Ismael, um grande amigo, entrou em contato comigo via e-mail. Escreveu o Ismael: “Com a disseminação das máquinas digitais nos últimos anos muitos rituais bizarros surgiram, tudo precisa ser fotografado”. No fim de sua mensagem, o amigo propôs: “Gostaria que você opinasse sobre como essa compulsão pelo registro tem afetado a fotografia artística”.
Obrigado a você, Ismael, por me pedir que eu opinasse sobre essa questão. Gosto muito de pensar sobre o ato fotográfico, bem como de escrever sobre ele. Tomo a liberdade de tornar pública minha resposta para seu questionamento.
A compulsão pelo registro a que o Ismael se refere está ligada ao que alguns chamam de a banalização da fotografia. No tempo em que se fotografava com filme, este abarcava, por exemplo, trinta e seis fotos. Perder um negativo, que significava perder uma foto, era motivo de lamento. Mesmo quem não era fotógrafo, teoricamente tomava um certo cuidado antes de tirar qualquer foto. Na maioria dos casos, por questões mais financeiras do que supostamente artísticas.
O advento da fotografia digital eliminou esse cuidado. Tenha a pessoa gostado ou não do que aparece no visor, ela vai clicando, clicando... O não fotógrafo não pensa sobre o resultado do clique; não há nele a noção de que a imagem fotográfica começa antes que o dedo pressione o obturador. Ele fotografa de modo indiscriminado.
Por causa da tecnologia digital, hoje se fotografa muito mais. Uma charge veiculada na internet há algum tempo mostra alguém se afogando, debatendo-se na água e gritando por socorro. À beira do rio, algumas pessoas, todas elas ocupadas em... registrar o momento com seus celulares. A charge ilustra o que o Ismael chamou de “rituais bizarros”, em que tudo é fotografado.
Esse aumento na quantidade de fotos que são tiradas não implica necessariamente melhoria na qualidade das imagens. A maioria das pessoas que fotografam seu cotidiano, ansiosas para postarem sua intimidade no Facebook, não se preocupa com a qualidade do registro fotográfico. Nesses casos, o que vale não é a fotografia em si mesma, mas a exposição de si mesmo.
Embora haja toda uma questão antropológica, sociológica, filosófica e psíquica a ser analisada nesse excesso de exposição da intimidade, não é disso de que trata este texto. A questão aqui é sobre um suposto impacto desse excesso de cliques na fotografia que se quer artística.
O fato de mais e mais pessoas estarem fotografando tem o lado bom: isso pode fazer com que, em tese, mais pessoas queiram aprender sobre fotografia. O sujeito pode comprar uma câmera compacta qualquer e começar a atirar para todo lado. Num belo dia, num disparo, descobre-se querendo aprender, querendo se tornar fotógrafo.
Entretanto, não é o que a maioria quer. O interesse maior é, reitero, divulgar-se. Mas esse excesso de imagens que assola o mundo não significa a derrocada do ato de fotografar, não importa se a fotografia esteja sendo considerada arte ou não esteja.
Não sei dizer se a fotografia é arte. Ela pode ser bela, é verdade, mas não sei se isso faz dela um trabalho de arte. Mesmo assim, digo: aquele que em essência é um fotógrafo sempre vai ter a preocupação de fazer a melhor foto do mundo. Para quem tem em si o germe da fotografia, nenhuma foto é um mero clique, não importa o que esteja sendo fotografado.
Mesmo em tempos de redes sociais a detonar exibicionismos, vaidades e narcisismos, a essência da fotografia não foi banida, ainda que não tenha presença maciça, ainda que não seja nem cogitada pela maioria. Mesmo nos tempos da fotografia com filmes, isso a que chamo de a essência da fotografia estava ausente da maioria das pessoas.
Já escrevi noutro texto: quem tem em si a essência da fotografia sabe que uma imagem gravada num dispositivo qualquer começa muito antes que um mecanismo qualquer seja acionado. O registro é a consequência de pensamentos, teorias, referências, estudos, treino, leituras... Há uma sensibilidade fotográfica, bem como uma técnica fotográfica. A fotografia digital não baniu isso.
Se você considera a fotografia como sendo arte, digo: há artistas na fotografia. Insisto na ideia de que, em essência, o ato de fotografar não mudou, mesmo hoje isso sendo feito com equipamento digital. As técnicas da fotografia continuam valendo para hoje, ainda que vivamos em tempos de equipamentos digitais e de Photoshop.
Retoques e tratamentos em imagens não surgiram com o advento do digital, mas quem tem em si o germe da fotografia sabe (e sempre soube) que a excelência de uma fotografia é a consequência ou o ponto alto de tudo o que a pessoa é. Ainda que num autorretrato, o fotógrafo que tem em si a essência da fotografia leva em mente o desejo de fazer um registro que contenha excelência (ideia sobre a qual também já escrevi).
Há algum tempo, assisti a uma matéria em que a Annie Leibovitz elogiava a qualidade das imagens produzidas a partir de um celular. A fim de ilustrar a opinião dela, Leibovitz tirou com um desses celulares uma foto do entrevistador. Na edição que fizeram, a foto dele foi mostrada durante a conversa dos dois. A composição da imagem, como era de se esperar, foi primorosa. Ou seja: mesmo fotografando com um celular, ela teve o capricho e a competência de compor o quadro.
Se por um lado a tecnologia das redes sociais e a praticidade da fotografia digital trivializaram os cliques, por outro lado isso não baniu a possibilidade de se criar a beleza por intermédio da fotografia. O que o Ismael chama de “fotografia artística” permanece, lidando com ideais diferentes de desejos estritamente narcísicos.
2 comentários:
Poxa, Lívio, que baita aula, cara. Meu pedido foi mais do que atendido.
Não há dúvida: você é um dos grandes, assim como Sebastião Salgado e Don McCullin, daqueles que fotografam também com o coração.
Muito obrigado.
Grande abraço,
Ismael.
Não há o que agradecer, Ismael. Como dito, seu e-mail me de o oportunidade de escrever mais uma texto sobre fotografia, e isso é algo de que gosto muito.
Uau, obrigado por me comparar com os mestres McCullin e Salgado.
Valeu.
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