certezas, mas movediças, inspiradoras, iluminadoras e profundas incertezas. A arte requer coragem. Também por isso os covardes não a suportam.
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