Ontem, lendo um ensaio do Jorge Luis Borges, eu me deparo com uma
referência dele a Mark Van Doren, intelectual americano. Segundo Borges, Van
Doren foi, em meados do século XX, um dos poucos a reconhecerem a diferença abismal
entre o Walt Whitman cidadão e o Walt Whitman poeta. Escreve Borges sobre
Whitman: “Passar do orbe paradisíaco de seus versos à insípida crônica de seus
dias é uma transição melancólica”.
É a ideia, mencionada por Borges não somente no ensaio em
que ele refere-se a Van Doren, de que é preciso separar o homem de sua obra. A
vida do homem pode ser, para me valer do termo borgiano, insípida, sem que
contudo sua obra o seja; ou o sujeito pode ser, por exemplo, um calhorda, e ainda
assim produzir algo genial.
A rigor, não era disso que eu queria falar. Todavia, essa
temática que envolve o homem e seu trabalho é por demais fascinante para mim;
daí, acabei me deixando levar por digressões. Mesmo assim, minhas digressões são
curtas; eu as resolvo em poucas frases. Não tenho talento para ser um Laurence
Sterne.
Do que eu queria falar mesmo era de Charles Van Doren, filho
de Mark Van Doren. Van Doren, o filho, é personagem de “Quiz Show — a verdade
dos bastidores” [Quiz Show, 1994]. A direção é de Robert Redford. Ralph Fiennes
interpreta Charles Van Doren. O filme tem por base o livro “Remembering
America: A Voice from the Sixties”, escrito por Richard N. Goodwin.
Baseado em história real, “Quiz Show” conta com a
participação de Charles Van Doren num programa de perguntas e respostas que
fazia muito sucesso na TV americana no fim da década de 50. Van Doren torna-se
celebridade na TV, é capa da Time, da Life. O sucesso de Van Doren faz com que
a emissora o queira por mais tempo. Há então uma proposta: ele passaria a saber,
de antemão, as respostas. Charles Van Doren topa; torna-se, assim, um engodo
assistido por milhões.
A manipulação midiática surgiu junto com a própria mídia. Na
fotografia, por exemplo, às vezes atribui-se, ingenuamente, a manipulação de imagens
ao advento do Photoshop. Que nada! Digite aí no Google “Os trinta Valérios” e confira
o que Valério Octaviano Rodrigues Vieira fez, ludicamente, em 1901! Manipulações
são tão velhas quanto os meios em que estão presentes. Elas podem ser
divertidas, podem ter caráter didático. Ou podem ser deletérias, como é o caso
mostrado em “Quiz Show”.
No mais, releve as digressões. Geralmente, não as permito
em texto meu, embora as admire em textos alheios. Mas neste aqui fui, para me
valer de expressão antiga, “escrevendo ao sabor da pena”, ainda que digitando
em velho computador. No fundo, acho que não sei escrever de modo digressivo;
banindo digressões, mantenho a ilusão de que estou no controle absoluto do que
escrevo.
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