Meu jeito de ser é profundamente influenciado pelas leituras começadas na adolescência. Se por um lado me dediquei a livros para os quais eu ainda não estava pronto, por outro, essas mesmas leituras deixaram marcas indeléveis. É claro que não sei como eu seria se não tivesse havido tais leituras, mas não consigo me imaginar sem elas. Não sei o que há de sorte nem o que há de mérito nas escolhas de leitura que comecei a fazer por volta dos doze, treze anos. Do que sei, é que agradeço à vida por essas leituras terem existido.
Não estou certo de onde vem meu interesse por biografias. Pode ser que ele seja consequência das leituras que comecei a fazer sobre o Renascimento. Quando dessas leituras, eu não tinha a dimensão histórica; o que me fascinava era somente o ecletismo, a diversidade de tarefas a que os gênios do período se dedicavam. Esse fascínio acabou me levando a não engavetar o conhecimento, levou-me a valorizar tanto a arte quanto a ciência, a buscar uma mescla das duas. Ainda bem jovem, adquiri o que chamo de senso de ecletismo.
Enquanto eu devorava biografias (tendo adquirido gosto pelo gênero, passei a ler não somente sobre os renascentistas), certo dia eu me deparei, no trabalho, com uma velha revista de divulgação científica. Uma das matérias que compunham a publicação se chamava “Gênios idiotas”: era sobre pessoas que têm uma enorme habilidade mental para determinada tarefa (fazer cálculos complexos de cabeça, por exemplo), mas que se embaralham diante de tarefas simples. Outra matéria discorria sobre a memória.
Eu nunca soube o nome da revista, que não tinha capa nem contracapa; as páginas internas não continham identificação. Até há bem pouco tempo essa revista estava em meio a velhos papéis; não sei onde pode estar agora. De qualquer modo, a gana por esse tipo de leitura se esbaldou quando a revista Superinteressante foi lançada. Por anos fui leitor do periódico, que eu aguardava com ânsia e devorava com fervor. Paralelamente, eu prosseguia com a leitura de biografias. Passei a ler a coleção O pensamento vivo, publicada pela Martin Claret. Meu primeiro contato com Borges foi por intermédio dessa coleção.
Meu pai tocava violão, gostava de escutar rock. Cresci ao som de Beatles, Led Zeppelin, Pink Floyd... Na adolescência, tendo já sedimentado o gosto pela leitura, foi natural, em função da convivência com a música, que eu acabasse tendo contato com a revista Bizz, que também li com entusiasmo por anos e anos. A leitura da Bizz e da Superinteressante acabaram fazendo com que eu me tornasse também um leitor de revistas. Atualmente, leio a Piauí. Da leitura de periódicos, de biografias, de filosofia e de literatura veio o que chamei de senso de ecletismo.
Ao mesmo tempo, um outro senso ia se formando, solidificando-se: chamo-o de senso de rebeldia. Eu o devo também às leituras: não venho de estirpe rebelde, contestadora. Não me lembro, por exemplo, de meu pai criticar a ditadura militar, embora também não me lembre de ele a elogiar. Mesmo procurando estar informado, principalmente escutando rádio, meu pai não me parecia interessado em política. Se era, esse interesse não transparecia em casa. Pelo menos por aqui, o que o absorvia era mesmo a música.
Todavia, o senso de rebeldia a que me referi não é estritamente, digamos, político. Num sentido amplo, é bem verdade que toda ação pode ser interpretada como sendo política; ainda assim, desde cedo foi se esboçando em mim uma desconfiança dos meios de comunicação (desconfiança essa que é maior do que nunca), das versões ditas oficiais e do comportamento das turbas, que não raro são produto do que a mídia determina. O que considero rebeldia está mais interessado na "sujeirinha", na imperfeição, mais ligado na “nódoa no brim”, expressão com que Bandeira definiu a poesia. Na adolescência, ler sobre e escutar o legado de gente como Renato Russo ou Ian Curtis intensificaram essa rebeldia.
Há por fim o que chamo de senso do belo. Eu o devo graças à convivência com a ciência, com a filosofia, com a ficção e com a poesia. Ensinaram-me o cosmopolitismo, deram-me a capacidade de me espantar com sutilezas, de não hierarquizar as áreas do conhecimento, de entender que em essência somos os mesmos. Desde quando eu era bem jovem, a literatura e a filosofia me incutiram uma ideia de coletividade, de pertencimento. A rigor, esse pertencimento poderia ser outro senso, mas o deixo como consequência do senso do belo. Existe beleza em constatar que “as pessoas são as mesmas aonde quer que você vá”, como na letra de “Ebony and ivory”.
Não exagero se digo que sou resultado do que tenho lido. O que sou, o que penso e o que faço são consequências de minha convivência com as palavras, que me deixam mais lúcido, que fazem com que eu fique de bem comigo mesmo, aceitando-me sem comodismo. Não deletei utopias. À medida que a gente vai envelhecendo, vai ficando cada vez mais com os pés no chão, o que é benéfico. Mas, graças à convivência com livros, não joguei fora a rebeldia que é sonhar.
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