domingo, 24 de março de 2019

Um dia como outro

Raposas políticas sabem negociar. Nem sempre a favor do povo, mas sabem negociar. A única coisa em comum que o presidente tem com as raposas políticas é o desinteresse que boa parte desse pessoal tem pela vida dos mais pobres. O que o presidente não tem é a manha para a conversa, o traquejo para o diálogo. Ele é tão inábil que não consegue se entender nem com aqueles que são a favor do grande desejo do governo federal — a aprovação da desumana reforma da previdência.

A grande mídia, obviamente, é a favor da reforma; grandes empresas são a favor; parte dos políticos são a favor. Nada disso surpreende, bem como não surpreende a falta de habilidade do presidente em dialogar com os que estão em sintonia com o que é até agora o grande desejo do governo federal.

Ainda no terreno da inabilidade ou da gafe, no Chile, o presidente brasileiro agradeceu ao povo venezuelano. Sebastián Piñera, presidente chileno, posteriormente, criticou o colega brasileiro, não pelo lapso deste, mas por não concordar com frases já ditas pelo mandatário brasileiro. Para fechar, um dos filhos do presidente disse que “será necessário o uso da força” contra a Venezuela, para, depois, amenizar, dizendo, que o Brasil “não pensa em intervir militarmente”.

A família do presidente (ele incluído) e integrantes do primeiro escalão do governo federal não levam em conta que em assuntos internacionais palavras podem ter consequências nefastas (em postagem anterior, comentei o quanto pegou mal a declaração de Onyx Lorenzoni, sobre o “banho de sangue” da ditadura chilena). Temperança e jogo de cintura, quando o assunto é a relação entre países, são pedra de toque que levam, no mínimo, a uma imagem de civilidade.

Enquanto isso, no Congresso, há a possibilidade de mais uma derrota do governo federal, que concedeu a turistas da Austrália, do Canadá, dos Estados Unidos e do Japão dispensa de visto para entrar no Brasil. Mesmo partidos simpáticos ao governo atacaram o decreto presidencial. Já houve derrota do governo federal quanto a decreto, o que alterava a Lei de Acesso à Informação.

Num país desinformado que acredita em mentiras disseminadas via WhatsApp, pleno de pessoas que nem se dão o trabalho de conferir a veracidade do que recebem via celular, a convivência interna continua dando sinais de degenerescência: a conta no Youtube do garoto conhecido como Michelzinho, filho de Michel Temer, teve comentários grotescos após a prisão do ex-presidente, como se o filho dele tivesse culpa pelo que fez o pai, e ontem, em São Paulo, durante o incêndio na favela do Cimento, houve motoristas que, passando perto do local, comemoraram o acontecimento. Há quem prefira não enxergar o incêndio. 

"Banho de sangue"

A perigosa patuscada continua. Dessa vez, protagonizado por Onyx Lorenzoni, que elogiou as “bases macroeconômicas da ditadura de Pinochet. Lorenzoni defendia então a reforma da previdência no Brasil. Anteontem, em entrevista à Rádio Gaúcha, ele tentou justificar a reforma da previdência, afirmando que no período de Pinochet, o Chile teve de dar um banho de sangue. Triste, o sangue lavou as ruas do Chile.

Ivan Flores, presidente da Câmara dos Deputados chilena, afirmou que Lorenzoni afrontou os que perderam familiares na ditadura do país. Jaime Quintana, presidente do Senado no Chile, disse não se lembrar de declarações desse teor vindas de um mandatário de governo.

Lorenzoni deveria se lembrar de que nem todo mundo é como o chefe dele, que, por exemplo, em evento oficial, elogia ditador pedófilo. Pelo cargo que ocupa, Lorenzoni deveria entender que as palavras que profere têm peso, têm consequências. Mas, novamente, ele não tem no chefe exemplo do que poderia ser considerado retidão ou comedimento.

O legado de Araújo

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.
Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas

O Guimarães Rosa, que foi médico, escritor e diplomata, disse certa vez, numa entrevista, que o trabalho dos diplomatas é consertar os estragos dos políticos. Só que no caso do Brasil, a diplomacia não vai consertar os estragos do governo federal, cuja avaliação positiva, aliás, caiu 15 pontos, segundo o Ibope. Ernesto Araújo, ministro das relações exteriores, defende ideias como a de que o aquecimento global é trama marxista (sic). Não é de se esperar que alguém com um pensamento assim conserte trapalhadas diplomáticas.

A congressista norte-americana Alexandria Ocasio-Cortez tem consciência plena de que o aquecimento global não é trama marxista. Ela afirma que é legítimo não querer ter filhos por causa do aquecimento global, alegando que as vidas das crianças serão muito difíceis por causa das mudanças climáticas no planeta. Em nome da consciência, Ocasio-Cortez acha digno não trazer novas vidas à tona; em nome de anacronismo patológico, Araújo se alinha com aqueles para quem não há aquecimento global, o que, em consequência, dá passe livre para destruição ainda mais intensa da natureza.

Ocasio-Cortez não propõe método deliberado para que não haja mais pessoas, o que é a proposta de David Benatar, autor do livro Better never to have been (algo como Melhor nunca ter nascido); na obra, o pensamento de que a saída mais digna para a humanidade é a extinção, defendendo que nascer é sempre um mal e que a procriação deveria parar. Benatar não defende nem assassinato nem suicídio.

A revista Jacobin foi incisiva em matéria que é retrato acurado do Brasil recente, chamando Ernesto Araújo de “o pior diplomata do mundo”. A diplomacia brasileira, que já teve intelectuais como o já citado Guimarães Rosa e inteligências como a de Celso Amorim, tem agora de lidar com Araújo.

Pode-se não concordar com Ocasio-Cortez nem com David Benatar. Todavia, não se pode acusá-los de não estarem preocupados com a condição humana; nenhum deles pode ser acusado de ignorar a complexidade da existência. Suspeito eu de que seremos extintos não por ideias similares às de David Benatar e às de Ocasio-Cortez, mas por mentes distorcidas como as daqueles que atribuem aquecimento global a inexistentes complôs ideológicos. O que mata é a ignorância.