terça-feira, 31 de outubro de 2017

Quanto pesa um morto?

Somente há algumas horas assisti a Infidelidade [Unfaithful] (2002), do diretor Adrian Lyne. Os roteiristas são Claude Chabrol, Alvin Sargent e William Broyles Jr. Nos papéis principais, Richard Gere, Diane Lane e Olivier Martinez.

Edward Summer (interpretado por Gere) mata Paul Martel (interpretado por Olivier Martinez), pois Martel tinha um caso com Connie Summer, esposa de Edward (Connie é interpretada por Diane Lane). Logo após o homicídio, Edward não sabe bem o que fazer com o cadáver. Decide então enrolar o corpo morto num cobertor; a seguir, prende o tecido com fitas adesivas e arrasta Paul para dentro de um velho elevador, que estava com defeito. Por causa disso, o elevador emperra entre dois andares. É quando Edward ergue do chão o morto. Erguendo-o, consegue elevá-lo acima dos ombros e deixá-lo novamente no chão, fora do elevador.

Enquanto eu assistia à peleja de Edward com o corpo de Paul, fiquei pensando na força que ele teria de fazer para tirar o morto do chão e erguê-lo. Mal esse pensamento me ocorrera, eu me lembrei de uma frase que está num dos romances do Gabriel García Márquez: “Você não sabe o quanto pesa um morto”. Segundo García Márquez, quando ele ainda era criança, essa frase lhe fora dita pelo avô dele.

Algo em torno de dez ou quinze anos antes da morte de Márquez, tentei enviar algumas perguntas para ele, no que seria uma entrevista. Enviei esse conteúdo para a editora que o publica no Brasil, pedindo à equipe da empresa que encaminhasse as perguntas para ele. Não obtive retorno. Depois, vasculhando a internet, consegui o que, salvo engano, era o e-mail profissional de um dos irmãos de García Márquez. A pessoa com quem entrei em contato poderia não ser um dos irmãos dele, a despeito do sobrenome, que era o mesmo do autor. Também não obtive retorno para esse e-mail. Fui abusado em tentar conseguir a entrevista, pois sou desconhecido, não trabalho em nenhum grande periódico. Mas não havia delírio. Eu estava ciente de que era improvável o escritor receber as perguntas que eu havia preparado.

Há algumas horas, assistindo à cena que ocorre dentro do elevador no filme de Adrian Lyne, eu me lembrei de frase do avô do Gabriel García Márquez. Penso que o autor teria gostado de saber disso. Mas ainda que ele tivesse recebido as perguntas que enviei ao tentar entrevistá-lo, eu não comentaria sobre a cena do filme, pois só hoje é que o conferi. Mesmo assim, suponho que o autor teria gostado de saber que a frase do avô dele ainda reverbera.

“Você não sabe o quanto pesa um morto”.

Ecológico

A natureza não pede socorro.
Depois de nós,
ela vai se inventar,
vai se renovar.
Nós pediremos socorro.

A natureza não escuta súplicas. 

A dama e o guarda-caça

Em tempos nos quais muitos hipócritas fazem mais barulho por causa de uma pessoa nua do que pelas indecências do senado e da câmara dos deputados (muitos dos hipócritas barulhentos e indecentes estão nessas duas casas), O amante de lady Chatterley (1928), escrito por D.H. Lawrence, prossegue relevante. Dentre tantas coisas, o livro pode ser lido também como libelo contra a hipocrisia.

Num país como o Brasil, que, seja por má-fé, seja por ingenuidade, por interesse próprio, por ignorância, elencou alguns como corruptos e outros como salvadores, mas que, mesmo assim, continua elencando salvadores falsamente moralistas e verdadeiramente perigosos, O amante de lady Chatterley, que também permite leitura política, tem muito a dizer. Irresponsáveis, há no Brasil os que tecem elogios a torturadores e alegam que vão acabar com a corrupção. Mas o moralismo ditatorial de muitos só consegue enxergar a corrupção que vem de alguns. Mesmo quando dizem que gostariam de ver seus heróis na cadeia, de pronto se dizem apoiadores de quem elogia ditaduras e torturas. Defensores de “virtudes”, querem uma sociedade, na visão deles, ordeira, obediente.

Esses conservadores, alguns por ignorância, outros por questões interesseiras, reprovariam um livro como O amante de lady Chatterley, ainda que as cenas de sexo não sejam chocantes. O livro é um grande romance sob qualquer aspecto. O sexo é um desses aspectos, mas tão importante quanto os demais. Ainda que se leve em conta a ousadia do autor em ter usado palavrões numa época em que eles quase não frequentavam a literatura, o que o livro tem de grandioso quanto ao sexo são as ideias que ele defende. Ainda que não se concorde com Lawrence, ele tem uma teoria sobre o sexo e sobre o amor.

Todavia, não é somente com relação ao sexo que certos defensores dos bons costumes do Brasil atual reprovariam O amante de lady Chatterley. Como todo portentoso trabalho literário, o livro é vasto, multifacetado. A política ou as questões sociais são outro grande tema de que trata a obra, cujo enredo se passa quando os estilhaços da primeira guerra mundial ainda não haviam sido retirados das ruas.

Os guardiões da boa conduta no Brasil de hoje não aprovariam o modo como Clifford é retratado no livro. Ele, vítima da guerra, é também os preconceitos da classe a que pertence. O próprio Lawrence, em texto sobre o livro, admite que Clifford pode ter aspectos simbólicos. Ainda que Lawrence não tivesse admitido isso, a cena em que Clifford depende de Mellors para subir uma encosta é densa, ao contrapor o papel de duas classes sociais e de dois modos díspares de como encarar a organização política, o sexo e o mundo.

Clifford é o burocrata, o frio, o que se considera detentor de privilégios por meramente pertencer a determinada classe social. Mellors é o “selvagem”, o espontâneo, a força da natureza. Sobre Clifford, Lawrence, num ensaio, escreveu: “Ele é um produto da nossa civilização, mas é a morte da humanidade”. Ao se referir a Mellors, Lawrence diz que ele “ainda conserva o calor de homem” e que ele representa a vitalidade.

Como toda grande obra artística, O amante de lady Chatterley pode ser lido hoje sem que soe datado. Como toda grande obra artística, dialoga com a época em que foi produzida sem deixar de desvelar verdades atemporais. Dizer que se trata de um livro corajoso já seria um grande elogio, mas a coragem não é a única virtude da obra. Com vigor, com talento e com honestidade, Lawrence expõe a fraqueza e a pusilanimidade de pessoas que, a despeito de sua artificialidade, julgam-se superiores em função de privilégios econômicos.

Seja pelo ridículo de Clifford, pela coragem de Mellors, pela entrega de Constance Chatterley, pelo que tem de político, pelo que tem de amor, O amante de lady Chatterley é uma obra que incomodaria muitos dos supostos paladinos dos bons costumes e da boa moral no Brasil de hoje. Também por isso, num país em que a indecência, não raro, usa terno e gravata ou se diz religiosa ou gente de bem, é um livro de leitura imprescindível. 

A morte da política ou a política da morte

Em 2011, quando Lula teve câncer, houve postagens em que se desejou a morte dele. Após a reeleição de Dilma, dentre outras atitudes, em adesivos para carros, pegaram a imagem dela e a colocaram, com as pernas abertas, no lugar em que a bomba é colocada para abastecimento do carro. Recentemente, eu me deparei com postagens em que pediram a morte de Temer, que, recentemente, foi internado. É assim que parte do Brasil faz “política”. 

O deus que é teu

Deus, se for para haver,
que seja íntimo.
Deselegante cuspir nos outros
o deus de tuas entranhas.
Guarda para ti teu deus.
Cuida dele com amor discreto.
Há sintonias possíveis sem deuses. 

Little dreams

Na noite que passou, em sonho, inventei enredo para livro que nunca li: Mulherzinhas, da Louise May Alcott. O sonho era a história da obra. Depois disso, é começar hoje a leitura. 

sábado, 21 de outubro de 2017

O que ficará para o filho?

Concordo com as respostas dadas pelo garoto espanhol na foto desta postagem. Isso não quer dizer que eu discorde do resultado que a professora esperava. O enunciado é dúbio; dizia: “Escribe con cifra los siguientes números”. O problema da questão é a ambiguidade. Mas a professora não merece o calvário nem pelo “x” que escreveu por cima das respostas nem por esperar que fosse outra a solução dada pelo estudante.

O pai do menino, Ignacio Bárcena, postou no Twitter uma foto do exercício com as respostas do filho; junto à imagem, Bárcena escreveu: “Aquí va un ejercicio de mates de mi hijo (7 años). Yo creo que quien no lo ha entendido bien es el profe.@RaquelMartos”.

Os desdobramentos disso já foram bem divulgados. Como ocorre nessas ocasiões, as opiniões “pedagógicas” e as hipérboles surgem como filhotes de coelho. O cineasta Juan José Campanella escreveu postagem em defesa do filho de Bárcena: “Es un genio tu hijo. Escribió literalmente los números ‘siguientes’, jaja”.

No fundo, acho que Campanella fez uma brincadeira ao dizer que o menino era gênio. Mas não custa dizer que o fato de o garoto ter respondido do modo como respondeu não o torna genial. A resposta dele, claro, é só consequência do modo como as crianças interpretam as coisas. Como já esperado sempre que algo similar ocorre, há toda a cantilena sobre o papel da escola e dos professores.

Não se falou, contudo, sobre a atitude do pai em tornar pública a discordância dele, expondo, de modo desnecessário, a professora; ela não foi autora de um crime. Como pai, é óbvio que ele tem o direito de discordar da correção de algum exercício feita pela professora. A falta de tato dele está em dizer publicamente que quem não entendeu bem foi ela. Que o pai do garoto tentasse resolver isso com ela. Sugerir em público que a professora errou é infantil. Questionar é diferente de expor.

Sei que há professores obtusos; talvez o pai do menino tenha tentado argumentar com a professora, defendo as respostas dadas pelo filho dele. Nesse ambiente que imagino agora, pode ser que Bárcena tenha decidido tornar públicas as respostas do filho dele por causa de hipotética recusa da professora em acatar as respostas do menino. Ainda que isso tenha ocorrido, isso não anula a infantilidade dele ao exibir o que a profissional fez. (Será que ele, pessoalmente, já elogiou alguma professora do filho dele?)

Isso são cogitações, pois não achei nenhuma matéria sobre os bastidores do imbróglio. Contudo, mesmo num cenário assim, caberia ao pai não a deselegância ao dar publicidade ao ocorrido, mas procurar resolver a situação com a colaboração de outros profissionais da escola. Lamentável: em redes sociais não se diferencia o público do privado. Nesse episódio, ficará algo para o filho? Caso sim, que seja o benéfico questionamento do pai, e não o modo como ele tratou o caso.
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P.S.: depois e publicar o texto, li, há pouco, mea-culpa de Ignacio Bárcena: Para que conste, mi hijo piensa así gracias a profes como el que tiene y los que tuvo, que fomentan cada día su creatividad”.  

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

A história por trás da(s) foto(s) (108)


De tempos em tempos, gosto de fotografar a esmo (é a primeira vez que uso a expressão “a esmo”). Fotografar por fotografar, sem compromisso, a não ser o de produzir a melhor foto, ainda que ela não fique tão boa assim.

Realizo trabalhos sob encomenda; mesmo assim, a maior parte de meu acervo fotográfico é composto por imagens feitas sem compromisso profissional, embora feitas sempre com o maior profissionalismo ou rigor de que sou capaz.

As duas imagens desta postagem foram feitas há pouco, aqui em casa. Eu estava com vontade de fotografar, seja o que for. Foi quando me dei conta, lá no quintal, da pequena planta (mede alguns centímetros) que driblara o cimento, conseguindo existir. Já voltando para dentro de casa, eu me deparei com os cabides. 

domingo, 15 de outubro de 2017

12/10

A feitura do bem.
As girândolas.
Se a capacidade daquela 
fosse proporcional
à quantidade destas,
seríamos menos
explosivos. 

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Atrás dos passarinhos

Tito, meu cachorro, não sabe que é luta vã correr atrás de passarinhos. Eu também corro atrás dos meus passarinhos. A diferença entre mim e o Tito é que sei que a corrida é vã. 

Depois da leitura

Alguns livros são maiores ainda depois de lidos. Ficamos os ruminando. Quando estamos refletindo sobre eles ou sobre eles conversando, de repente tornam-se mais grandiosos, surgem com nitidez mais cristalina do que a que tiveram quando estávamos com eles em mãos, diante dos olhos. Também por isso é bom conversar sobre livros. Tertúlias podem ser celebração da amizade, do amor, da literatura. Podem fazer com que enxerguemos com foco mais acurado o que é um livro ou o que somos. 

domingo, 1 de outubro de 2017

"Os sinos da agonia"

Tito, meu cachorro, não tinha medo de fogos de artifício quando era pequeno. Hoje, crescido, tem muito medo deles. Não bastasse, ele passou a ligar os sinos de uma igreja que há aqui perto aos foguetes. Mal os sinos começam a badalar, o medo do Tito toma proporções imensas; os sinos se tornaram trombetas apocalípticas para ele. Ele diferencia a cadência e o ritmo das batidas que marcam as horas dos dobres que precedem os fogos ou anunciam alguma liturgia. Os repiques que marcam as horas não o incomodam. Tal é o medo que ele passou a ter dos sinos, que nem precisa haver os fogos para que haja desespero nele. 

No mais, ele segue a vida sendo simplesmente feliz; ou sendo feliz simplesmente. Parte dessa felicidade, parece-me, reside precisamente em ele não saber que é feliz. Cães não teorizam. Ou, quem sabe, a felicidade dele está em bastar para ele apenas correr para buscar e em seguida me entregar, para que eu jogue de novo, de novo, de novo, de novo, de novo e mais tantas vezes, um pneuzinho, que é o brinquedo dele.