Pessoas, a versão eletrônica de meu recente livro, O Fim do Brasil, já está à venda. Nele, posiciono-me sobre o Brasil de hoje, em especial, de 2013 para cá. Em essência, é um livro político.
Se apenas o que é visível for levado em conta, o enredo de Moby Dick (1851) é simples: Ahab, o capitão de um navio, saindo de Nantucket, nos EUA, embarca com a intenção de se vingar de uma baleia que havia devorado uma das pernas dele. Claro, trata-se de um livro em que há aventura. Todavia, Herman Melville (1819-1891) não escreveu somente sobre o percurso de uma embarcação rumo ao que seria seu destino: ler o livro assim seria como singrar a superfície das águas do mar sem cogitar suas profundezas. Moby Dick, como todo grande livro, está aberto a diferentes leituras, que se renovam, que podem descortinar uma grandeza tão descomunal quanto a de um cachalote.
Quem narra a história é Ishmael, que estava a bordo do Pequod, o vingativo navio baleeiro chefiado por Ahab. Já em alto-mar, ele, durante discurso inflamado contra a baleia que anseia por matar e com a intenção de aliciar a tripulação para sua causa, é interpelado por Starbuck, o primeiro imediato, que menciona a insanidade que é vingar-se de uma baleia, criatura que atacara Ahab por instinto. Não concordando com Starbuck, Ahab vocifera: “Todos os objetos visíveis, homem, não passam de máscaras de papelão. Mas em todos os eventos — na ação viva, na façanha incontestável — revela-se alguma coisa desconhecida, mas racional, por detrás dessa máscara irracional” [1].
Para Ahab, o cachalote que o atacou agira premeditada e racionalmente. Ao longo do livro, Ahab e a tripulação do Pequod atribuem a Moby Dick, a baleia, adjetivos de que nos valemos para nos referirmos a coisas humanas. O livro de Melville pode ser lido como um embate do homem contra a natureza, mesmo ele preferindo ignorar que ele mesmo é essa natureza contra a qual luta; lutar contra a natureza é lutar contra si.
Ahab, junto à tripulação, num ódio que é tão forte quanto convincente, insiste em justificativas irracionais para matar uma criatura que não é dotada de razão humana. Ele enxerga na baleia o que ele tem em si, numa relação que não é especular, pois o gigantesco animal marinho não é dotado da ciência de que Ahab é. Quando do primeiro encontro entre eles, Moby Dick lutou pela vida, enquanto era atacada por Ahab e comandados. Ao engendrar sua canhestra vingança e nela envolver outras pessoas, pois sozinho não conseguiria levar a cabo sua intenção, Ahab torna-se aquele que age movido não pela inteligência, mas pelo ódio, pela vingança. Moby Dick atacou não porque odiava, mas porque instintivamente queria sobreviver. Ahab quer voltar a atacar não porque precisa, mas porque odeia. Moby Dick lutou pela vida; Ahab quer lutar pela morte.
Há outro aspecto muito instigante em Moby Dick, o de que Ahab conseguiu fazer com que uma coletividade embarcasse numa loucura individual. Das várias análises a que o livro pode se prestar, essa é uma das mais profícuas. Ahab envolve o grupo, a partir de fervoroso discurso feito no tombadilho, na causa dele, que é o mesmo que dizer que Ahab envolve o grupo no ódio, palavra essa usada pelo narrador, que é dele, Ahab. Assim, o ódio de um se torna o ódio dos outros; o ódio de um é comunicado para os outros. Ao comunicar seu ódio com retumbância, Ahab contagia os demais. Diz Ishmael:
“Assim, pois, estava esse velho homem [Ahab], grisalho e sem Deus, perseguindo com maldições a baleia de Jó ao redor do mundo, comandando uma tripulação composta basicamente de mestiços renegados, náufragos e canibais — também debilitados moralmente pela incompetência da mera virtude ou honradez perdida de Starbuck, pela invulnerável jovialidade, indiferente e despreocupada de Stubb [o segundo imediato], e pela mediocridade que prevalecia em Flask [o terceiro imediato]. Tal tripulação, com tais oficiais, parecia ser especialmente selecionada e reunida por uma fatalidade diabólica para ajudá-lo em sua vingança monomaníaca” [2].
Tem-se, então, um sujeito vingativamente louco que, não só pela força de seu argumento — há uma “fatalidade diabólica” na “equação” —, envolve os demais na loucura dele. Dizendo de outro modo, a tripulação do Pequod, também em função do acaso e das circunstâncias, estava “pronta” para as insanidades de Ahab. É evidente: um bando de ignorantes e simplórios embarcou na loucura de um... capitão... O acaso ou algo que não sabemos precisar fez com que aqueles homens estivessem naquela embarcação. Na sequência do trecho citado há pouco, Ishmael prossegue:
“Por quais motivos eles [a tripulação do Pequod] reagiram tão vigorosamente à ira do velho — que feitiço diabólico tomou conta de seus espíritos, a ponto de às vezes acreditarem ser sua a raiva de Ahab; e a baleia branca, inimiga inatingível, tão sua quanto dele; como é possível — o que a baleia branca representava para eles, ou como em sua compreensão inconsciente, de algum modo obscuro e insuspeito, ela parecia ter sido o grande demônio imperceptível dos mares da vida — para explicar isso tudo, seria necessário ir mais fundo do que Ishmael consegue” [3].
Moby Dick é tão inescrutável quanto a história que conta. O narrador conta o que sabe, ciente de que não conta tudo, pois há algo subjacente e que permanece indizível, imperscrutável, embora possa ser intuído. A baleia, o Pequod, o mar, Ahab... Tudo é símbolo. Para explicar tudo isso, seria necessário ir mais fundo do que Lívio consegue.
Linhas depois de Ishmael dizer que não alcança a plena compreensão do que narra, ele conta: “Quanto a mim, cedi ao abandono das circunstâncias e do lugar; e, ainda que estivesse apressado para enfrentar a baleia, não podia ver naquela criatura coisa alguma além de maldade mais fatal” [4]. O Pequod tornou-se um baleeiro louco singrando pelos mares a fim de matar um cachalote a quem o insano Ahab atribuíra a capacidade de raciocínio por trás da “máscara” de baleia.
A tripulação pratica ódio fomentado pelo comandante do navio. Antes de embarcarem no Pequod, aqueles homens simplórios já tinham vontade de odiar? A pergunta, retórica, é para dizer que as circunstâncias atuais, no Brasil, uniram o ódio de um (ou de alguns) com a latência cheia de ódio de muitos. Ahab tinha a eloquência. No Brasil de hoje, a fim de trazer à tona o ódio, ela não é mais necessária — basta que se odeie. Quanto mais toscamente esse ódio for propalado, mais eficaz o contágio será. Fosse o Pequod exatamente como o Brasil, bastaria a Ahab grunhir algumas palavras, pegar o bote e desafiar Moby Dick — e os demais seguiriam o capitão. O ódio de Ahab, por mais que ele alegue haver algo racional na baleia, é um ódio contra algo que não é humano, ainda que maléficas características humanas sejam dadas a esse algo. Capitães há que voltam seu ódio não contra cachalotes, mas contra pessoas. Melville já nos ensinou como histórias cheias de ódio acabam.
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[1] Melville, Herman. Moby Dick, ou A baleia. Tradução de Irene Hirsch e Alexandre de Souza. Prefácio de Albert Camus; posfácio de Bruno Gambarotto. São Paulo. Editora 34. 2019. Página 177.
Há uma violência que é evidente, como a que ocorre, por exemplo, quando o exército dispara centenas de tiros contra inocentes. Ainda que algum político diga que o exército não matou ninguém num caso como esse, isso é algo violento, bem como é violento um torturador ou quem quer resolver as coisas distribuindo porradas em quem faz perguntas que devem ser respondidas.
Todavia, há outro tipo de violência que é sorrateira, sub-reptícia, sutil, melindrosa. O objetivo dela é destruir a inteligência, a sagacidade, o pensamento, a ciência. Aliás, o objetivo dela é fazer com que essas conquistas estejam disponíveis para poucos. Pode-se acabar com uma rede de farmácias populares desde que os ricos possam se valer da ciência em hospitais particulares; pode-se taxar livros, impedindo o acesso do pobre à leitura, desde que os ricos possam enviar os filhos para serem formados no exterior.
A violência evidente é mostrada por intermédio da imprensa sensacionalista. É o sangue que jorra das telas de TV, que escorre das páginas dos jornais e que tinge as telas dos computadores. Já a violência sutil demanda alguma inteligência para ser percebida e algum esforço para ser criticada, o que aumenta sua eficácia. Como consequência, passa a ser louvada também por parte daqueles que são vítimas dela.