Ontem, no Teatro Municipal Leão de Formosa, às 21h, ocorreu o espetáculo teatral “O caderno secreto de Lori”. O evento fez parte do III Festival Nacional de Teatro Universitário. Abaixo, resenha que escrevi sobre a peça e também algumas fotos que fiz da apresentação.
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Arrebatamento. Foi o que senti quando a atriz Jéssica Azevedo terminou o espetáculo “O caderno secreto de Lori”. A peça teatral é uma adaptação do romance “O caderno rosa de Lori Lamby”, de Hilda Hilst.
Não conheço o livro de Hilst, de modo que não há como eu julgar a peça teatral sob o ponto de vista da adaptação. Do que sei, é que há muito um espetáculo teatral não me deixava tão impressionado.
A sinopse da peça, que está na programação do evento, já diz muito: “O espetáculo teatral ‘O caderno secreto de Lori’ aborda temas referentes à sexualidade humana, à relação do prazer e do desejo, ao abuso e exploração sexual infantil, à pedofilia, à erotização infantil e da mulher, ao consumismo, à banalização do sexo” (...).
Não é pouco para uma peça teatral. Contudo, a excelente atriz Jéssica Azevedo e o diretor Marcelo Rocco souberam conduzir com segurança temas tão melindrosos.
Assim que nós, o público, entramos no teatro, havia pequenas bonecas jogadas em todo o piso do recinto; algumas, despedaçadas. Já no palco, Jéssica, vestida como uma garota, segurava o que parecia ser um cabo de vassoura e ficava batendo com ele no chão, enquanto uma sinistra trilha sonora era executada. Logo de cara, sentia-se um clima bizarro, quase de terror.
Quando Jéssica começa a falar, executa sem afetação o papel de uma garota de oito anos e que vende seu corpo, incentivada pelos pais. Há na fala dela algo de doce, de infantil, de ingênuo. Contudo, nesse tom ingênuo, ela narra as seduções de que é vítima por parte dos adultos.
Isso gera um paradoxo, é estranho. Causa desconforto ver uma garota de oito anos falar, num tom inocente, sobre as relações sexuais que tem. Se o tom da voz é gracioso, infantil, gostoso de escutar, as experiências relatadas, por sua vez, destroem qualquer graça ou pitada de brincadeira do espetáculo – embora parte da plateia tenha dado risadas com os palavrões e descrições de cenas de sexo por parte de Lori.
O espetáculo é denso e triste. Há uma ironia amarga quando a gente olha para o palco e vê uma criança relatar experiências que tem com adultos inescrupulosos. Percebe-se, por trás do tom cândido de Lori, uma criança que está, ainda que sem saber com exatidão, dilacerada – e pedindo socorro.
Há um momento em que Lori dança em cena. Mas é uma dança canhestra, mecânica, sem alma, sem viço, sem graciosidade, sem ritmo. Ela dança, é verdade, mas são movimentos toscos, pesados, sofridos. Logo após ela volta ao tom infantil, casual, inocente – mas sempre narrando os ardis de quem deveria estar cuidando dela.
O que se vê no palco é uma criança destruída pelo comportamento sexual dos adultos, pela publicidade perniciosa, pela erotização do corpo infantil. Lori é vítima. É por isso que não faz sentido achar graça do que ela conta, a despeito da naturalidade e da espontaneidade infantil que ela tem. Por trás de sua ternura de criança, há um corpo violentado e uma alma estraçalhada.
Na cena final, uma pessoa adulta vestida como um bicho de pelúcia entra em cena. Ele e Lori simulam sexo. A cena é perfeita no sentido de ilustrar o grotesco e o cruel do que a garota vinha narrando até então. Há algo de assustador na cena. Fosse uma pessoa que não estivesse fantasiada, talvez o momento não causasse tanto impacto. É um desfecho contundente e triste para um espetáculo denso e imprescindível.
A arte pode nos arrebatar. E pode ser um soco no estômago.
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Arrebatamento. Foi o que senti quando a atriz Jéssica Azevedo terminou o espetáculo “O caderno secreto de Lori”. A peça teatral é uma adaptação do romance “O caderno rosa de Lori Lamby”, de Hilda Hilst.
Não conheço o livro de Hilst, de modo que não há como eu julgar a peça teatral sob o ponto de vista da adaptação. Do que sei, é que há muito um espetáculo teatral não me deixava tão impressionado.
A sinopse da peça, que está na programação do evento, já diz muito: “O espetáculo teatral ‘O caderno secreto de Lori’ aborda temas referentes à sexualidade humana, à relação do prazer e do desejo, ao abuso e exploração sexual infantil, à pedofilia, à erotização infantil e da mulher, ao consumismo, à banalização do sexo” (...).
Não é pouco para uma peça teatral. Contudo, a excelente atriz Jéssica Azevedo e o diretor Marcelo Rocco souberam conduzir com segurança temas tão melindrosos.
Assim que nós, o público, entramos no teatro, havia pequenas bonecas jogadas em todo o piso do recinto; algumas, despedaçadas. Já no palco, Jéssica, vestida como uma garota, segurava o que parecia ser um cabo de vassoura e ficava batendo com ele no chão, enquanto uma sinistra trilha sonora era executada. Logo de cara, sentia-se um clima bizarro, quase de terror.
Quando Jéssica começa a falar, executa sem afetação o papel de uma garota de oito anos e que vende seu corpo, incentivada pelos pais. Há na fala dela algo de doce, de infantil, de ingênuo. Contudo, nesse tom ingênuo, ela narra as seduções de que é vítima por parte dos adultos.
Isso gera um paradoxo, é estranho. Causa desconforto ver uma garota de oito anos falar, num tom inocente, sobre as relações sexuais que tem. Se o tom da voz é gracioso, infantil, gostoso de escutar, as experiências relatadas, por sua vez, destroem qualquer graça ou pitada de brincadeira do espetáculo – embora parte da plateia tenha dado risadas com os palavrões e descrições de cenas de sexo por parte de Lori.
O espetáculo é denso e triste. Há uma ironia amarga quando a gente olha para o palco e vê uma criança relatar experiências que tem com adultos inescrupulosos. Percebe-se, por trás do tom cândido de Lori, uma criança que está, ainda que sem saber com exatidão, dilacerada – e pedindo socorro.
Há um momento em que Lori dança em cena. Mas é uma dança canhestra, mecânica, sem alma, sem viço, sem graciosidade, sem ritmo. Ela dança, é verdade, mas são movimentos toscos, pesados, sofridos. Logo após ela volta ao tom infantil, casual, inocente – mas sempre narrando os ardis de quem deveria estar cuidando dela.
O que se vê no palco é uma criança destruída pelo comportamento sexual dos adultos, pela publicidade perniciosa, pela erotização do corpo infantil. Lori é vítima. É por isso que não faz sentido achar graça do que ela conta, a despeito da naturalidade e da espontaneidade infantil que ela tem. Por trás de sua ternura de criança, há um corpo violentado e uma alma estraçalhada.
Na cena final, uma pessoa adulta vestida como um bicho de pelúcia entra em cena. Ele e Lori simulam sexo. A cena é perfeita no sentido de ilustrar o grotesco e o cruel do que a garota vinha narrando até então. Há algo de assustador na cena. Fosse uma pessoa que não estivesse fantasiada, talvez o momento não causasse tanto impacto. É um desfecho contundente e triste para um espetáculo denso e imprescindível.
A arte pode nos arrebatar. E pode ser um soco no estômago.
16 comentários:
Lívio,
Excelente crítica, numa visão bastante madura do espetáculo. Também gostei muito, aliás como leitor do romance da Hilda Hilst. Confesso que o espetáculo me ajudou a entender um pouco mais o texto da escritora. Enfim, um acréscimo e tanto. De fato, não é pouco para uma peça de teatro. Causa impacto, como poucos textos são capazes de provocar.
Parabéns pelas observações.
Luís André
Grato, Luís André. Abraço.
Lívio,
Já sentia saudades de sua voz no rádio... agora além de matar essa saudade ainda posso ouvir o som de suas fotos, o cheiro das imagens e ainda contemplar a leitura de sua fala heheheheh abraçao amigo...e PARABÉNS por mais esse espaço LIVIANO.
Grande Saulo, obrigado por ter conferido.
Ainda nesta semana, um novo programa estará por aqui.
Abraço.
Promessa é dívida, Lívio!
Muito sensíveis tanto o texto quanto as fotos. Sinto como se tivesse ido ao teatro.
A propósito, da próxima vez também vou levar minha câmera. Pelo que percebo, é um ótimo pretexto para assistir a espetáculos de graça. Abraços.
Beleza, Manoel. A segunda edição do programa já está pronta. Só falta ser postada.
Obrigado pelos elogios. É que o espetáculo é mesmo impressionante. Digo sem exagero que mal esperei chegar aqui pra escrever o texto.
Abraço.
Oi livíssimo, liviano... saudades imensas daquelas noites regadas a alcool e poesia... acalentada agora pelo som da sua voz! Muito bom poder te ouvir aqui na capital do país! Amei a resenha sobre o espetaculo, fiquei com vontade de assisti-lo...
Passando sempre por aqui, beijos e sucesso!
Raquel, que surpresa agradável você por aqui! E obrigado por ter conferido o programa também. Amanhã, pretendo postar mais um.
Quanto ao espetáculo, acredite: é um dos melhores que já conferi. Fiquei mesmo impressionado.
Vindo a Patos, dê sinal de vida.
Olá, Lívio.
Trabalho na produção de "O caderno secreto de Lori", mas não o acompanhei a Patos. Ótimo o texto e maravilhosas as imagens que você fez do espetáculo. Realmente muito sensível. Gostaria de pedir sua permissão para publicá-los, com os devidos créditos, no blog do espetáculo também.
Muito obrigada,
Lenise Moraes
Oi, Lenise. Sinta-se totalmente à vontade para publicar as fotos ou o texto.
Em tempo: deve sair no jornal local, neste fim de semana, uma outra resenha sobre o espetáculo, escrita por Luís André Nepomuceno, que é professor do Unipam. Caso sim, informo.
Quanto ao blogue da peça, gentileza me passar o endereço, para que eu o divulgue por aqui.
Grande abraço.
Oi Livio, a produtora do nosso espetáculo me falou do seu texto e fiquei muito reconfortado com o que disse. Haviamos sido tão atacados pelo juri, sob o ponto de vista moral, já que ele acreditou que fazíamos apologia sobre a pedofilia ,pois este mesmo juri não entendeu o teor sarcástico e irônico que trabalhamos o espetáculo. Mas fico feliz pelo o que disse, nós que trabalhamos com o trágicômico em espetáculos, passamos por este ar de dúvida e polêmica sempre. acho que você e eu conversamos pessoalmente após o espetáculo. obrigado.
Olá, Marcelo. Sim, conversamos sobre o espetáculo de vocês depois da apresentação.
Também não concordei de modo algum com a ideia de que a peça faça apologia à pedofilia - pelo contrário. Quando os jurados começaram a falar isso, confesso que me surpreendi.
Como dito em resposta para a Lenise, texto sobre a peça deve ser publicado em jornal local. Caso sim, peço ao autor que o envie pra vocês.
Grande abraço e, mais uma vez, parabéns demais pelo espetáculo, que está entre os melhores que já conferi.
Oi, Lívio.
A página da Lori é esta:
http://ocadernosecretodelori.blogspot.com/
Obrigada por divulgar.
Abraço,
Lenise Moraes
Grato pelo envio, Lenise. Vou publicar nota aqui remetendo ao blogue da peça.
Valeu.
ola,sinto não ter visto este comentario tão maravilhoso desta peça antes. eu sou suspeita pra falar,adoroooooo a Jessica como amiga e como atriz,ela é maravilhosa. a primeira vez que vi o espetaculo me surpreendi e fiquei tão "de cara" com esta realidade. o peça mostra a verdade que muitas crianças vivem sem nem saber que são violentadas,acham que são amadas,como disse a lori algumas vezes; "meu tio Abel me ama". Em relaçao as criticas,nem Jesus agradou a todos! fico triste por existirem pessoas com a mente tão fechada. Eu mesmo ja assisti o espetaculo mais de 6 vezes e não me canso,quero ir de novo! Parabens pelo texto, Parabens a Jessica que é uma grande amiga e atriz que eu admiro demais e a todos que fizeram esta maravilha junto com ela!!!!
Melissa,admiradora fiel do "caderno secreto de lori" abraços
Melissa, a peça é brilhante. Jéssica também.
Obrigado pela visita.
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