Eu queria comer algo de verdade. Eu havia acabado de sair da Bienal, em São Paulo. No evento, estavam vendendo sanduíches, cachorros-quentes e afins. Digo que isso não é comida de verdade. Longe de casa, num hotel que não servia almoço, perguntei para a funcionária da recepção onde eu poderia comer algo que não lembrasse um sanduíche. Ela me indicou um bar que fica bem em frente ao hotel, ao mesmo tempo em que parece ter lido em minha expressão uma certa incredulidade. Quando eu estava prestes a deixar a recepção do hotel, a funcionária disse: “É bar, mas servem comida”.
Entrei e pedi uma cerveja. Eu me sentei perto do cubículo em que o cozinheiro estava fritando um peixe. Olhando para a panela, contemplei um pedaço de salmão. Pedi a ele (não ao salmão, mas ao cozinheiro) que preparasse também para mim um salmão. Pedi ainda que houvesse pouca salada e pouco arroz. Enquanto a comida estava sendo preparada, eu ia tomando a cerveja.
O próprio cozinheiro me serviu o que ele havia preparado. Perguntou-me se eu queria outra cerveja; pedi um refrigerante. Ele foi pegá-lo. Tendo voltado, perguntou de onde eu era. Eu disse que era de Minas Gerais. Ele quis saber se eu era de Belo Horizonte. “Não, de Patos de Minas”, eu disse. Respondendo à minha pergunta sobre de onde ele era, o cozinheiro disse: “Sou de Alagoas, terra do Graciliano Ramos”.
A partir daí, iniciamos conversa sobre escritores e sobre literatura. Heleno, cozinheiro e dono do bar, já leu muito. Tem quarenta anos. Mora em São Paulo desde os dezesseis. Desde então, trabalhou em hotéis durante boa parte desse tempo. Há cinco meses, deixou o ramo hoteleiro e abriu o bar. Heleno não tem curso superior. Segundo ele, começou a estudar gastronomia, mas não terminou o curso. À medida que ele ia conversando, eu ficava impressionado com a familiaridade que ele demonstrava ter não somente com os autores do nordeste, mas também com os demais escritores nacionais e internacionais.
Ele mencionou Sade, Drummond, Machado, João Cabral, Cecília Meireles, Llosa, Suassuna... Dos autores de que falava, comentava os livros que havia lido, citava trechos, fazia referência a cenas.
Ele mencionou Sade, Drummond, Machado, João Cabral, Cecília Meireles, Llosa, Suassuna... Dos autores de que falava, comentava os livros que havia lido, citava trechos, fazia referência a cenas.
A conversa rendia. Quanto mais a gente batia papo, mais eu me surpreendia com o vasto conhecimento que Heleno tem da literatura universal. Num certo momento, perguntei-lhe se escrevia. Segundo o que respondeu, não, mas que tinha vontade de se arriscar. Tentei encorajá-lo para que começasse.
Os demais fregueses do bar já estavam se alimentando. Quando queriam pedir algo, eram atendidos pela esposa de Heleno. Quando um novo freguês chegou, pedindo uma refeição, o dono do bar se afastou. Quando voltou, continuamos nossa conversa sobre escritores.
Quando eu já estava quase terminando minha refeição, o dono do bar me perguntou se eu gostava de futebol. Tive a impressão que o tom dele era de quem não acreditava que gosto de futebol. “Sou cruzeirense; e você?” Ele é flamenguista. A partir daí, passamos a falar de futebol.
Eu e ele não tivemos o privilégio de assistir nem ao Santos de Pelé nem ao Botafogo de Garrincha. Mesmo assim, elencamos os melhores times que presenciamos. Depois de ponderações, cortes e argumentos, chegamos a esta lista: o Flamengo de 1981, o São Paulo do Telê, o Palmeiras de meados da década de noventa, o Corinthians de 1998 e o Cruzeiro de 2003. Meu companheiro de conversa fez a ressalva: “Mas aquele time do Atlético mineiro do começo da década de oitenta, o time do Reinaldo, era um baita time”.
Achei curioso ele se lembrar tão nítido do Flamengo e do Atlético do comecinho da década de oitenta, pois, se tem quarenta anos, ele tinha uns seis quando esses times brilharam. Quando falamos do rubro-negro, dei a escalação do time, só que fora de ordem. Heleno escalou os jogadores nas posições que ocupavam, encostando o indicador da mão direita na mesa do bar, indicando onde estariam os atletas, como se a mesa fosse um campo de futebol.
Enquanto conversávamos, tive a ideia de dar a ele um exemplar de meu livro Dislexias. Assim que paguei a conta, atravessei a rua, fui ao quarto do hotel e peguei o livro. Voltei ao bar, fiz a dedicatória. Heleno a leu, me agradeceu e disse que faria questão de fazer a leitura. É gratificante imaginar que poderei ser lido por ele.
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