quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Grandes olhos

O que me levou a assistir a “Grandes olhos” (2014) não foi a obra de Margaret Keane nem sua (no mínimo, curiosa) biografia. Eu quis assistir ao filme porque ele é dirigido pelo Tim Burton; os roteiristas são Scott Alexander e Larry Karaszewski. A não ser pelo bairro citadino retratado logo no começo do filme, “Grandes olhos”, disponível na Netflix, não tem o design de produção típico, algo fantástico e mágico dos filmes de Burton, o que não torna a película um trabalho menor do diretor.

Logo no começo, ficamos sabendo da proposta de Walter Keane (Christoph Waltz), marido de Margaret (Amy Adams): ela pintaria os quadros, mas ele fingiria ser o autor das obras, alegando que sem o tino comercial dele e sem o talento marqueteiro que ele tinha, as pinturas não venderiam. Walter, de fato, torna as criações da esposa uma fábrica de dinheiro.

O filme é curioso não somente pela história em si, mas também pelo fato de nos deixar com alguns questionamentos: o que é arte? o que é necessário ocorrer para que um trabalho seja considerado arte? quem decide o que é arte? a chamada grande arte pode ser comercial, enlatada? qual o poder do marketing naquilo que é considerado arte?... Dito assim, parece haver um excesso de questões a serem discutidas. Todavia, o tom do filme não é o de discutir tais questões, mas expô-las. Quem fica remoendo essas ideias depois que o filme termina é o espectador. Não bastasse, “Grandes olhos” é um retrato do que foi o mundo dos artistas descolados em meados do século, com seus experimentos, suas liberdades e seu... marketing...

Nós, cientes do quanto Walter Keane é um picareta, quase sentimos pela dele. No fundo, ele quer ser um artista, quer viver o mundo badalado da fama, usufruir as conquistas materiais que o dinheiro traz. Só não temos pela dele porque ele é um enganador, mas um enganador, pelo menos como retratado no filme, com um ponta de delírio ou de loucura. Ficamos sem saber se ele só age em nome da pilantragem ou também em nome do não conformismo com sua falta de talento para a pintura. Ele é um brilhante profissional do marketing, mas não é um artista.

(Para quem gosta de curiosidades: aos doze minutos e quarenta segundos, uma senhora pode ser vista ao fundo, sentada num banco, com um livro em mãos; ela é a Margaret Keane real. Amy Adams, que a interpreta, é a atual Lois Lane; num determinado momento do filme, entra em cena John Canaday, um crítico de arte do jornal The New York Times. Repare que Canaday é interpretado por Terence Stamp, que fez o general Zod nos clássicos filmes do Super-Homem com o Christopher Reeve na década de 80.)

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

"Como as democracias morrem"

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores da Universidade de Harvard, escreveram “Como as democracias morrem” (2018). Didático (o que já fica claro no título) e em linguagem simples, o livro detalha como... as democracias morrem...

Para os autores, foi-se o tempo em que democracias sucumbiam a partir de estrondosos golpes militares, como os que a América do Sul conhece tão bem. Levitsky e Ziblatt alegam que no século XXI as democracias morrem a partir de estratégias que são legais ou que têm cara de serem.

Num primeiro exame, é paradoxal supor que uma democracia pode morrer (ou pode começar a morrer) a partir de estratégias legais ou constitucionais, já que a Constituição de países democráticos existe exatamente para garantir a democracia. Todavia, os autores, numa instigante, profícua e iluminadora reflexão, comentam sobre a letra da lei e o espírito da lei. E mais: não raro, democracias começam a ruir porque governantes ou exageram na letra da lei ou executam ações que, embora legais, quebram pactos de civilidade, de respeito e de diplomacia.

Palavras como comedimento, tolerância e discrição entram na intrincada fórmula que sustenta uma democracia, que no dia a dia, requer paciência. Não é, por exemplo, respondendo “isso não é da sua conta” a uma repórter que pergunta sobre ligações da família de um presidente com milícias que se joga o jogo democrático.

O livro defende a ideia de que regras informais são tão importantes para a democracia quanto as regras formais; jogar no lixo aquelas pode ser tão danoso à democracia quanto levar às últimas consequências estas. Ao manejo democrático das regras informais e das regras constitucionais, os autores dão o nome de “reserva institucional”: “Para nossos propósitos, a reserva institucional pode ser compreendida como o ato de evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam o seu espírito. Quando as normas de reserva são robustas, políticos não usam suas prerrogativas institucionais até o limite, mesmo que tenham o direito legal de fazê-lo, pois tal ação pode pôr em perigo o sistema existente”. [1]

Os autores tocam na delicada questão de que os eleitores podem, de fato, não estar aptos a escolher com a razão seus governantes. Levitsky e Ziblatt escrevem que a responsabilidade de impedir que políticos com viés autocrata disputem eleições é dos partidos políticos. Os autores são peremptórios: “Os partidos políticos são os guardiões da democracia”. [2]

Para que a democracia esteja robusta, num cenário em que os partidos tenham filtros que impeçam a ascensão de antidemocratas, é preciso, que eles, os partidos, estejam fortemente comprometidos, é claro, com a democracia e com a reserva institucional. A partir do momento em que ataques pessoais e rixas políticas levam ao rompimento das regras informais, a democracia está em risco.

“Como as democracias morrem” lida com o contexto dos EUA e contextualiza o surgimento de Donald Trump, típico autocrata. Ao contextualizaram, os autores mencionam golpes contra a democracia na América do Sul. Não só por isso, o livro nos ajuda a entender o momento pelo qual o Brasil passa. A obra é também sobre a importância da palavra que concilia, do espírito público e dos bons modos na política. São coisas que parecem simples. Quando faltam, damo-nos conta de que um regime democrático pode estar correndo perigo.

Mencionei sobre o didatismo do livro. Prova desse didatismo é uma tabela que os autores elaboraram para elencar os sinais de que um político é autocrata. Tomo a liberdade de compartilhar, a seguir, a tabela.

1. Rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas)

Os candidatos rejeitam a Constituição ou expressam disposição de violá-la?

Sugerem a necessidade de medidas antidemocráticas, como cancelar eleições, violar ou suspender a Constituição, proibir certas organizações ou restringir direitos civis ou políticos básicos?

Buscam lançar mão (ou endossar o uso) de meios extraconstitucionais para mudar o governo, tais como golpes militares, insurreições violentas ou protestos de massa destinados a forçar mudanças no governo?

Tentam minar a legitimidade das eleições, recusando-se, por exemplo, a aceitar resultados eleitorais dignos de crédito?

2. Negação da legitimidade dos oponentes políticos

Descrevem seus rivais como subversivos ou opostos à ordem constitucional vigente?

Afirmam que seus rivais constituem uma ameaça existencial, seja à segurança nacional ao modo de vida predominante?

Sem fundamentação, descrevem seus rivais partidários como criminosos cuja suposta violação da lei (ou potencial de fazê-lo) desqualifica sua participação plena na arena política?

Sem fundamentação, sugerem que seus rivais sejam agentes estrangeiros, pois estariam trabalhando secretamente em aliança com (ou usando) um governo estrangeiro — com frequência um governo inimigo?

3. Tolerância ou encorajamento à violência

Têm quaisquer laços com gangues armadas, forças paramilitares, milícias, guerrilhas ou outras organizações envolvidas em violência ilícita?

Patrocinaram ou estimularam eles próprios ou seus partidários ataques de multidões contra oponentes?

Endossaram tacitamente a violência de seus apoiadores, recusando-se a condená-los e puni-los de maneira categórica?

Elogiaram (ou se recusaram a condenar) outros atos significativos de violência política no passado ou em outros lugares do mundo?

4. Propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia

Apoiaram leis ou políticas que restrinjam liberdades civis, como expansões de leis de calúnia e difamação ou leis que restrinjam protestos e críticas ao governo ou certas organizações cívicas ou políticas?

Ameaçaram tomar medidas legais ou outras ações punitivas contra seus críticos em partidos rivais, na sociedade civil ou na mídia?

Elogiaram medidas repressivas tomadas por outros governos, tanto no passado quanto em outros lugares do mundo? [3]
______________

[1] Levitsky, Steven. Como as democracias morrem. Steven Levitsky, Daniel Ziblatt. Tradução de Renato Aguiar. 1. ed. Rio de Janeiro. Zahar. 2018. P. 107.

[2] Idem. P. 31.

[3] Ibidem. Pp. 70 e 71. 

Rejeitos

Flexibilizem as leis,
peguem leve nas multas.
Melhor ainda: não multem.
Façam tudo o que for preciso.
O que acontece na empresa
não é da nossa conta.
Rejeitos, a gente enterra.
Ou a empresa enterra.
Ou não. 

Peça teatral em um ato

O Comandante — Prestem atenção. Serei breve. Quem gostou da rapidez do nosso amado comandante lá em Davos vai gostar mais ainda desta reunião. Primeiro: universidade é para uma elite. Certas coisas, a gente varre pra debaixo do tapete; certas coisas, a gente cobre de lama...

Um dos comandados — Mas...

O comandante — Eu não dei autorização pra ninguém falar. Se houver barragem, a gente chama um soldado e um cabo. Eles resolvem; isso é tranquilo. Mas se não resolverem, sem problema: a gente chama milícias. A gente vai liberar o desmatamento; o mundo já tem árvores demais. Vai ficar tudo legal; vamos flexibilizar a lei.

O mesmo comandado que já havia tentado falar — Senhor, mas a elite também respira.

(Nesse momento, as moléculas do ambiente ficam estáticas. O estômago de um dos burocratas dá volteios — que o diretor se vire para inserir isso na peça.)

O comandante — Depois da reunião, me procure em meu gabinete. Garanto que sua respiração não será a mesma quando você sair de lá. Reunião encerrada. Voltem ao trabalho.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Springsteen on Broadway

Se você não é careta, se gosta de música, se gosta de rock, se gosta de Bruce Springsteen, se gosta de filosofia, se gosta de literatura, se gosta de teatro, se tem senso de humor, se sabe o que é amizade, assista a Springsteen on Broadway, disponível na Netflix.

Quando começo a me perguntar para que serve a vida, leio páginas de Borges ou de Choderlos de Laclos, escuto “‘Heroes’” ou “Gimme shelter”, pulo desvairado no chão aqui da sala ao som de “Lose yourself to dance” ou resgato Machado de Assis, revejo Um beijo roubado ou saio para fotografar.

Springsteen on Broadway nem havia terminado e eu já sabia que era uma dessas realizações que carregarei comigo. O espetáculo é trabalho de artista maduro, consciente de si, no domínio do que é capaz de realizar. É uma dessas coisas de que me valerei quando começar a me perguntar para que serve a vida. 

Exílio

Celebrar quando um cidadão, não importa quem ele seja, anuncia que deixará o país natal por estar sendo ameaçado é prova de falta de empatia e de burrice. É não perceber o perigo que há quando um cidadão é ameaçado devido a seu democrático posicionamento político. Comemorar o exílio de alguém quando esse alguém está ciente de risco de morte é desumano, é não entender a erosão da democracia, é não entender o que são as regras informais da convivência e da política; é recusar-se à civilidade. Há quem prefira coadunar com atrocidades; sabemos que não há pessoas assim no Brasil. 

Crenças

Há quem acredite
em Terra plana,
em goiabeiras divinas,
em milicianos,
em torturadores,
em quem barra informações,
em quem libera toxinas,
em quem derruba árvores,
em quem inventa ameaça de comunismo,
em quem faz vários depósitos em poucos minutos,
em quem acoberta garoto de quarenta anos...

Eu acredito em contos de fada. 

Coletiva

O economista: cansado?
O diplomata: cansado?
O ex-juiz: cansado?
O miliciano: cansado? 

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Em família

Fevereiro começa em dez dias.
Tens o privilégio,
tens o foro,
tens o fórum,
tens o Supremo.

Tem calma, garoto.
Em breve, vão te esquecer.
Tu tens chocolate e café, 
tens a goiabeira onde habita o Supremo.

Nós temos o motorista.
Filho, afasta de mim esse cálice.