A foto que retrata a menina Hudea, de quatro anos, correu o mundo. O autor é Osman Sağırlı; o registro é de dezembro do ano passado, embora só tenha se tornado conhecido mundialmente de uma semana para cá. Sağırlı tirou a foto na Síria; Hudea é uma das vítimas da guerra civil no País.
O fotógrafo explicou que ao apontar a câmera para a menina, ela levantou os braços, supondo que câmera e lente fossem alguma arma. A imagem é impressionante. Tudo nela assusta. A espontaneidade infantil de Hudea, no caso da foto, depõe contra nós e mostra a feiura do que somos capazes.
Se estamos aptos a causar uma reação dessas numa criança, de quantas provas ainda precisaremos para assumirmos que não demos certo? A foto de Sağırlı revela um momento que deveria servir para que parássemos o mundo.
O que torna a imagem mais impressionante é que não há sangue nela, não há vísceras, não há sinais aparentes nem visíveis de destruição, de violência. Já conspurcada por nós, adultos, a garota imita um gesto que é nosso. Esse não é o tipo de coisa que Hudea deveria ter aprendido conosco.
Sem querer, a menina de quatro anos esfrega na nossa cara o fiasco do mundo que fizemos para nós. Ela encara a lente, que na cabeça dela é algo que pode tirar a vida, mesmo sem ela ter ainda uma dimensão maior do que é a vida. Hudea olha a lente, Hudea nos olha. Parece estar a um átimo do choro.
Em 1972, Huynh Cong “Nick” Ut tirou a foto de Kim Phuc, que, aos nove anos, fugia de um vilarejo no Vietnã, após sofrer ferimentos causados por explosivos. A imagem de Kim Phuc e de outras crianças fugindo das consequências de uma guerra não foram o bastante para que tentássemos um novo caminho. Não satisfeitos, produzimos o gesto e a expressão de Hudea.
Vergonhoso já é nós, adultos, destruirmo-nos dia a dia, às vezes de modo sutil, às vezes com violência de feras. Não temos nem a “honradez” de fazer com que sejamos as únicas vítimas de nosso ridículo e pífio torvelinho. Incapazes de nos entendermos, temos de fazer com que crianças paguem pela nossa indecência.
Brás Cubas tentou se esquivar: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. Pelo menos na frase seguinte, não vou me eximir. Hudea, Kim Phuc ou João Hélio Fernandes são o legado da minha miséria, da sua miséria, da miséria de quem é gente. Todavia, amanhã é um novo dia. Tenho a convicção de que acordarei pronto para nada mudar.
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