domingo, 30 de junho de 2019

Como não interpretar um texto

Um internauta, a quem vou atribuir o nome de “X”, comentou recentemente, no Facebook, um texto que escrevi. (Vou chamar o internauta de “X” porque, para esta postagem, o que importa não é o nome que uma pessoa tem, mas o que se deu a partir do que escrevi.)

“X” afirmou que um texto escrito por mim estabelecia o que ele, “X”, chamou de paralelo entre um fato e o presidente da república ou um paralelo entre o fato e a suposta responsabilidade do presidente da república. Tenho as capturas de tela dos comentários do internauta e das minhas respostas a eles.

Não entendi bem o uso da palavra “paralelo”, por entender que um paralelo é feito entre uma coisa e outra(s). Mas o que importa é que “X” escreveu que, ainda que não tenha sido minha pretensão (“pretensão” foi o termo usado pelo internauta), eu teria afirmado em meu texto ou teria dado a entender em meu texto que há alguma ligação entre os 39 quilos de cocaína que estavam no avião da FAB e o presidente da república.

Antes de eu voltar à questão linguística: eu teria de ser muito burro ou muito irresponsável ou muito inconsequente se eu afirmasse haver alguma ligação entre a cocaína e o presidente. Que prova(s) tenho eu disso? Nenhuma. Em meu texto, que logo, logo será transcrito, afirmo que havia num avião da FAB 39 quilos de cocaína. Isso é fato. Em nenhuma parte de meu texto menciono seja o nome do presidente seja alguma expressão seja alguma palavra que a ele possa se referir.

Todavia, até agora, tenho somente afirmado que não escrevi o que “X” disse que escrevi. Para ser didático e para ser mais claro, transcrevo, a seguir, o que publiquei. Minha postagem, cujo título é “De grão em grão”, foi esta:

Trinta e nove quilos.
De cocaína.
Transportada por militar.
Em avião da FAB.

A poeira vai baixar.
O pó vai percorrer outros ares.
A única certeza:
“Ao pó tornarás”.

Ainda que o presidente estivesse a bordo do avião em que estava a cocaína e ainda que eu tivesse escrito, nessa hipótese, que o presidente estava a bordo, eu não estaria ligando o mandatário à droga, eu não estaria fazendo associação entre a droga e o político ou afirmando ser a droga do político. “X” afirma ter dado uma opinião sobre meu texto. Não, ele não deu opinião: ele distorceu minhas palavras.

Ele teria dado uma opinião se ele tivesse escrito algo do tipo “seu texto é ruim”, “seu texto é chato”. Coisas desse teor seriam opiniões, e mesmo opiniões sobre um texto deveriam ser embasadas nele. “X” não deu uma opinião, não adjetivou. A partir do momento em que ele afirma que fiz associação entre o presidente da república e a droga, ou “X” está sendo injusto ou está sendo mau leitor. O que ele fez não foi dar uma opinião, mas afirmar que escrevi o que não escrevi.

É nítido que tive a intenção de soar literário na postagem. Claro que pode-se ter a opinião de que a peça, feita para ser literária, é ruim. Contudo, embora o texto literário seja aberto a diversas interpretações, essas interpretações têm de partir é do texto. Se assim não for, o que há não é interpretação, mas palpite, opinião, afirmações sem fundamento, sem base, sem critério — a não ser os critérios subjetivos ou vagos que alguém possa ter. Vagueza e subjetividade não dão a ninguém o direito de afirmar que alguém escreveu algo sem que se prove, a partir do texto, que esse alguém escreveu esse algo; vagueza e subjetividade não são interpretação.

“X”, ao afirmar que é opinião dele haver em meu texto implicações entre a droga e o presidente, teria de mostrar, a partir de trechos do que escrevi, em que pontos estariam essas implicações. Ora, é muito fácil ler algo e simplesmente declarar seja o que for, sem apontar sequer uma palavra que justifique o argumento. Se assim for, posso ler qualquer coisa e afirmar que o autor disse qualquer coisa. É pouco inteligente e muito fácil afirmar que alguém escreveu algo sem que se demonstre, a partir do texto, essa afirmação.

Todo leitor leva para o texto do outro os vieses, as opiniões, as idiossincrasias, as vivências e, dependendo de quem seja a pessoa, os preconceitos desse leitor (não estou sugerindo que “X” seja preconceituoso). Isso é inevitável. Mas não se pode esquecer: o texto é do outro. Do ou-tro. Antes de se afirmar o que o outro declarou, é preciso o básico: o que o outro de fato declarou? Pode haver subentendidos no que o outro escreveu, pode haver ironias, pode haver sugestões? Claro que sim. Mas não há em meu texto a menor sugestão de que associei o presidente da república aos 39 quilos de cocaína que estavam no avião da FAB.

Todo leitor chega ao texto do outro com tudo o que ele, leitor, é. Todavia, isso não exime esse leitor da responsabilidade que ele deve ter ao atribuir ao outro palavras, ideias ou sugestões que podem não estar no texto do outro. Se isso for feito por se ignorar preceitos básicos de interpretação, há esperança, pois isso é o tipo da coisa que se resolve com um pouco de leitura e de senso, e aquela pode ajudar muito neste. Se isso for feito devido à má-fé, e acredito que não tenha sido esse o caso de “X”, então não tenho sugestões para que a falha seja superada. O que está em questão no comentário de “X” não é algo relativo a divergência política. Fosse isso, não haveria o que eu dizer, pois do mesmo modo que “X” tem o ponto de vista dele, tenho o meu. O que está em questão diz respeito ao modo e ao ato de ler.

Nunca comentei uma postagem de “X”. Elas não aparecem em minha linha do tempo. Numa única vez, visitei o perfil de “X”, que havia comentado numa postagem minha duvidar de pesquisas, sendo que bastaram alguns segundos dessa minha única visita ao perfil dele para me deparar com duas... pesquisas (tenho as capturas de tela).

Mesmo eu não sabendo o que “X” posta, se algum dia eu me decidir por comentar alguma coisa que ele escreveu ou que compartilhou (não sei se ele escreve textos próprios ou se somente compartilha conteúdos alheios), tomarei muito cuidado para não atribuir à postagem ou ao texto dele algo que nela ou nele não está. É o mínimo que devo fazer ao comentar o compartilhamento de alguém ou o trabalho de alguém.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Rihanna de Azevedo

“É ela! É ela! — murmurei tremendo”.
“You can stand under my umbrella, ella, ella”…
“E o eco ao longe suspirou — é ela!”... “Ella, ella”... 

Duo

quarta-feira, 26 de junho de 2019

De grão em grão

Trinta e nove quilos.
De cocaína.
Transportada por militar.
Em avião da FAB.

A poeira vai baixar.
O pó vai percorrer outros ares.
A única certeza:
“Ao pó tornarás”. 

domingo, 23 de junho de 2019

Fotopoema

Revistas

A IstoÉ já foi um saboroso contraponto à Veja. Hoje, aquela é uma embaraçosa e ruborizadora versão desta. 

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Até quinta

Qualquer um que tenha tido interesse em ler o que o Jessé Souza tem publicado, falado e divulgado já sabia quem são Moro e similares. Todavia, mesmo quem nunca tinha lido nem escutado Jessé Souza já podia deduzir, pelos fatos em si, que Moro e os satélites dele não são exemplos de ética no trabalho. Só os ingênuos acreditavam nisso; os mal-intencionados, por conveniência, fingiam acreditar, concentrados muito mais em interesses próprios do que em algo parecido com bem-estar coletivo.

Bastaria prestar atenção nos excessos e descaminhos da Lava-Jato para se saber que a operação estava sendo conduzida não em concordância com a (bela) teoria do direito, mas em sintonia com desejos de um grupo de pessoas, que tiveram no jornalismo brasileiro a interpolação dos descalabros da operação. Um jornalismo canalha, que sempre tratou Moro como herói. Houve quem ingenuamente tenha acredito nisso, apesar das evidências que sempre houve de que ele não é confiável. Não foram somente livros que divulgaram isso; a imprensa independente e até alguns jornalistas de maior alcance já escancaravam quem era Moro e o que é a Lava-Jato nos moldes como ela vinha sendo conduzida.

A leitura de livros nem seria necessária para se chegar a conclusões assim. Agora, o pouco ou o não destaque que a chamada grande imprensa ou o chamado grande jornalismo não dão ao que foi divulgado ontem pelo Intercept é só mais um sintoma de que não temos, nos grandes meios de comunicação do país, empresários comprometidos com o bem público. Nesse escaldado indigesto e fétido, Bolsonaro não tem colhões para demitir Morno nem este tem a hombridade de abrir mão do cargo; tanto este quanto aquele são vaidosos e arrogantes demais. A grande imprensa seguirá atendendo aos interesses dos barões que a detém e o judiciário seguirá piando fino e fazendo de conta que não houve nada demais. Amanhã é terça-feira; depois, quarta. Na quinta, Moro já estará incólume (a bem da verdade, está e sempre esteve). Os fãs já estão loucos para vestirem a camisa da CBF. 

Terêncio e o juiz

Não raro, eu me esqueço das coisas que escrevi. O assunto de que vou tratar neste texto, suspeito, já foi abordado por mim. O problema da repetição não me incomoda, mas sei que pode incomodar um leitor ou outro. Releve, pois, a repetição, você que com ela se incomodar.

Eu tinha uns sete ou oito anos. Estava aqui em casa um cantor ensaiando algumas canções com meu pai, que tocava violão; não me lembro do nome dele (o do meu pai, eu me lembro). Esse cantor se dizia muito religioso. O papa da época era o João Paulo II. Num momento em que não estava havendo ensaio, o interlocutor de meu pai disse que o papa era “um homem santo”.

Meu pai começou então um longo discurso contra essa ideia, alegando que, antes de ser papa, Wojtyła era homem, e, como tal, estava sujeito às intempéries, fraquezas e nobrezas que podem ocorrer com qualquer um. O cantor não concordou; voltaram, ele e meu pai, ao ensaio, este ficando com o elemento humano do papa; aquele, com o suposto caráter divino do representante católico.

Não raro, meu pai tecia duros comentários contra padres, categoria que para ele era desprezível. Sempre que ele ficava sabendo de alguma ação danosa realizada por alguém da igreja católica, ele vinha sempre com o discurso de que “a pior classe de gente que existe são os padres”. Nunca entendi essa aversão dele contra religiosos católicos. Eu deveria ter conversado com meu pai sobre essa questão; como isso nunca ocorreu, fiquei sem saber por que os delitos de outros profissionais eram mais tolerados do que os delitos do clero. Claro que se espera que um padre, em teoria, seja virtuoso, mas, como meu pai sempre dizia, antes de alguém ser padre, esse alguém é um homem, e meu pai era capaz de nomear a hipocrisia quando diante dela. Ele morreu; fiquei sem saber a razão de tanta ojeriza dele contra padres. Há canalhas em qualquer profissão.

O que restou disso em mim foram a resignação e a ciência de que o ser humano é capaz dos atos mais vis, não importa quem ele seja. Felizmente, não ficou em mim apenas o ranço contra a espécie. Meu pai tinha bem desenvolvido e definido o senso de que podemos ser imprestáveis; todavia, ele não conseguiu desenvolver com a mesma acuidade o senso de que podemos valer alguma coisa. O resultado em mim de ter convivido com uma pessoa como meu pai foi que logo, logo eu já sabia que não valemos grande coisa. Disso, graças ao modo como meu pai encarava a vida, eu soube desde cedo; em contrapartida, ainda bem jovem aprendi que pode haver beleza em nós.

A convivência com a literatura solidificou o pensamento de que podemos ser uns trastes, bem como intensificou a ideia de que temos capacidade de nobreza, o que a vida acabaria me mostrando e ainda me mostra. Uma das consequências naturais da criação que recebi por intermédio de meu pai e das leituras que fui realizando foi a de não edificar ídolos, pois já estava arraigada em mim a constatação de nossos humanos limites; outra consequência foi não ter me tornado um ingênuo. Dos seres humanos, espero o pior, ciente de que somos capazes do melhor.

Na juventude, eu ainda não conhecia a máxima do Terêncio: “Sou humano; nada do que é humano me é estranho”. Mesmo sem conhecer a sentença, já corria em mim o remédio que me fazia entender que marmanjos que estupram uma garotinha ou filha que mata a mãe se valendo de um machado são expressões de capacidades humanas. Isso não significa ser inabalável, isso não significa que crimes não merecem punição; significa tão somente não encarar o pior de nós como se não fôssemos capazes de atrocidades.

Obviamente, esse pensamento é estendido às esferas da vida como um todo. Não importa se o delito venha de um pedreiro, de um médico ou de um professor, há em mim a resignação ou a compreensão de que estamos sendo nada mais do que humanos quando incorremos em erros, sejam eles pequenos, sejam grandes. Convivo com o outro na profunda certeza de que ele tem o pior e o melhor da espécie, na certeza de que tenho o pior e o melhor da espécie.

Mesmo assim, por muito tempo, tive dificuldade em entender a credulidade que é sintoma de tola ou de perigosa ingenuidade. O que leva alguém a acreditar, por exemplo, num pastor que alega fazer milagres ou num juiz politiqueiro que se arvora como representante da justiça? Todavia, quando eu me fazia esse tipo de pergunta, eu não estava me dando conta do óbvio: a credulidade ingênua ou a ingenuidade crédula são também expressões do que significa ser gente. “Nada do que é humano me é estranho”. 

domingo, 9 de junho de 2019

Um engodo chamado Lava-Jato

A matéria publicada hoje pelo site The Intercept Brasil revelando conversas por intermédio de aplicativos de mensagens entre Moro, Dallagnol e procuradores da Lava-Jato é a grande conquista do jornalismo feito no Brasil nos últimos anos. O Intercept, que pertence ao jornalista norte-americano Glenn Greenwald, traz à tona o que sempre se soube: que Moro não é o juiz imparcial que ele mesmo alega ser e que os defensores dele dizem que ele é. Uma versão resumida da matéria de The Intercept foi publicada não versão em inglês do sítio.

À parte questão partidária ou ideológica, recomendo a leitura do material produzido pela equipe de Glenn Greenwald. Os responsáveis pela matéria dizem que as mensagens chegaram a eles “bem antes da notícia da invasão do celular do ministro Moro”, o qual declarou que não teria havido “captação de conteúdo” nessa invasão.

A matéria veiculada pelo Intercept confirma o que já era sabido desde quando Moro era juiz, ou seja, que ele é um politiqueiro vaidoso que não respeitou nem o cargo que ocupava nem as instituições pelas quais deveria lutar. O que não havia eram as provas de que ele saía de seu papel de juiz e interferia a favor da causa por ele defendida. Está escancarado na matéria que o ex-juiz deu ordens para investigadores e antecipou decisões em conversas de aplicativos. O Ministério Público do Paraná já partiu em defesa do “paladino”: “O conteúdo das conversas não revela nenhuma ilegalidade”.

Está na matéria publicada pelo Intercept: “A Constituição brasileira estabeleceu o sistema acusatório no processo penal, no qual as figuras do acusador e do julgador não podem se misturar. Nesse modelo, cabe ao juiz analisar de maneira imparcial as alegações de acusação e defesa, sem interesse em qual será o resultado do processo. Mas as conversas entre Moro e Dallagnol demonstram que o atual ministro se intrometeu no trabalho do Ministério Público — o que é proibido — e foi bem recebido, atuando informalmente como um auxiliar da acusação.

“A atuação coordenada entre o juiz e o Ministério Público por fora de audiências e autos (ou seja, das reuniões e documentos oficiais que compõem um processo) fere o princípio de imparcialidade previsto na Constituição e no Código de Ética da Magistratura, além de desmentir a narrativa dos atores da Lava Jato de que a operação tratou acusadores e acusados com igualdade. Moro e Dallagnol sempre foram acusados de operarem juntos na Lava Jato, mas não havia provas explícitas dessa atuação conjunta — até agora”.

A despeito do que foi divulgado pela equipe do Intercept, a ignorância, a cegueira e o radicalismo vão alegar que tudo está bem e que não houve nada de grave nas conversas trocadas entre Moro, Dallagnol e procuradores da Lava-Jato. Não somente atitudes antiéticas vieram a público; transgressão e engodo são desnudados pela matéria. Vivêssemos num país sério, Moro não seria ainda o ministro da justiça; fôssemos um país sério, Moro, Dallagnol e procuradores da Lava-Jato envolvidos nas conversas divulgadas pelo Intercept seriam julgados. Mas bem sabemos que não há judiciário por aqui.