Assisti a uma das adaptações do livro “As relações perigosas” para o cinema. A trama de Choderlos de Laclos já esteve nas telas em 1959, sob responsabilidade do diretor Roger Vadim; em 1989, pelas mãos do diretor Milos Forman; em 1999, em trabalho do diretor Roger Kumble; e em 1988, sob direção de Stephen Frears.
“As relações perigosas” foi o primeiro filme que Frears dirigiu em Hollywood. Os cenários são suntuosos e o figurino é impecável – a película levou Oscar de melhor figurino e melhor roteiro adaptado, escrito por Christopher Hampton. Esse roteiro cinematográfico é adaptação de peça teatral escrita pelo próprio Hampton.
É importante ressaltar que no poderoso livro de Laclos, a trama vai se desenvolvendo por intermédio de cartas. Trechos dessas cartas compuseram a base dos diálogos no roteiro de Hampton. Como sempre, as comparações entre livro e filme são inevitáveis, mesmo tendo-se em mente que cinema e literatura são diferentes meios de expressão.
Antes mesmo de começar a assistir ao filme, fiquei pensando nas saídas que diretor e roteirista teriam pensado ao levar para a tela o universo de Laclos. Eu estava curioso para saber como confeririam densidade aos personagens do livro.
É que Laclos não tem pressa. As seduções a que se dedicam a Marquesa de Merteuil e o Visconde de Valmont são lentas, calculadas, malévolas e devastadoras. Eu não diria que eles não têm a capacidade de amar. São capazes de amor (contudo, o próprio Laclos escreveu em carta para uma amiga que a Marquesa de Merteuil era incapaz de amar), embora a própria marquesa vaticine, na tradução de Carlos Drummond de Andrade: “Aonde nos conduz, pois, a vaidade! Tem toda a razão o sábio, quando diz que ela é inimiga da felicidade”.
O Visconde de Valmont e a Marquesa de Merteuil frequentam requintados ambientes e têm um diabólico poder de sedução. Ambos sabem jogar, exercem com elegância e inteligência o encanto que sabem que têm. Conhecem suas qualidades e conhecem o sexo oposto. Tramam, mentem.
Já Cécile Volanges é adolescente, ingênua demais. Presa fácil nas teias do conde e da marquesa. Outra personagem, a Presidenta de Tourvel, casada e fervorosa católica, bem poderia ser a redenção do amor, mas também sucumbe à perversidade dos dois. O próprio Laclos escrevera a uma amiga: “O quadro que eu pinto é entristecedor, concordo, mas é verdadeiro”.
Frears levou para a tela a personalidade dos atores principais. Contudo, as duas horas de filme obrigam o diretor a condensar, a cortar, a ser rápido. Em alguns momentos, chegou a me ocorrer que eu acharia a trama confusa caso não tivesse lido o livro, que nos oferece maior possibilidade de tempo de convivência com os personagens e com o enredo. Sou naturalmente lento ao acompanhar enredos intrincados, e por vezes achei meio confusa a trama no filme – o que não me ocorreu no livro.
Nada sei da peça teatral que foi adaptada para que o filme fosse realizado. Mas como se trata de uma produção rodada em Hollywood, penso ter havido uma série de pressões por parte de estúdio, produtores etc para que a história se tornasse um pouco mais palatável.
No filme de Frears, há uma espécie de discurso do visconde (John Malkovich), já no fim, que me soou muito redentor. O destino da marquesa (Glenn Close) no filme, embora vexatório, é menos trágico do que o destino que lhe cabe no livro.
Claro que tenho em mente que adaptações e ajustes têm de ser feitos, pois que cinema e literatura são linguagens diferentes. À parte isso, o filme não alcança a perversidade e a amarga ironia que o livro tem. Quando os créditos começaram, fiquei pensando no fim comportadinho, digamos assim, do filme, mesmo levando-se em conta o destino trágico de uma personagem virtuosa como a Presidenta de Tourvel.
Com outras palavras: terminado o filme, fica-se com aquele pensamento simplista, a que me referi em postagem anterior sobre o livro de Laclos, de que os maus serão punidos. A despeito dos destinos trágicos da marquesa e do visconde, insisto na ideia de que o livro é profunda e tristemente irônico e sarcástico.
Não somente por causa do personagem Prévan (a que também fiz referência na postagem sobre o livro), que está ausente do filme, mas também pelo prefácio fictício que compõe a obra de Laclos. Nesse prefácio, um editor afirma que falta verossimilhança às cartas, chegando a escrever: “Com efeito, muitas personagens postas em cena têm tão maus costumes que é impossível supor hajam vivido em nosso século; neste século de filosofia, em que as luzes [o livro foi publicado no século XVIII, o século do Iluminismo], espalhadas por toda parte, tornaram, como se sabe, todos os homens tão honestos e todas as mulheres tão modestas e reservadas”.
Tudo muito cínico e tragicamente hilariante. Seria o mesmo que eu criar personagens com "tão maus costumes", valendo-me das palavras do prefácio, vivendo em Patos de Minas e inventar eu mesmo um prefácio dizendo que obviamente o autor se engana, pois que numa cidade tão civilizada como a Patos de Minas de hoje não há maus costumes, não há vaidade. Faltou ao filme esse cinismo.
“As relações perigosas” foi o primeiro filme que Frears dirigiu em Hollywood. Os cenários são suntuosos e o figurino é impecável – a película levou Oscar de melhor figurino e melhor roteiro adaptado, escrito por Christopher Hampton. Esse roteiro cinematográfico é adaptação de peça teatral escrita pelo próprio Hampton.
É importante ressaltar que no poderoso livro de Laclos, a trama vai se desenvolvendo por intermédio de cartas. Trechos dessas cartas compuseram a base dos diálogos no roteiro de Hampton. Como sempre, as comparações entre livro e filme são inevitáveis, mesmo tendo-se em mente que cinema e literatura são diferentes meios de expressão.
Antes mesmo de começar a assistir ao filme, fiquei pensando nas saídas que diretor e roteirista teriam pensado ao levar para a tela o universo de Laclos. Eu estava curioso para saber como confeririam densidade aos personagens do livro.
É que Laclos não tem pressa. As seduções a que se dedicam a Marquesa de Merteuil e o Visconde de Valmont são lentas, calculadas, malévolas e devastadoras. Eu não diria que eles não têm a capacidade de amar. São capazes de amor (contudo, o próprio Laclos escreveu em carta para uma amiga que a Marquesa de Merteuil era incapaz de amar), embora a própria marquesa vaticine, na tradução de Carlos Drummond de Andrade: “Aonde nos conduz, pois, a vaidade! Tem toda a razão o sábio, quando diz que ela é inimiga da felicidade”.
O Visconde de Valmont e a Marquesa de Merteuil frequentam requintados ambientes e têm um diabólico poder de sedução. Ambos sabem jogar, exercem com elegância e inteligência o encanto que sabem que têm. Conhecem suas qualidades e conhecem o sexo oposto. Tramam, mentem.
Já Cécile Volanges é adolescente, ingênua demais. Presa fácil nas teias do conde e da marquesa. Outra personagem, a Presidenta de Tourvel, casada e fervorosa católica, bem poderia ser a redenção do amor, mas também sucumbe à perversidade dos dois. O próprio Laclos escrevera a uma amiga: “O quadro que eu pinto é entristecedor, concordo, mas é verdadeiro”.
Frears levou para a tela a personalidade dos atores principais. Contudo, as duas horas de filme obrigam o diretor a condensar, a cortar, a ser rápido. Em alguns momentos, chegou a me ocorrer que eu acharia a trama confusa caso não tivesse lido o livro, que nos oferece maior possibilidade de tempo de convivência com os personagens e com o enredo. Sou naturalmente lento ao acompanhar enredos intrincados, e por vezes achei meio confusa a trama no filme – o que não me ocorreu no livro.
Nada sei da peça teatral que foi adaptada para que o filme fosse realizado. Mas como se trata de uma produção rodada em Hollywood, penso ter havido uma série de pressões por parte de estúdio, produtores etc para que a história se tornasse um pouco mais palatável.
No filme de Frears, há uma espécie de discurso do visconde (John Malkovich), já no fim, que me soou muito redentor. O destino da marquesa (Glenn Close) no filme, embora vexatório, é menos trágico do que o destino que lhe cabe no livro.
Claro que tenho em mente que adaptações e ajustes têm de ser feitos, pois que cinema e literatura são linguagens diferentes. À parte isso, o filme não alcança a perversidade e a amarga ironia que o livro tem. Quando os créditos começaram, fiquei pensando no fim comportadinho, digamos assim, do filme, mesmo levando-se em conta o destino trágico de uma personagem virtuosa como a Presidenta de Tourvel.
Com outras palavras: terminado o filme, fica-se com aquele pensamento simplista, a que me referi em postagem anterior sobre o livro de Laclos, de que os maus serão punidos. A despeito dos destinos trágicos da marquesa e do visconde, insisto na ideia de que o livro é profunda e tristemente irônico e sarcástico.
Não somente por causa do personagem Prévan (a que também fiz referência na postagem sobre o livro), que está ausente do filme, mas também pelo prefácio fictício que compõe a obra de Laclos. Nesse prefácio, um editor afirma que falta verossimilhança às cartas, chegando a escrever: “Com efeito, muitas personagens postas em cena têm tão maus costumes que é impossível supor hajam vivido em nosso século; neste século de filosofia, em que as luzes [o livro foi publicado no século XVIII, o século do Iluminismo], espalhadas por toda parte, tornaram, como se sabe, todos os homens tão honestos e todas as mulheres tão modestas e reservadas”.
Tudo muito cínico e tragicamente hilariante. Seria o mesmo que eu criar personagens com "tão maus costumes", valendo-me das palavras do prefácio, vivendo em Patos de Minas e inventar eu mesmo um prefácio dizendo que obviamente o autor se engana, pois que numa cidade tão civilizada como a Patos de Minas de hoje não há maus costumes, não há vaidade. Faltou ao filme esse cinismo.
Ainda no elenco, Michelle Pfeiffer (que faz a Presidenta de Tourvel), Uma Thurman (no papel de Cécile Volange) e Keanu Reeves (como o Cavaleiro Danceny).
4 comentários:
Lívio, assisti a esse filme há tantos anos que já nem me lembro direito do que me desagradara, mas a trama também me pareceu confusa, o que, depois da mais recente provocação do Adriano, rapaz cuja falta de educação às vezes o faz parecer sensato, cheguei a atribuir à minha então tenra idade. Como sabe, há 20 anos eu mal havia saído dos cueiros.
Outra coisa que pode ter aumentado minha frustração foi o ruidoso lançamento em virtude do elenco, o que elevou as expectativas. Na época, o título até virou lugar-comum, e “relações perigosas” servia (e por vezes ainda serve) para anunciar toda sorte de escândalos e indiscrições.
Quanto ao livro, como você pretende reler a obra pela terceira vez, por que não o faz diretamente do original? Não deve ser difícil encontrá-lo na internet. A propósito, encontrei em casa uma edição traduzida por Sérgio Milliet, na qual não consta prefácio algum. Apenas uma nota no final em que o suposto editor lamenta não poder publicar o restante das cartas. Abs.
Manoel, eu não conferi o filme na época de seu lançamento. Pra falar a verdade, nem me lembro.
Quanto a ler no original, meu mínimo francês não me permitiria. E, de fato, há, sim, o texto original na íntegra na internet.
Não conheço a tradução de Sérgio Milliet. Quanto ao prefácio, que já é parte da ficção, ele é imprescindível! Estranha, a ausência dele em sua edição.
Caso queira, sinta-se à vontade pra pegar a edição que tenho.
Abraço.
Farei o empréstimo tão logo eu conclua a leitura de "Ragtime". Abraços.
Combinado, Manoel.
Abraço.
Postar um comentário