Causa espanto o quanto Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift (1667-1745) é lúdico e demolidor. Na obra, acompanhamos as peripécias por que passa Lemuel Gulliver, que é o narrador. Tendo realizado quatro viagens, o que lemos são as notícias que Gulliver nos dá dos lugares em que esteve: nas três primeiras jornadas, em Lilipute, Brobdingnag, Laputa, Balnibarbi, Glubbdubdrib, Luggnagg e no Japão; na quarta, vai ao País dos Houyhnhnms.
Ainda que se alegue que a quarta viagem não tenha o humor das anteriores, isso não é o mesmo que dizer que ela não tenha humor algum. De qualquer modo, mesmo havendo a insistência de que não há nada de engraçado na última jornada do narrador, por ela ter um tom mais filosófico, soturno e reflexivo, isso não anula a graça e a graciosidade do livro. Ao mesmo tempo em que diverte, o artifício de Swift, ao criar o crédulo e ingênuo narrador Gulliver, criou um ataque corrosivo contra o homem e contra as nações, num tom que mistura galhofa e contundência.
Susan Sontag, no livro Sobre Fotografia, escreveu: “A operação balzaquiana consistia em ampliar pequenos detalhes, como numa ampliação fotográfica” (1). Essa ampliação tem a capacidade de fazer com que nossa “cegueira” seja diminuída. O exagero faz com que olhemos de outro modo coisas que estão diante de nós; por estarmos acostumados a elas, geralmente não as observamos, mas se observarmos, constatamos que tudo pode ser mais estranho do que o que nos revela nossa vista cansada e saturada. A ampliação ou o exagero tornam inéditos um mundo que nos parecia não ter mais novidade. Súbito, damo-nos conta de que há um modo de olhar, seja literalmente, seja metaforicamente, que banha de novidade algo em que não mais prestávamos atenção ou em que nunca havíamos prestado.
Essa ampliação pode trazer à tona a beleza ou a feiura. O que temos de repugnante pode se tornar mais evidente quando observado com olhar de lupa. Gulliver, em sua segunda jornada, está em Brobdingnag; nessa terra, ele convive com gigantes, diferentemente da primeira viagem, em que ele convivera com criaturas minúsculas. Em Brobdingnag, Gulliver é encarado como “lusus naturae” [divertimento da natureza] (2). Na estratégia de Swift, em que o narrador é agora minúsculo, o viajante tem diante de si seres gigantes, o que amplia as imperfeições de seus corpos. Encarado como brinquedo pelas mulheres de Brobdingnag, Gulliver é colocado no seio de uma delas. Diz ele:
“Devo confessar que nada me repugnou tanto como a vista do seu seio monstruoso, que não sei a que posso comparar, a fim de dar ao leitor uma idéia do seu tamanho, da sua forma e da sua cor. Mediria uns 6 pés de comprimento e nunca menos de 16 de circunferência. O bico teria, no mínimo, a metade do tamanho de minha cabeça, e ostentava tão grande variedade de manchas, borbulhas e sardas, que não se poderia imaginar espetáculo mais nauseoso” (3).
Em outro momento, em que também narra a convivência que teve com as mulheres de Brobdingnag, Gulliver diz: “Frequentemente me despiam, da cabeça aos pés, e me colocavam deitado a fio comprido sobre os seus ventres; o que sobremodo me repugnava; porque, para dizer a verdade, a pele delas soltava um cheiro nauseabundo” (4).
No universo criado por Swift, se na primeira viagem o narrador é a criatura que foi observada em detalhes pelos habitantes de Lilipute, que eram minúsculos em relação a Gulliver, na segunda viagem, ele é quem padece por causa do cheiro exalado pelos habitantes de Brobdingnag. Todavia, reitero, Swift zomba não só da soberba dos indivíduos, mas também da soberba das nações, com seus sistemas políticos e seu ufanismo. Em documento divulgado por Gulliver, consta que Lilipute é “delícia e terror do universo” (5); a metrópole de Brobdingnag tem a alcunha de “Orgulho do Universo” (6).
Swift, ao criar um narrador quase isento ao narrar o que havia testemunhado, mofa ainda das propaladas conquistas da racionalidade. O século XX, muito em virtude do morticínio que foi capaz de produzir, graças ao avanço da ciência, continuou pondo em xeque a supremacia da razão como sendo capaz de nos tornar mais plenos. Jung (1875-1961), no ensaio “Chegando ao inconsciente”, escreveu:
“O lema ‘querer é poder’ é a superstição do homem moderno. Para sustentar essa crença, no entanto, o homem contemporâneo paga o preço de uma incrível falta de introspecção. Não consegue perceber que, apesar de toda a sua racionalização e eficiência, continua à mercê de ‘forças’ fora de seu controle. Seus deuses e demônios absolutamente não despareceram” (7).
Jogando sobre sua época um olhar zombeteiro e impiedoso, Viagens de Gulliver, já no século XVIII, o século do Iluminismo, movimento intelectual que advogou o poder da razão, demole a crença na capacidade que essa mesma razão tem de explicar o que somos ou de ser nossa redentora. Na primeira viagem, Gulliver dá notícia de uma guerra que ocorrera porque os habitantes não conseguem chegar a um consenso sobre se o ovo deve ser quebrado a partir da ponta mais grossa ou da mais fina; na terceira, um homem estava estudando há oito anos um modo de extrair raios de sol dos pepinos, enquanto outro se esforçava para transformar o gelo em pólvora; na quarta, a despeito da aparente perfeição da sociedade dos Houyhnhnms, em que os cavalos é que são racionais, ao passo que os homens nem são capazes de articular linguagem, a razão dos equinos os conduziu ao embotamento da capacidade de compaixão e a uma hierarquia em que um cavalo é segregado por causa de seu aspecto físico, numa sinistra eugenia:
(...) “Entre os Houyhnhnms, o branco, o alazão e o castanho-escuro não tinham exatamente o formato do baio, do ruço rodado e do preto; não haviam nascido com as mesmas aptidões intelectuais, nem com capacidade para aprimorá-las, e continuavam sempre, portanto, na condição de criados, sem aspirar jamais a elevar-se acima da própria raça” (8).
Em Viagens de Gulliver, indivíduo e sociedade são doentes e dignos de pena e de riso — um riso que, no leitor adulto, já tendo em si a malícia e já sendo apto a compreender ironias amargas, nunca é pueril, nunca deixa esquecer que estamos rindo de algo lamentável. O corpo social e o corpo individual se refletem. O homem, microcosmo, é tão conspurcado quanto a coletividade, macrocosmo. O livro pode ser lido como uma espécie de rol das corrupções do caráter dos indivíduos e do espírito das nações.
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(1) SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. Tradução Rubens Figueiredo. 1ª edição. São Paulo. Companhia das Letras. 2004. Pág. 175.
(2) SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. Tradução Octavio Mendes Cajado. São Paulo. Círculo
do Livro. [19--]. Pág. 92.
(3) Idem. Pág. 79.
(4) Ibidem. Pág. 103.
(5) Ibidem. Pág. 37.
(6) Ibidem. Pág. 86.
(7) JUNG, Carl Gustav [et al.]. O homem e seus símbolos [concepção e organização Carl G. Jung]. Tradução Maria Lúcia Pinho. 3ª edição especial. Rio de Janeiro. HarperCollins Brasil. 2016. Pág. 103.
(8) SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. Tradução Octavio Mendes Cajado. São Paulo. Círculo
do Livro. [19--]. Pág. 235.
Ainda que se alegue que a quarta viagem não tenha o humor das anteriores, isso não é o mesmo que dizer que ela não tenha humor algum. De qualquer modo, mesmo havendo a insistência de que não há nada de engraçado na última jornada do narrador, por ela ter um tom mais filosófico, soturno e reflexivo, isso não anula a graça e a graciosidade do livro. Ao mesmo tempo em que diverte, o artifício de Swift, ao criar o crédulo e ingênuo narrador Gulliver, criou um ataque corrosivo contra o homem e contra as nações, num tom que mistura galhofa e contundência.
Susan Sontag, no livro Sobre Fotografia, escreveu: “A operação balzaquiana consistia em ampliar pequenos detalhes, como numa ampliação fotográfica” (1). Essa ampliação tem a capacidade de fazer com que nossa “cegueira” seja diminuída. O exagero faz com que olhemos de outro modo coisas que estão diante de nós; por estarmos acostumados a elas, geralmente não as observamos, mas se observarmos, constatamos que tudo pode ser mais estranho do que o que nos revela nossa vista cansada e saturada. A ampliação ou o exagero tornam inéditos um mundo que nos parecia não ter mais novidade. Súbito, damo-nos conta de que há um modo de olhar, seja literalmente, seja metaforicamente, que banha de novidade algo em que não mais prestávamos atenção ou em que nunca havíamos prestado.
Essa ampliação pode trazer à tona a beleza ou a feiura. O que temos de repugnante pode se tornar mais evidente quando observado com olhar de lupa. Gulliver, em sua segunda jornada, está em Brobdingnag; nessa terra, ele convive com gigantes, diferentemente da primeira viagem, em que ele convivera com criaturas minúsculas. Em Brobdingnag, Gulliver é encarado como “lusus naturae” [divertimento da natureza] (2). Na estratégia de Swift, em que o narrador é agora minúsculo, o viajante tem diante de si seres gigantes, o que amplia as imperfeições de seus corpos. Encarado como brinquedo pelas mulheres de Brobdingnag, Gulliver é colocado no seio de uma delas. Diz ele:
“Devo confessar que nada me repugnou tanto como a vista do seu seio monstruoso, que não sei a que posso comparar, a fim de dar ao leitor uma idéia do seu tamanho, da sua forma e da sua cor. Mediria uns 6 pés de comprimento e nunca menos de 16 de circunferência. O bico teria, no mínimo, a metade do tamanho de minha cabeça, e ostentava tão grande variedade de manchas, borbulhas e sardas, que não se poderia imaginar espetáculo mais nauseoso” (3).
Em outro momento, em que também narra a convivência que teve com as mulheres de Brobdingnag, Gulliver diz: “Frequentemente me despiam, da cabeça aos pés, e me colocavam deitado a fio comprido sobre os seus ventres; o que sobremodo me repugnava; porque, para dizer a verdade, a pele delas soltava um cheiro nauseabundo” (4).
No universo criado por Swift, se na primeira viagem o narrador é a criatura que foi observada em detalhes pelos habitantes de Lilipute, que eram minúsculos em relação a Gulliver, na segunda viagem, ele é quem padece por causa do cheiro exalado pelos habitantes de Brobdingnag. Todavia, reitero, Swift zomba não só da soberba dos indivíduos, mas também da soberba das nações, com seus sistemas políticos e seu ufanismo. Em documento divulgado por Gulliver, consta que Lilipute é “delícia e terror do universo” (5); a metrópole de Brobdingnag tem a alcunha de “Orgulho do Universo” (6).
Swift, ao criar um narrador quase isento ao narrar o que havia testemunhado, mofa ainda das propaladas conquistas da racionalidade. O século XX, muito em virtude do morticínio que foi capaz de produzir, graças ao avanço da ciência, continuou pondo em xeque a supremacia da razão como sendo capaz de nos tornar mais plenos. Jung (1875-1961), no ensaio “Chegando ao inconsciente”, escreveu:
“O lema ‘querer é poder’ é a superstição do homem moderno. Para sustentar essa crença, no entanto, o homem contemporâneo paga o preço de uma incrível falta de introspecção. Não consegue perceber que, apesar de toda a sua racionalização e eficiência, continua à mercê de ‘forças’ fora de seu controle. Seus deuses e demônios absolutamente não despareceram” (7).
Jogando sobre sua época um olhar zombeteiro e impiedoso, Viagens de Gulliver, já no século XVIII, o século do Iluminismo, movimento intelectual que advogou o poder da razão, demole a crença na capacidade que essa mesma razão tem de explicar o que somos ou de ser nossa redentora. Na primeira viagem, Gulliver dá notícia de uma guerra que ocorrera porque os habitantes não conseguem chegar a um consenso sobre se o ovo deve ser quebrado a partir da ponta mais grossa ou da mais fina; na terceira, um homem estava estudando há oito anos um modo de extrair raios de sol dos pepinos, enquanto outro se esforçava para transformar o gelo em pólvora; na quarta, a despeito da aparente perfeição da sociedade dos Houyhnhnms, em que os cavalos é que são racionais, ao passo que os homens nem são capazes de articular linguagem, a razão dos equinos os conduziu ao embotamento da capacidade de compaixão e a uma hierarquia em que um cavalo é segregado por causa de seu aspecto físico, numa sinistra eugenia:
(...) “Entre os Houyhnhnms, o branco, o alazão e o castanho-escuro não tinham exatamente o formato do baio, do ruço rodado e do preto; não haviam nascido com as mesmas aptidões intelectuais, nem com capacidade para aprimorá-las, e continuavam sempre, portanto, na condição de criados, sem aspirar jamais a elevar-se acima da própria raça” (8).
Em Viagens de Gulliver, indivíduo e sociedade são doentes e dignos de pena e de riso — um riso que, no leitor adulto, já tendo em si a malícia e já sendo apto a compreender ironias amargas, nunca é pueril, nunca deixa esquecer que estamos rindo de algo lamentável. O corpo social e o corpo individual se refletem. O homem, microcosmo, é tão conspurcado quanto a coletividade, macrocosmo. O livro pode ser lido como uma espécie de rol das corrupções do caráter dos indivíduos e do espírito das nações.
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(1) SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. Tradução Rubens Figueiredo. 1ª edição. São Paulo. Companhia das Letras. 2004. Pág. 175.
(2) SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. Tradução Octavio Mendes Cajado. São Paulo. Círculo
do Livro. [19--]. Pág. 92.
(3) Idem. Pág. 79.
(4) Ibidem. Pág. 103.
(5) Ibidem. Pág. 37.
(6) Ibidem. Pág. 86.
(7) JUNG, Carl Gustav [et al.]. O homem e seus símbolos [concepção e organização Carl G. Jung]. Tradução Maria Lúcia Pinho. 3ª edição especial. Rio de Janeiro. HarperCollins Brasil. 2016. Pág. 103.
(8) SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. Tradução Octavio Mendes Cajado. São Paulo. Círculo
do Livro. [19--]. Pág. 235.
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