segunda-feira, 31 de março de 2014

INFIEL



Ayaan Hirsi Ali nasceu na Somália, em 1969. De família muçulmana, seu destino já estava traçado: obedecer ao que prescreve o Corão, obedecer aos homens, casar-se com quem escolhessem para ela. Ainda menina, devido às tradições de que foi vítima, passou por clitorectomia.

Ela é autora do estupendo Infiel, publicado pela Companhia das Letras. Autobiográfica, a obra relata a vida de Ayaan Hirsi Ali desde a infância, num mundo arcaico e cheio de costumes anacrônicos, assolado por conflitos bélicos, até a fuga para a Europa, a carreira política na Holanda (foi deputada por lá) e o atual exílio nos Estados Unidos.

Infiel muda de tom quando Ayaan Hirsi Ali começa a falar de sua carreira política na Holanda. Se antes de contar sua incursão em trâmites políticos sua dolorida biografia era narrada sem questionamentos mais profundos, a partir do momento em que nos conta sua jornada política, a escritora não se furta a analisar temas controversos, como o islamismo que herdara; hoje, após anos de reflexão, Hirsi Ali se declara ateia. 

Ela também conta o episódio em que um amigo dela foi assassinado depois de dirigir um curta-metragem cujo roteiro é de Ayaan Hirsi Ali. Submissão, o nome do curta, tem direção de Theo van Gogh, que seria assassinado por causa da feitura do vídeo. Hirsi Ali passou a receber ameaças de morte. O vídeo está no Youtube: bastar digitar o nome dela e a palavra “submission”.

A autora deixa claro: (...) “Nós, no Ocidente, fazemos mal em prolongar desnecessariamente a dor dessa transição [a transição para o mundo moderno], alçando culturas repletas de farisaísmo e ódio à mulher à estatura de respeitáveis estilos de vida alternativos”. Hirsi Ali desaprova a complacência ocidental para com um sistema “incompatível com os direitos humanos e os valores liberais”, nas palavras dela.

Infiel fez com que eu olhasse de um modo menos desconfiado para o Ocidente. Não que eu tenha passado a aprovar as crueldades desse Ocidente, seja no Oriente, seja na África, seja no próprio Ocidente. Entretanto, o livro fez com que eu reconhecesse de modo mais nítido conquistas “simples”, como a liberdade de me exprimir.

Ayaan Hirsi Ali escreveu um livro essencial. Também via Youtube é possível ter acessos a debates de que ela participou. Infiel é o retrato de uma mulher notável. Ela teve malária, pneumonia; teve a genitália mutilada, teve uma faca na garganta num assalto, teve o crânio fraturado por um professor de Alcorão. Reflete a autora: “Quantas moças nascidas no Hospital Digfeer, em Mogadíscio, em novembro de 1969, ainda estão vivas? E quantas têm voz, realmente?”. Ainda bem que Hirsi Ali lutou para achar a dela.

2 comentários:

Hellen Dirley disse...

Lívio,

Eu já havia relatado em nossas conversas, ser este um dos meus livros prediletos. É de fato uma obra extraordinária.
A Ayaan tem um desmedido talento para descrever e infundir sentimentos que instigam a vontade de ler de uma única vez a autobiografia.
É um livro que desperta a curiosidade e permite compreender um pouco melhor a cultura do Oriente.
Estou muito feliz com os seus comentários.

Lívio Soares de Medeiros disse...

Olá, Hellen.

Sim, você já havia falado muito bem do livro para mim.

Também gostei do modo como ela narra a trajetória dela, ao mesmo tempo tão sofrida e tão vitoriosa. Hoje mesmo, via Youtube, assisti a um debate com ela. E vou encomendar em breve o livro "The caged virgin", que tem ensaios da autora.

Valeu mesmo pela indicação da leitura.